Crítica: O Agente Secreto

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Direção: Kleber Mendonça Filho

Elenco: Wagner Moura, Wagner Moura, Tânia Maria, Gabriel Leone, Robério Diógenes, Roney Villela, Luciano Chirolli, Udo Kier, Maria Fernanda Cândido, Carlos Francisco, Gregorio Graziosi, Thomás Aquino, Hermila Guedes e Alice Carvalho.

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Como demonstra na filmografia do diretor Kleber Mendonça Filho, O Agente Secreto é sobre agente (desculpe o trocadilho) como país em sua essência. É um filme sobre ecos que ainda ressoam do nosso passado de repressão como forma de aviso, tanto na própria arte quanto na sociedade. O diretor é mais uma vez hábil em sua narrativa em misturar esses recados como forma de olharmos para nossa realidade, assim como feito, por exemplo, em Bacurau, O Som ao Redor e Retratos Fantasmas.

Curioso, portanto, que, apesar de nos créditos iniciais analisarmos que O Agente Secreto, possuindo uma produção conjunta envolvendo outros países (Alemanha e França, por exemplo, e que é de suma importância para a projeção da obra no exterior em época de premiação), é um filme com sangue brasileiro, acolhedor e, ao mesmo tempo, funcionando como um exercício de gênero ao ambientar a obra no ano de 1977 – durante o governo do ditador Ernesto Geisel – e acompanhamos Marcelo (Moura) retornando a Recife como refugiado, tendo agentes da repressão em seu encalço (interpretados por Gabriel Leone e Roney Villela). Não sendo menos revelador que, ao iniciar o filme com a frase “uma época cheia de pirraça”, a obra denuncia um tipo de humor. Mas não julguemos isso como algo peculiar ou exaltação de nossa aura somente, mas um espaço para discussão, em que essa população se acostumou tanto à violência diária (vide a recente matança ocorrida no RJ) que acaba por normalizá-la, sem deixarmos de lado seu sincretismo religioso e tradições.

Interessante, portanto, que o roteiro do próprio diretor compõe Recife na época do carnaval, gerando esse contraste tão brasileiro. Ao mesmo tempo em que se situa a ditadura de maneira já tão entranhada que a corrupção torna-se endêmica, em que agentes e doutores são vistos com autoridade moral (mas podendo surgir cheios de paetês e marcas de batom numa cena de crime), e se orgulham da própria ignorância e pensamentos autoritários, como o fato de o personagem Hans (Kier) ser visto como ex-soldado alemão por acharem que seus ferimentos são de combate e não por ele ter sido vítima do Holocausto; apesar da insistência em vão de Hans em fazê-los compreender. Ademais, é revelador para gerações futuras (mas sem surpresas) que o pensamento autoritário seja perpetuado até hoje em situações como o fato de uma empregada ter perdido a filha pequena por descuido da patroa, devidamente confortada pelo aparato político para seu depoimento e estando ciente de que nada irá lhe acontecer, restando apenas o sofrimento da mãe.

O_AgentCartaz_brasileiro Crítica: O Agente SecretoAdemais, no mote principal da trama, temos a atuação de uma empresa privada agindo em nome de uma estatal (nas mãos da ditadura) para ganhos pessoais. Sendo sintomático o preconceito da dita elite que vê a universidade pública e seus pesquisadores (liderados por Marcelo) como inimigos (comunistas, óbvio) ou brasileiros inferiores por não serem do sul ou sudeste do país – e que deveriam resolver os problemas do nordeste, como se tais problemas não fossem causados por um contexto de décadas de abandono; remetendo à mesma lógica imbecil dessa elite na icônica sequência de Bacurau, em que os personagens do sul do país se acham mais europeus que brasileiros. Aliás, os brasileiros desse universo tão próximo que não podemos deixar de sentir um afago na alma ao sentimos toda a rede de ajuda daqueles personagens e suas histórias e dores como vítimas da repressão; seja uma vítima de violência doméstica ou um casal de angolanos. Inesquecível, portanto, é Dona Sebastiana, vivida pela atriz Tânia Maria de maneira tão divertida, com suas tiradas sinceras, sem jamais perder o foco do porquê todos estão ali. Dito isso, Wagner Moura é um bastião numa que é uma de suas grandes – mais uma – atuações da carreira. Inclusive, fica claro como o ator deixa transparecer sua alegria em determinadas cenas ao contracenar com aquelas pessoas. Marcelo é íntegro, sua presença na trama é potencializada não como algum visto como militante padrão vindo do imaginário, mas isso não o deixa de compreender que isso não o livra da perseguição por parte dos defensores da ditadura. Seu relacionamento com o filho é doce, uma vez que a ausência da figura materna (interpretada pela sempre ótima Alice Carvalho) torna a percepção sobre sua segurança cada vez maior e capaz de render momentos tão singelos quanto emocionantes, como visto no diálogo entre ele e filho sobre a mãe.  Aliás, esses momentos singelos são feitos com puro sentimento quando o diretor usa o cinema como base dramática do filme. Assim, o amor de seu Alexandre (vindo diretamente de Retratos Fantasmas) pela filha não mais presente é diretamente direcionado a Marcelo, criando um ciclo de sentimentos e preocupação.

