Crítica: Três Anúncios para um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri)
Três Anúncios para um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri)
Direção: Martin McDonagh
Elenco: Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell, Caleb Landry Jones, Lucas Hedges, John Hawkes, Amanda Warren, Abbie Cornish, Zeljko Ivanek e Peter Dinklage
Sempre ao discutir sobre um filme devemos lembrar: sua análise deve ser feita pela sua narrativa, sem necessariamente nos atrelarmos ao assunto principal em si (isso não quer dizer que não seja importante, claro). Mas quando uma obra apresenta uma abordagem e estilo particulares vistos em outros filmes, é comum que a comparação possa prejudicar o longa – o que não é caso aqui.
Mostrando total habilidade ao conduzir sua narrativa influenciada, por exemplo, pelos irmãos Coen, o diretor Martin McDonagh torna seu Três Anúncios para um Crime um faroeste moderno (como os próprios Coen fizerem com Onde os Fracos não Têm Vez em 2007, e assim como David Mackenzie fez com o excelente A Qualquer Custo em 2017). Entretanto, até porque seria um exercício inútil tentar desassociar o filme aos irmãos diretores, é claro que Três Anúncios para um Crime têm em Fargo (1996) uma fonte de inspiração. Não somente (óbvio) pela hipnotizante presença de Frances McDormand, como o tradicional cenário de indivíduos comuns e pitorescos, ocorrido dentro de uma pequena cidade americana servindo como local também para uma análise social permeada com humor negro e doses de violência.
Contudo, além de mostrar uma habilidade para equilibrar o tal humor e o drama de maneira eficiente (algo sempre difícil), a direção vai um pouco além em sua abordagem ao não tornar tal elemento como único chamariz para o filme e consegue caminhar de maneira independente e com vida própria. Fora que além de situações e indivíduos pitorescos, McDonagh trabalha de maneira segura os arcos dramáticos de personagens errantes tentando se redimir que, misturados à base já montada, não permite que chamemos o filme somente de uma “comédia de erros” como o próprio Fargo foi intitulado.
Vivendo praticamente para solucionar o caso do assassinato da filha na pequena cidade de Ebbing, Missouri, Mildred (McDormand) é uma mulher desacreditada entrando em conflito com as autoridades locais, a partir do momento que publica três outdoors questionando o delegado Willoughby (Harrelson) sobre a investigação que até o momento não encontrou sequer algum suspeito. Sua ousadia não somente será o pontapé inicial do conflito como também ponto de partida para a ação influenciando a rotina da cidade. Portanto, é interessante que, mesmo que a investigação fique por momentos em segundo plano, a mesma move de maneira única as ações daquelas pessoas sem deixar de criticar, por exemplo, assuntos que fazem parte daquele contexto, como questões raciais, direitos civis, abusos de poder por parte das autoridades e até pedofilia na igreja.
Mildred é uma mulher direta, às vezes fria, sem medo e sempre franca nas suas respostas cheias de sarcasmos e ironia, sofrendo com a inoperância da polícia pelo fato do crime talvez nunca ser solucionado – por falta de provas ou uma linha de investigação. E auxiliada pela atuação e trejeitos de McDormand inspiradíssima, Mildred assume uma aura amedrontadora e cínica, não fazendo a menor cerimônia, por exemplo, de confrontar as autoridades locais como na cena em que adentra a delegacia como se fosse uma personagem saída de um… faroeste (com uma trilha típica, diga-se de passagem). Aliás, dentro do gênero, podemos incluir a atuação da atriz na prateleira junto com outros personagens marcantes como Anton Chigurh de Javier Barden de Onde os Fracos… e até mesmo o delegado interpretado por Jeff Bridges em A Qualquer Custo.
E, assim como McDormand, Sam Rockwell se destaca com seu perigoso Dixon. O ator, que já recebeu elogios pela sua grande atuação no ótimo Lunar (2009) em que atuou praticamente sozinho, demonstra novamente sua capacidade ao apresentar um personagem multifacetado. Mesmo tendo uma convivência de amor e ódio no convívio quase infantil pela dependência da Momma Dixon (Martin), Dixon se torna imprevisível durante seu arco de redenção sem necessariamente tornar-se vítima de uma hora para outra – até porque, mesmo a direção o tratando como alguém por vezes limitado intelectualmente, ele é um violento racista. Assim, Woody Harrelson é também mais um destes indivíduos que, dentro do sistema permeado pela violência, aja ao mesmo tempo como um indivíduo até certo ponto ameaçador, mas ainda se permitindo agir com certa nobreza dentro da culpa pela responsabilidade da não solução do assassinato da filha de Mildred.
