Análise: A Pista – o filme que mudou a viagem no tempo

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Curta-metragem de 1962, A Pista (La Jetée), do diretor Chris Marker, é um dos expoentes da Nouvelle Vague e considerado por muitos como um dos melhores curtas já produzidos na História.

Interessante que esse reconhecimento todo ocorre mesmo com o filme (que tem cerca de 25 minutos) sendo basicamente uma exibição de fotografias em preto e branco, com narração em off, o que torna essa aclamação ainda mais incrível e mostra a genialidade da obra.

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E se você acha Os 12 Macacos um grande filme sobre o tema viagem no tempo (e é mesmo), prepare-se para achar A Pista – que inclusive serviu de inspiração para o clássico de Terry Gilliam, com Bruce Willis e Brad Pitt – tão bom quanto. Ou, por incrível que pareça (já que é um filme sem a principal característica de filmes – movimento) achar até melhor!

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O enredo

A Pista conta a história de um homem que vive como prisioneiro nos subterrênos de uma Paris destruída após a Terceira Guerra Mundial e é forçado a participar de experimentos relacionados com viagem no tempo, que teriam por objetivo trazer suprimentos do passado, ou informações e conhecimento que permitam um renascimento da humanidade.

O protagonista é um dos escolhidos pelos cientistas por ter uma visão recorrente dos seus tempos de infância, antes da guerra, quando seus pais o levavam à pista de um aeroporto para ver os aviões decolarem, e em um desses passeios ele testemunha um acontecimento impactante.

Em determinado momento do filme, ele tenta não voltar mais do passado, para poder ficar com uma mulher daquela época, por quem se apaixonou, e de quem – estranhamente – tinha também memórias antigas. O protagonista desobedece assim uma ordem direta e recusa uma proposta de viver no futuro, para ir atrás do amor da sua vida.

Chris Marker

A “Nova Onda” francesa foi um movimento cinematográfico que se caracterizou por quebrar paradigmas de sua época. Jovens diretores surgidos no fim dos anos 50 juntaram a falta de apoio e estrutura artística francesa da época, e a consequente necessidade de fazer filmes mais inventivos e autorais, com a vontade de inovar e transgredir padrões – um pensamento comum a todas as artes no começo da segunda metade do Século XX, que depois se manifestou também em contextos sociais que acabaram ficando mundialmente marcados no Ocidente como a “contracultura”.

Os expoentes mais famosos da Nouvelle Vague são os diretores François Truffaut e Jean-Luc Godard, pois obtiveram fama mundial através de seus trabalhos. Quanto a Chris Marker, ele nunca chegou a esse primeiro escalão, mas ainda assim é bastante conceituado dentro do movimento.

Como alguém que testemunhou de dentro os horrores da Segunda Guerra, Marker aborda constantemente conflitos e aspectos temporais em suas obras. Segundo Tainah Negreiros Oliveira de Souza, em seu “O futuro passado em La Jetée” de 2012, o cinema de Marker sempre revela uma reinvenção do uso da forma da temporalidade, e leva em consideração a violência vivida na guerra, os julgamentos dos nazistas e toda a meditação acerca daquilo como algo a ser entendido e evitado no futuro.

Críticos apontam que o olhar para o passado como sendo algo possível de se alterar seria uma recorrência no trabalho de Marker provavelmente por sua vontade de mostrar que, depois, sabendo do ocorrido na guerra, a humanidade poderia querer ter a possibilidade de, ainda no passado, achar uma maneira de evitar os rumos que desembocaram no conflito.

Naquela época, a sociedade européia principalmente tinha o sentimento de necessidade de ruptura com o passado, com os eventos traumáticos que haviam assolado o mundo. Ainda conforme Tainah, “É interessante entender de que forma a ruptura que esses eventos de violência representam desencadeiam também um rompimento na concepção do trabalho de Marker que passa a se voltar constantemente para a temática da memória. Algo que se introduz com relevância e notoriedade em La Jetée, e que Marker não mais abandona, torna-se uma questão que atravessa sua obra, seus filmes, que de uma forma ou de outra passam a sempre se voltar para essa questão, seja das memórias constituídas, das rejeitadas, e principalmente da inquietação dos dados estabelecidos […]”.

