Título original: The City & The City
Autor: China Miéville
Ano: 2009
Tradução: Fábio Fernandes
Editora: Boitempo
Páginas: 292

A Editora Boitempo sempre se destacou pela publicação de livros de sociologia, filosofia, política e história. Em seu catálogo, estão obras clássicas de grandes nomes como Karl Marx, György Lukács e Friedrich Engels. Quem diria que, um dia, a editora se aventuraria pela ficção científica?

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capa_alta2-200x300 Resenha: A Cidade & A CidadeIsso aconteceu em meados de 2014, com o lançamento do livro A Cidade & A Cidade, do britânico China Miéville. Admito que não conhecia o autor e o meu interesse surgiu apenas pelo fato do mesmo ter sido publicado no Brasil pela Boitempo. Logo adquiri o livro e tive duas impressões iniciais: uma positiva e outra nem tanto…

Vamos para a positiva, a mais óbvia: que ilustração fantástica para a capa, não? Os tons roxos, acinzentados e verdes se harmonizam de uma maneira melancólica e a cidade retratada na capa me fez lembrar de Blade Runner, com sua realidade distópica, seus centros urbanos comprimidos e seus residentes tristes e sem perspectivas. O problema, para mim, estava no posicionamento e no tamanho da fonte que utilizaram para o nome do autor, o título do livro e a breve propaganda do Neil Gaiman. Só de bater o olho, não parece que se trata de um livro chamado China Miéville do autor Neil Gaiman? Será que só eu tive essa impressão? Espero que não…

Enfim, eu não ficaria apenas criando expectativas pela capa. Queria conhecer logo o autor para entender porque a Boitempo decidiu publicá-lo.

Com uma breve pesquisa, descobri que China Miéville era pioneiro de um estilo chamado New Weird. E o que diabos isso significa? Calma, logo chegamos lá. Miéville tinha seus méritos como autor. Ganhara o prêmio Arthur C. Clark em 2001 pela obra Perdido Street Station, e já lançara um livro de teor político chamado Between Equal Rights. Possuía PhD com base em teses marxistas, era membro do International Socialist Organization e um dos fundadores do Socialist Workers Party. Veja só, temos aí alguns bons motivos para China Miéville ter chamado a atenção da Boitempo…

Pouco a pouco, eu descobria um novo fato sobre o cara que me deixava interessado. Influência em Lovecraft. Membro de honra em diversas convenções de ficção científica. Ganhador do British Fantasy Award. Só faltava começar a ler o livro e tirar minha própria conclusão sobre a obra.

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China Miéville, um dos principais autores do movimento New Weird.

Logo de cara, um assassinato. Aparentemente, uma prostituta ofereceu um programa para a pessoa errada e terminou com o corpo dentro de um amontoado de plástico-bolha. O inspetor do Esquadrão de Crimes Hediondos Tyador Borlú logo é chamado para resolver o caso. O que chama a atenção é que o maior problema não estava com o assassinato em si, mas em como o autor do crime decidiu se livrar do corpo: ele cruzou a fronteira de duas cidades sem permissão.

As duas cidades fictícias que dão nome ao livro são Beszel e Ul Qoma. Ambas são localizadas no Leste Europeu e, veja só que interessante: ocupam o mesmo espaço físico. Temos um pedaço de terra que, para uns, é chamado de Beszel, enquanto, para outros, é a cidade de Ul Qoma. Miéville logo explica o contexto; aquelas terras foram disputadas pelas duas nações por muito tempo, uma espécie de Jerusalém sendo visada por Israel e Palestina. Como a disputa se transformava cada vez mais numa guerra sangrenta, foi decidido que as duas cidades ocupariam o mesmo espaço.

Mas havia um porém: os moradores das cidades poderiam interagir apenas com seus conterrâneos. Ou seja, quem mora em Beszel, pode falar apenas com quem mora em Beszel. Quem reside em Ul Qoma, deve se comunicar apenas com outros ulqomanianos. A fim de se certificar de que essa lei seria respeitada, é criada uma misteriosa corporação chamada Brecha. A empresa parece possuir poderes sem limites e incita um pânico constante na população. Todos se obrigam a seguir essa regra por medo de desaparecem do mapa, como já aconteceu antes. Quem desrespeitava essa lei era punido quase que instantaneamente, e todos sabiam disso. O que não era de conhecimento da população era como essa pessoas eram punidas. Será que morriam? Eram deportadas? Convidadas a se retirarem?