Ademais, sem apresentar um vilão específico (ou mocinho), o roteiro do próprio diretor é ágil ao entregar o cenário e os ambientes externos e internos da protagonista já estabelecida logo em seu início, dando tempo suficiente para ir acrescentado e criando os arcos dramáticos identificáveis dentro da história. Aliás, a dinâmica destes personagens é um dos grandes momentos da obra por serem conflitos cheios de resignação, ironia, raiva e perdão, como podemos comprovar durante um diálogo entre Mildred e Robbie (interpretado por Lucas Hedges, que mesmo como pouco tempo de tela, ratifica o grande ator visto em Manchester a Beira-Mar) onde o filho, inconformado com o comportamento destrutivo da mãe diz: “Você tem que parar de agir como uma puta velha” para imediatamente ela responder com sua ironia habitual: “Não sou tão velha”. E claro, o relacionamento de Mildred e Willoughby transitando de maneira fluída entre a raiva e respeito durante o filme, uma vez que por mais que ele entenda a dor de Mildred, ele sabe que pouco se pode fazer.
Mas o humor por vezes sombrio, assim como as obras dos Coen, sempre se faz presente sem necessariamente se tornar algo explícito ou que desequilibre a obra e que ainda consiga expor as dores dos envolvidos inserindo ainda momentos de violência gerando um preocupação com seu destinos. Reparem, por exemplo, na sequência do encontro de Mildred e seu ex-marido Charlie interpretado por John Hawkes. A cena é construída inicialmente como uma gag física delicada entre Mildred e Robbie envolvendo cereais passando por momentos mais cômicos envolvendo a jovem – e sem noção – namorada de Charlie, culminando no choro de dor de Mildred com uma faca nas mãos, amparada pelo próprio Charlie, ou seja, numa sequencia a direção mostrou total domínio da narrativa ao trabalhar três frentes distintas. Ou até mesmo numa pequena cena podemos comprovar a atenção a estes detalhes que são igualmente eficientes, como na cena em que um personagem, ao ter seu rosto anteriormente marcado pelo fogo, levemente se retrai ao usar um isqueiro para acender o cigarro (um gesto simples, mas funcional).
E a qualidade da direção vai além destes pontos, o que já seria algo elogiável, mas também em detalhes na construção da narrativa que merecem atenção, como, auxiliado pela montagem de Jon Gregory, acaba rendendo bons momentos impactantes como na cena da leitura de uma carta redigida por Willoughby, alternando sua narração em off com as reações ao seu conteúdo. Assim, como a fotografia de Ben Davis (ultimamente mais focado em filmes baseados em HQs) que pontua de maneira delicada momentos importantes e criando rimas visuais interessantes (até mesmo contextualizadas com o tom do filme), como o fato do vermelho (cobrindo a face de Dixon no início do filme) também cobrir o rosto da mãe do personagem, simbolizando a violência que poderá acontecer (ou aconteceu).
Inclusive, a violência é bem utilizada pela narrativa através, por exemplo, de um ótimo plano sequência com o mesmo Dixon adentrando o escritório de Red Welby (Jones). Ademais, é simbólico que a direção visualize as tais placas quase como um elemento vivo de adoração que inicialmente, ao surgirem destruídas e sem vida, vão sendo transformadas quase num altar de fogo, dor e catalisadoras para a perda de Mildred. Um local de resistência, mas também de uma tortura auto infligida, não somente para ela, como para o filho devido à localização das placas estarem no único acesso à sua casa. E não sendo coincidência também que, durante dois importantes e decisivos diálogos de Mildred (primeiro com Willoughby e depois com Dixon) tais placas sejam vistas em segundo plano, simbolizando seu domínio e onipresença.
Finalizando de maneira inteligente, ao mesmo tempo respeitando a lógica apresentada durante seus atos (e o espectador em si), Três Anúncios para um Crime é competente ao mostrar que o caminho mais fácil para uma redenção de suas dores nem sempre é mais rápido, até porque tais indivíduos ainda estão sujeitos a cometerem graves erros. E sabe-se lá se irão se redimir.
Nota 5/5
Rodrigo Rodrigues
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parabens, Rodrigo, mais uma excelente critica… pretendo assistir o filme o quanto antes, pois pelo que vi aqui vale muito a pena!
Ajezandra
Bem vinda
Obrigado pelo elogio e por ler nossos textos.