Um filme incomum

Como já dito, A Pista é um filme que não nos traz aquilo que mais caracteriza os filmes, que é o movimento das imagens. Isso, por si só, já o torna especial.

Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia, em seu “La Jetée, Documentário do Futuro – I”, diz que, mesmo que o filme tenha essa característica marcante quanto à sua composição, este ainda assim é um legítimo produto cinematográfico, pois “[…] na construção da narrativa por meio da sucessão de fotografias, Marker faz uso de praticamente todos os dispositivos da linguagem cinematográfica. Planos gerais são sucedidos por planos médios ou de conjunto, intercalados por planos próximos e close-ups que reforçam a dramaticidade dos atos, sem falar nas fusões. […] Se com a ausência de movimento perde-se a micronarrativa, isto é, a narrativa inerente à movimentação interna de cada plano em particular, La Jetée demonstra que a macronarrativa, isto é, a narrativa decorrente da sucessão de planos, uma vez preservada, sustenta sem problemas todo o procedimento do discurso fílmico. […]”.

O apuro técnico da obra completa-se, é bom frisar, com uma história incrivelmente densa e interessante, que marcou época e influenciou gerações posteriores.

Além de Os 12 Macacos, por exemplo, A Pista também inspirou o interessante e distópico The Red Spectacles (1987), do grande e aclamado cineasta japonês Mamoru Oshii, autor do anime Ghost in the Shell (1995) e inspirou o clássico Em Algum Lugar do Passado (1980) de Richard Matheson, com Christopher Reeve – o eterno Superman, além de outras diversas obras, e não só cinematográficas, pois músicas, livros, games e quadrinhos usaram o curta francês como ponto de partida conceitual.

Como se não bastasse essa influência, A Pista foi precursor da cinematografia “PsicoGnóstica”, um “subgênero” na qual as histórias exploram personagens ou acontecimentos aprisionados de alguma forma (mental ou real) em uma realidade onírica, ou em suas memórias, ou ainda em um estágio de limbo entre a vida e a morte, que possibilitariam viagens transtemporais ou transdimensionais, ou entre realidades, por meio da consciência. Exemplos dessa cinematografia: Vanilla Sky (2001), Efeito Borboleta (2004), Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), A Passagem (2005), Upstream Colour (2014), e seu mais proeminente exemplar, Viagens Alucinantes (Altered States – 1980), com William Hurt. Alguns incluem o blockbuster A Origem (Inception – 2010), de Cris Nolan, nesse rol.

A consciência é a chave de A Pista

No filme, os homens que são submetidos às viagens no tempo passam a ficar confusos e desorientados. Para eles, as noções temporais se confundem a partir das viagens, pois as lembranças passam a perder a credibilidade e acontecimentos podem ter sido vividos ou criados pela memória dos viajantes. O protagonista, no entanto, tem a convicção que uma lembrança vívida em sua memória refere-se à sua infância, e inclusive a trata como “a única memória dos tempos de paz a chegar aos tempos de guerra”, o que o ajuda a manter clara na mente as noções de tempo.

Esse vínculo forte e cristalino com o passado faz com que o protagonista seja um dos escolhidos pelos cientistas para participar das viagens no tempo, pois lhe daria mais lucidez para enfrentar os efeitos colaterais dos experimentos, ou mesmo para saber se o que está vivenciando é real ou não, já que as viagens são realizadas por meio de alteração do estado de consciência, induzida por drogas que permitem ao viajante entrar nas ondas temporais de passado e futuro que são trazidas pelos experimentos.

Uma nova visão da viagem no tempo

H. G. Wells, o brilhante escritor britânico, que é considerado um dos inventores da ficção científica ao lado de Mary Shelley, foi quem introduziu o conceito da viagem no tempo na cultura ocidental com o seu seminal A Máquina do Tempo, de 1895.

A partir de então, conceitos diversos – todos atrelados à obra de Wells – foram se sedimentando a respeito da viagem no tempo no sci-fi.

Foi apenas com A Pista que uma nova abordagem foi introduzida ao tema: a da relação memória/tempo. O conceito evoca o escritor francês Marcel Proust, que via tempo e memória como uma coisa única e indissociável, de modo que uma viagem no tempo não seria apenas um deslocamento de indivíduo para outra época, mas sim uma navegação da consciência por memórias diversas que não se restringem a datas, mas abarcam outros elementos, tais como cheiros, emoções, visões, temperaturas, etc.