Não importava. A Brecha mandava nas cidades, e inteligentes eram aqueles que aceitavam esse fato sem questionar.

A primeira pergunta que me veio à cabeça foi: como essas pessoas sabiam que o individuo ao lado delas não pertence as suas respectivas cidades? Bem, vários fatores podem ser analisados: a linguagem corporal, as vestimentas, o idioma… As pessoas praticamente vestiam suas cidades, deixando óbvio a que lugar pertenciam. Engraçado que, na escola, enquanto nós aprendemos regra de três, uso da crase e o relevo do Brasil, os residentes de Beszel e Ul Qoma tem que compreender essas diferenças minuciosas para não cometerem uma infração que pode custar sua permanência nas cidades – ou, quem sabe, até suas vidas!

Outra dúvida logo me incomodou, pensando até que o autor cometera um furo: como duas cidades que ocupam o mesmo espaço podem ter fronteiras? Como é que o assassino cruzou uma fronteira que, teoricamente, não existe?

Felizmente, Miéville não nos frustrou: para ir de uma cidade para outra, é necessário entrar no Copula Hall, um prédio situado no centro das cidades. Lá, deve ser explicado detalhadamente o porquê da visita até a outra cidade e, apenas com aprovação da Brecha, a viagem é autorizada. Nosso assassino, então, não se preocupou com isso; passou pelo Copulla Hall, foi pego pelas câmeras de vigilância e não se importou com os crimes que cometeu… Nenhum dos dois crimes.

Ao chegar ao local em que o corpo da mulher fora desovado, Borlú avista ao longe uma pessoa que parecia curiosa com o que estava acontecendo. Encontrava-se no fim de uma avenida que cruzava o parque em que o corpo foi encontrado. Rapidamente, Borlú trata de desver essa pessoa, que, no fim das contas, não passava de uma senhora mal vestida, pois ela não pertencia à sua cidade… A sua realidade.

Borlú morava em Beszel. Nunca fora à outra cidade, nem para fins turísticos. Sabia que não podia sequer pisar em algumas regiões do lugar, pois elas pertenciam apenas a Ul Qoma. Sabia, também, que alguns pontos eram exclusivos de Beszel, obrigando os ulqomanianos a ficarem longe. Nosso protagonista não parece se importar com essa estranha separação. Apresentando uma personalidade digna de um sobrevivente, Borlú prefere se adaptar a realidade que vive, e o faz maestralmente.

Mal sabe ele, porém, que o caso que acabara de se encarregar modificaria sua perspectiva. A mulher que fora assassinada não era uma prostituta, e sim uma estudante de história e antropologia que viera do Canadá. Ela inclusive causou certo alvoroço em algumas reuniões com políticos e representantes das cidades, declarando publicamente que existia uma terceira cidade omitida entre Beszel e Ul Qoma controlando os rumos que ambas tomavam.

Orciny… Esse era o nome da terceira cidade. Essa história, porém, sempre foi considerada uma lenda urbana pelos residentes de Beszel e Ul Qoma. As pessoas preferiam tratá-la como um folclore, talvez um conto de terror para assustar os amigos antes de dormir. Orciny não era real. Não poderia ser real… Ou poderia?

Borlú se faz essa pergunta e, mesmo convencido de que Orciny não existia, evidências surgiam comprovando o contrário. Será que a jovem assassinada fez uma descoberta que custou sua vida?

Orciny é real? O que você acha?

A Cidade & a Cidade me surpreendeu positivamente. O suspense é mantido até a última página e a cultura das duas cidades em que a história é ambientada é muito rica e bem construída. China Miéville cria até grupos separatistas, que almejam separar as duas cidades, ao passo de que outros grupos objetivam o contrário: a unificação.