Espero que retorne em breve com sua opinião sobre o filme
Abraços
concordo com tudo na critica… melhor filme que vi esse ano e ja vi uns 30 filmes… de longe o mais bem engendrado, melhor realizado, com as melhores atuações…
Doan Ana
Bem vinda
Obrigado pelo elogio. Você já viu bastante filme este ano hein.
abraços
Gostei do filme, mas longe de ser essa obra prima que a critica sugere. É um filme bom, mas é mais do mesmo, inclusive a atriz repete basicamente a atuação de Fargo. O clima é bacana, as atuações são boas, o roteiro é redondo, os diálogos são ótimos. Isso tudo junto não faz do filme uma coisa maravilhosa, um expoente da sétima arte. Vamos com calma gente rsrsrs
Tetravex
Bem vindo
Eu não disse ou sugeri que o filme é uma obra prima. rs
Até porque raríssimos filmes se transformam numa obra prima de maneira imediata. O filme tem diversas qualidades (como você muito bem apontou e eu discuti no texto) e acho que é um dos melhores do ano a ponto de ter grandes chances de ganhar o Oscar.
Abraços
Filmaço!!! Melhor do ano com certeza! Nao tem nenhum lançamento previsto para o ano de um filme do mesmo quilate. Tem uns deherois, o do Solo… só. Oscar 2019 garantido pro filme e pra Frances McDormand.
tamo em fevereiro e os sabichoes ja decidem o que é o melhor até dezembro… palmas pra vcs
sinceramenti nao sei como vcs gostam de um filme chato desses, tudo parado, lento, devagar, pessoas falando sozinhas, nada acontece e é tudo mostrado pela metade, a gente tem que adivinhar então é
O final é perverso, onde alianças forjam em prol de um ativismo brutalizado e determinado. Mas para as boas graças de McDonagh, a sua nova criação é um portento argumentativo invejável, mesmo que as temáticas estejam em desencontro com a ideia do público, estas são indiciadas pelo bem da escrita e pela confiança nestas personagens que são insuflados com vida por atores de requinte.
Febrinha
Bem vinda
Inspirada hein. Muito bem. rs
É bom que o filme possa despertar tais percepções.
Abraços
vi uma metafora muito louca da mIldred que seria ela uma outsider em relacao ao sistema (f u c k the system) com sua transgressao comportamental, e o lance dos outdoors e todo um clima loucaço de querer suplantar os padroes machoeteronormativosbrancos vigentes diante dos abusos sobre as mulheres e as meninas, como se fosse um grito contra o preconceito por ela ser mulher diante de homens da lei, um chega, um basta, esta mais do que na hora de por apolicia nas maos das mulheres para acabar com esse comportamento opressor
ta louca nas dorgas
Gostei muito. O roteiro aborda outros tipos de intolerância: o racismo, a homofobia. E mira na hipocrisia. Em determinado momento, Mildred chega em casa e se depara com o padre do município, sentado e tomando chá. Típica situação de cidade pequena, de onde todo mundo dá palpite na vida alheia. O sujeito está lá para dizer que a Igreja apoia a mãe, seu sofrimento, mas não apoia os anúncios. Nas entrelinhas: ela foi longe demais, está prejudicando pais de família, os homens, heterossexuais, que comandam a sociedade. Traduzindo: perder a filha para um homem, pode, questionar um homem, não pode. É aí que sai um dos monólogos mais inspirados do cinema. Que põe não um, mas todos os dedos na ferida. Só os hipócritas de plantão se incomodarão. Sensacional.
Perfeito. O filme traz diversos conflitos internos e entre pessoas. Indignada com a falta de maiores descobertas do paradeiro do criminoso, Mildred, ao melhor estilo punk “do it yourself” (faça você mesmo), decide ilustrar três outdoors na entrada da típica cidadezinha dos EUA: onde todos falam sobre todos e a hipocrisia reina. Sofre por ser mulher, por ousar colocar o dedo na ferida e cobrar os “homens de bem”.
Afta e Gengi Blood
Bem vindos
Fico realizado que tenha iniciado uma discussão e dar espaço para ponto de vistas diferentes.
O tom crítico da opiniões de vocês é muito bem contextualizado sobre a hipocrisia das instituições americanas (e o famoso faça você mesmo)
Parabéns e Abraços
Filmaço! Mas a protagonista, pra mim, eh o ponto fraco: grande atriz, mas q atuou como em Fargo, o q me incomodou.
Sei nao heim.. ja da pra cravar q eh o melhor filme do ano?
Kimmy
Bem vindo,
Tem grandes chances de levar o Oscar de melhor filme sim. Quanto ao melhor do ano (considerando o ano de lançamento aqui), isso é mais complicado, por ainda termos um ano toda pela frente. De qualquer maneira, o filme esta encabeçando a lista sim.
Obrigado pelo comentário
Abraços