O “tempo proustiano” casa perfeitamente com a psicognose, como vemos, e a influência do escritor conterrâneo em Marker é cristalina.

Como bem explica Wilson Roberto Vieira Ferreira em seu “La Jetée foi um marco da viagem no tempo no cinema” de 2014:

A Pista […] explora dois temas da mitologia gnóstica: primeiro, o mito de Sophia, o ‘aeon’ responsável pela transição do imaterial para o material, aquela que confere ao mundo físico dinamismo e vitalidade. Mas também observa os homens (que inconscientemente são portadores da fagulha de luz espiritual) e deseja que eles alcancem a gnose – no filme, a memória recorrente de Sophia que o fará se libertar do mundo físico no final.

O segundo é o paradoxo do futuro não existir, e de o tempo se consistir pura e tão somente na necessidade de relembrar aquilo que foi perdido. La Jetée constrói a estrutura do tempo como uma espécie de fita de Moebius, tão explorada em filmes atuais: o paradoxo espacial que cria uma ‘figura paradoxal’ cujas propriedades abolem o princípio da orientação (não possui o lado de ‘dentro’ e de ‘fora’ como uma fita normal). Sua convergência e continuidade formam um paradoxo espacial onde a torção cria uma fita de apenas um lado. A fita se torce sobre si mesma, formando um continuum tempo-espaço fechado onde se volta sempre para o ponto de partida.

Pela mitologia gnóstica o tempo não existe, daí a grande importância ao passado e à infância, momento idílico onde a ilusão do tempo ainda não havia contaminado a percepção e a mente. Do tempo-memória passamos ao tempo-esquecimento, representado no filme pela III Guerra Mundial nuclear que destrói as memórias, criando as dificuldades para as viagens no tempo.

No ápice do filme quando o herói anônimo e gnóstico sabe que ele é apenas uma cobaia dos cientistas e será exterminado, ele mergulha no limbo das memórias. Viajantes do futuro oferecem para ele a possibilidade de saltar para frente e viver em um mundo pacificado. Mas ele prefere ficar com a mulher do aeroporto de Orli (Sophia) das suas lembranças da infância […]”.

la-jetee2 Análise: A Pista - o filme que mudou a viagem no tempoConclusão

A Pista é um filme diferente, difícil de se assistir – seja pela história complexa ou pelo formato adotado pelo diretor. Mas é um exemplar espetacular da boa ficção científica no cinema, especialmente daquela voltada à temática das distopias e/ou da viagem no tempo.

E para quem conseguir apreciar a história sensacional em detrimento do formato incomum, a maior recompensa é o final: um dos grandes (e primeiros) plot twists da História do cinema, que amarra o paradoxo temporal da trama de forma soberba e impecável.

Dê uma chance à Pista. Vale demais a pena!

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Ralph Luiz Solera

Escritor e quadrinhista, pai de uma linda padawan, aprecia tanto Marvel quanto DC, tanto Star Wars quanto Star Trek, tanto o Coyote quanto o Papaléguas. Tem fé na escrita, pois a considera a maior invenção do Homem... depois do hot roll e do Van Halen, claro.

11 thoughts on “Análise: A Pista – o filme que mudou a viagem no tempo

  1. é por textos como esse que eu sempre visito esse site, parabens, vc fez novamente minha vida um pouco mais satisfatoria por me permitir conhecer essa obra

  2. Parabens!!!!!!!!!!! Adoro esse filme e essa foi a melhor análise que já li sobre ele. Ficou otimo!

  3. Sempre que vejo essas ilações sobre psicologia e filosofia me pergunto se quem fez o filme tava mesmo pensando naquilo… sera que o diretor conhecia toda essa historia de Sofia e gnosticismo mesmo?

  4. Ralph parabens, mais uma análise à altura do Maxiverso, entra no seleto grupo das grandes análises de vcs, as que eu mais gosto sao a do Equilibrium e a da relação Cinema x TV, queria recomendar uma analise do filme 1984, pq é um assunto muito atual

    1. 1984 é um tema complicado rs… mas a sugestão está anotada 🙂

  5. bela analise, eu sequer tinha ouvido falar da existencia desse filme, vou tentar baixar em algum lugar pra ver como é

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