Narrativamente brilhante, o diretor flui dentro de gêneros e homenagens sem qualquer problema. Misturando western, Tarantino, Irmão Coen, Spielberg e trazendo referência a Tubarão, Kleber Mendonça Filho é capaz de criar sequências tão distintas em seus sentimentos, mas absolutamente interligadas na história. Além da brilhante sequência da abertura, que praticamente funciona como um resumo do filme, tempos, por exemplo, a excelente perseguição ao capanga contratado para matar Marcelo ao som de Pífaros de Caruaru (em que cada segundo é uma explosão da nossa cultura), em contraste com a belíssima cena dentro da sala de projeção, com a câmera seguindo Marcelo e abrindo numa espetacular imagem do centro de Recife por meio da janela (já um dos mais belos planos do ano, sem dúvida). Isso sem contar a fábula de terror com a lenda da Perna Cabeluda servindo como outra exótica metáfora para uma violência que não se sabia como e quando iria aparecer, como se fossem os agentes da ditadura agindo. Aliás, a montagem de Matheus Faria e Eduardo Serrano permite até mesmo, além de posicionar de maneira clara as tramas e personagens paralelos, que ainda se permite usar isso como humor; vide o corte que menciona atirar na boca de um personagem para depois mostrar esse mesmo sofrendo um tratamento dentário ou numa ironia visual relacionando o local da cena final e o filme Tubarão. Fotografado por Evgenia Alexandrova com cores quentes que ampliam ainda mais a inserção do espectador dentro de Recife dos anos 70, por meio de lentes grandes angulares, acaba ressaltando ainda mais os cuidados, trabalho de recriação da capital e suas ruas, nos trabalhadores, nos veículos, carteiro com uniformes vintage, loja de filmes fotográficos e, claro, as propagandas dos filmes da época. Aliás, é interessante que podemos até usar isso tudo também como uma bela metáfora para uma época analógica, antiga, mas que o modus operandi da repressão.

Fora que Kleber Mendonça toma uma decisão que acho fundamental para a percepção do público, em que outro diretor facilmente cairia na armadilha de criar uma espécie de clímax dramático sobre o destino de Marcelo, por exemplo. Mas, deixando apenas que visualizemos uma foto, é mais que suficiente para entendermos a herança da época para as novas gerações de hoje, com acesso quase infinito às informações, e que precisam igualmente compreender que, apesar dos risos e das paixões do povo, não devemos esquecer que tudo aquilo fazia parte de uma bolha alimentada pela opressão, morte e fascismo. Houve inúmeros Marcelos, Donas Sebastianas, Rubens Paivas que carregam até hoje esses traumas e não podemos perder mais tempo como sociedade dando passos para trás, somente para voltarmos ao estágio anterior sem que realmente avancemos contra essas forças que teimam em ressurgir. O Agente Secreto – assim como visto em Ainda Estou Aqui – é brilhante em não deixar essas memórias em vão.

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Rodrigo Rodrigues

"Todo filme é político na medida em que política é toda forma de relação humana em que o poder está implicado" (Costa-Gavras)
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