Crítica: A Batalha da Rua Maria Antônia

Direção: Vera Egito
Elenco: Pâmela Germano, Caio Horowicz, Julianna Gerais, Philipp Lavra e Gabriela Carneiro da Cunha
O desconhecimento da nossa própria história é uma das consequências do porque o público tratar o cinema brasileiro com marginalização, devido às políticas públicas ineficazes para que esses filmes cheguem aos cinemas em quantidade e qualidade. Tirando exceções como “Ainda Estou Aqui” que despertou a sociedade sobre o assassinato do deputado Rubens Paiva pela ditadura, muito outros acontecimentos dessa época ficam quase esquecidos ou só esporadicamente são abordados; e quanto mais tempo passa (já se passou muito…), maiores as chances dessa mesma sociedade tratar esses assuntos como algo distante, sem maiores consequências – infelizmente, com décadas de impunidade e ascensão cada vez maior da direita /extrema direita, é um fato cada vez mais triste de constatar.
Portanto, como obra baseado em fatos reais, A Batalha da Rua Maria Antônia não tem nada de ficção e já se torna um dos melhores do ano.
Recontando os acontecimentos ocorridos no dia 02 de Outubro de 1968, quando alunos da USP (lutando contra a ditadura) entram em conflito com alunos do Mackenzie, majoritariamente frequentado pela dita “elite” e ideologicamente próxima ao regime – inclusive com agentes infiltrados e seu patético CCC (Comando de Caça Comunistas) – a obra entra no panteão de filmes obrigatórios para não esquecermos os horrores (mais um) da desgraça que se abateu no Brasil durante a ditadura militar (vide, por exemplo, Dossiê Jango, O Dia que durou 21 anos e, claro, Ainda Estou Aqui).
Narrativamente intrigante, dividindo seus 21 capítulos/planos em sequências (exatamente a quantidade de anos que oficialmente durou o regime) evidenciando a ação em tempo real, a obra da diretora Vera Egito é brilhante em conseguir tratar de maneira macro os conflitos e amores dos alunos – e professores – da USP – enquanto lutam para manter a democracia respirando; democracia simbolicamente representada nas ações para proteger a urna de votação do congresso estudantil (mesmo que essa urna esteja justamente no prédio à frente do Mackenzie, ficando sem explicação porque ela não foi destruída ou violada por eles, sabendo que era importante para o movimento estudantil contrário ao regime).
Criando um clima de tensão constante, a montagem é eficiente ao ligar os capítulos e levar a história a frente sem necessariamente perder o ritmo quando foca em alguns relacionamentos.
Claro que a decisão de “picotar” a obra tem uma questão custo/tempo que o beneficia e traz mais vantagens à trama que necessariamente tenta fazer tudo em um plano de 90 minutos. No entanto, algumas decisões soam ainda mais eficazes como o fato dos capítulos apresentados em ordem decrescente (tensão maior com sons de ponteiros de relógios ao fundo) e pela fotografia granulada em preto e branco de William Etchebehere enaltecida em seu tom de repressão pela razão de aspecto da tela sempre quadrada, como fotos e negativos esquecidos no tempo.
Aliás, é notável como a câmera não fica limitada e aproveita todos os espaços (internos e externos) do local; resultando em tensos e belos momentos como na cena que percorre todo um andar superior do prédio ao som de Roda Viva de Chico Buarque – um dos hinos contra o regime. Inclusive, um detalhe simples mostra toda preocupação da direção com o estado dos personagens, como o fato da aluna que toca a canção ao violão demonstrar um pouco ainda de inabilidade com as notas musicais; conotando a inexperiência natural pela pouca idade, mas tendo que enfrentar um momento tão crítico do país. Ademais, como narrativa, é bem vindo que a direção oculte a presença da polícia fazendo por temermos aquilo que não vemos, apenas sentimos esse temor junto dos estudantes, por algo que está a espreita esperando para agir; sempre violentamente, onde qualquer provocação é motivo para matar.
Chamados de “vagabundos” pela mesma classe média tacanha que permeia a sociedade até hoje que vê os alunos como “inimigos da pátria” por atrapalhar o trânsito enquanto arriscam suas vidas contra os militares que tomaram de assalto o país quatro anos antes, o comportamento inicial da jovem Lilian (Germano) é exemplo de ficar alheio a tais assuntos e é uma decisão ineficaz pois uma hora ou outra sua vida será afetada. Sua personagem é um encontro de paixões despertadas diante de um momento de violência. Dizem que a revolução não se faz sem amor, e Lilian é exemplo de conjunto dos sentimentos complexos que o filme traz. Seus sentimentos não correspondidos por Ângela (Castilho), cujo desaparecimento da irmã desta motiva suas ações, tornam-se um gatilho para se redescobrir como militante nos braços de outra pessoa, o que a torna ainda mais impulsiva e imprevisível para reagir contra um regime que irá tirar a capacidade de pensar, de viver e amar de todos aqueles jovens. O que torna a presença, por exemplo, de Benjamim (Horowicz) como líder estudantil, justificada. Seguido fielmente pelos outros alunos, Benjamim é um líder que mistura determinação e certa inocência, por exemplo, em acreditar que os militares – devido à lei – não podem adentrar o espaço da faculdade (algo que qualquer um, ao perceber a situação em que o país se encontrava, sabe que não seria a “lei” que impediria eles de fazerem isso).
Inclusive, esse tipo de relacionamento é espelhado para o corpo docente de maneira coerente devido às posições que ocupam. Sendo assim, a figura da professora Leda (Cunha) é igualmente importante por representar esse núcleo. Vendo que serão calados (com todo regime fascista faz) por carregarem o conhecimento e resistência a serem transmitidos aos alunos, os professores tornam-se uma espécie de barreira invisível entre a universidade e o regime; claro, que há aqueles que decidem apoiar o regime em troca de uma liberdade ilusória, mas uma vez que tal regime se impõe, ele não fará distinção.
Culminando em ações que impactam não somente pelo grafismo da violência (infelizmente esperada), A Batalha da Rua Maria Antônia conota um tom histórico ainda mais melancólico. Durante certo momento do filme, um professor brada aos seus alunos a importância da democracia e consequentemente o pensamento livre em prol de uma sociedade mais justa. No entanto, tais discursos acabaram sendo em vão pela implantação do famigerado AI-5 no fim daquele ano; onde a perseguição aos estudantes e qualquer pessoa que ousasse pensar diferente do regime aumentou de maneira mais violenta e autoritária enterrando de vez nosso estado de direito.
Se muitos daqueles estudantes ou professores nunca mais voltaram a ser vistos com vida, isso torna a conexão com os dias atuais ainda mais necessária; a luta pela democracia é diária e não podemos passar a cada eleição tentando impedir que nosso país seja alvo constante do fascismo. É desgastante? Sim, muito. Mas precisamos ir em frente! Aquela tarde e madrugada de 1968 ainda não acabou.

Rodrigo Rodrigues

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