O livro é narrado em primeira pessoa, e os diálogos dão dinamismo à obra. Passamos por quarenta, cinquenta páginas sem sequer perceber que lemos tanto. É interessante ver tão claramente como as diferenças culturais podem afastar as pessoas que possuem o mesmo princípio biológico.
O misto de suspense e ficção científica criado por China Miéville é de leitura obrigatória para qualquer um que aprecia uma boa história. Quem está cansado da ficção contemporânea também é muito bem-vindo, pois o New Weird – eu disse que voltaríamos a falar dele – permite explorar temas que causam estranhamento num primeiro momento, mas que eventualmente nos fazem refletir sobre nossa própria realidade.

Te deixei com vontade de ler A Cidade & a Cidade? Conhece um livro parecido, ou uma obra mais bacana que essa? Conta aí pra gente nos comentários!

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Marcus Colz

Livreiro, gamer, aficcionado por filmes, séries e música, não necessariamente nessa ordem. Fã de black metal que simpatiza com a Katy Perry. Come junk food mais do que deveria e não suporta alho, apesar de não ser um vampiro. Na busca de seu próprio universo, se encontra no Maxiverso.

9 thoughts on “Resenha: A Cidade & A Cidade

  1. Caramba, que resenha boa! Eu sabia da premissa do livro de forma rasa, e não tinha me aprofundado na obra. Sei que a Boitempo lançou outro livro do China, e nele eu tive bastante interesse, mas não sabia que A Cidade e a Cidade tinha essas ideias tão boas. Eu comecei a ler ficção cientifica mais a fundo de uns tempos pra cá, e meio que me iniciei com Arthur C. Clarke, que também traça muitos paralelos com a nossa realidade, e eu fico com a cabeça fora do lugar toda vez que paro pra refletir nas ideias que ele propõe nos livros. Resenhei dois do Clarke no meu blog, e percebi em ambos essas alfinetadas na sociedade. Enfim, parabéns pela resenha! Já to furando a fila de leituras pra encaixar A Cidade e a Cidade no meio 😀

    http://www.adoraveisdiasdecao.wordpress.com

  2. A questão das fronteiras e dos Checkpoints fazem uma reflexão direta a Palestina e Israel, e o cotidiano a richa pós-queda do muro de Berlin entre osses e wesses. Eu achei fantastico essa pegada de trazer algo estranho e quando nos acostumamos a ele, ao longo da leitura, sacamos que é por causa das similaridades com o nosso mundo. Tão ou mais weird que a ficção.
    A propósito, tem um livro antigo, não sei se o resenhista conhece, Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin. Ela também trabalha coma ideia de muros invisíveis enquanto desenha maravilhosamente uma utopia anarquista em uma lua chamada Anarres.

    1. E aí Davenir, tudo bem?

      Pois é cara, a Ursula trabalha uma temática parecida no Despossuídos. Inclusive, eu tenho uma edição desse livro que encontrei num sebo, bem bacana!

      Quanto à sua analise, dá pra ir até um pouco mais longe. Pensa nos lixeiros, por exemplo. Você não acha que existe um muro invisível que nos impede de vê-los? É bem comum a gente “desvê-los”, não é? Foi confirmado já que o uniforme que eles usam, meio laranja e verde, é justamente para não ignorarmos eles por completo.

      Loucura, né? Obrigado pelo comentário!

      Abraço!

    1. Fala aí Sick MInd, tudo bem? Belo nick haha!

      Então cara, eu cheguei a conclusão de que a Boitempo publicou esse livro devido a postura política do China Miéville. Ele é de esquerda e encontra suas bases no socialismo.

      Lê logo o livro! Vale muito a pena!

      Abraço!

    1. Fala aí Boss, tudo bem?

      Piração é pouco haha! Mas ai a gente pensa em Jerusalém sendo disputada por Israel e Palestina e percebe que talvez não estamos tão distantes disso!

      Obrigado pelo comentário!

      Abraço!

  3. Muito boa a critica! Nunca tinha ouvido falar desse China ai rsrsrsrsrsrsrs… vou tervque ler isso.

    1. E aí Roger, tudo bem? Obrigado pelo comentário!

      Pois é, eu não conhecia ele também! Foi uma grata surpresa descobrir um bom autor contemporâneo de ficção científica. Geralmente, quem gosta do gênero, tem sempre que apelar para os clássicos.

      Espero que goste do livro! Diz o que achou pra gente depois de ler, ok?

      Abraços!

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