Resenha: Reino do Amanhã (Kingdom Come)
Quando era criança, me lembro de um quadrinho do meu irmão que me chamou a atenção. Eu mal sabia ler, então a história parecia muito complicada de entender, mas a arte, os desenhos, eram de um nível que eu nunca havia visto, sobretudo em uma HQ de super-heróis. Mesmo sem entender plenamente a trama, eu tinha a nítida sensação de que aquilo se tratava de um quadrinho que marcaria a história.. Mal sabia eu que o que tinha em mãos era a série em quatro HQs, Reino do Amanhã (Kingdom Come), texto de Mark Waid e ilustração de Alex Ross.
Vinte anos se passaram da publicação dessa obra, e hoje, podemos dizer sem medo de errar que de fato esse quadrinho marcou não só uma geração, mas a própria história dos quadrinhos. Nosso objetivo hoje é entender a importância de Reino do Amanhã no contexto da indústria dos quadrinhos dos anos 90 e seu reflexo nos futuros desdobramentos da indústria das HQs até os dias de hoje.
Reino do Amanhã, é um quadrinho em homenagem ao Universo DC, lançado em maio de 1996, mas chegou no Brasil apenas no ano seguinte pela, Editora Abril, o que gerou grande expectativa nos fãs brasileiros que já aguardavam um material de alta qualidade, assim como Marvels, trabalho anterior de Alex Ross que homenageou o Universo Marvel, em 1994, e foi ovacionado pelo público, além de ganhar o famoso prêmio Eisner, principal premiação da indústria estadunidense de quadrinhos.
O enredo da história se passa vinte anos no futuro, o que seria nos dias de hoje, num mundo onde os super-heróis clássicos como Super-Homem, Mulher-Maravilha e Batman, não mais lideravam a famosa Liga da Justiça, e se afastaram do centro das decisões, abrindo espaço para novas gerações de meta-humanos assumirem as responsabilidades. Com as novas gerações no controle, o mundo caiu em caos devido aos inúmeros conflitos sem sentido entre estes novos heróis e às decisões inconsequentes que não visavam o bem-estar coletivo, principalmente dos cidadãos comuns e indefesos.
Diante deste cenário, o pastor Norman McCay é convidado a presenciar os acontecimentos que ocorreram a partir de então pelo Espectro, entidade que o torna como uma sombra que perpassa o mundo sem ser percebido enquanto acompanha o desenrolar da trama. O Espectro percebe que McCay possui um forte senso de justiça e entende a ruína a qual a humanidade se encaminha, portanto sua ajuda se torna fundamental para amparar o julgamento do Espectro, que como uma espécie de anjo do apocalipse, é incumbido de punir os responsáveis pelo mal que virá.
“Os deuses do passado não mais caminham entre os humanos, McCay. Levados pela rendição do Superman, eles partiram… Divorciaram-se dos homens comuns aos quais serviram com prazer um dia. Perdidos em antigas civilizações ou mundos futuros… eles deixaram a humanidade à própria sorte.” Assim define a situação o Espectro. E quando indagado sobre seu propósito pelo pastor, McCay exclama: “… você é um anjo… um mensageiro da esperança!… Um poder superior o enviou! Sua existência é um testemunho à fé! Você não pode ter vindo só pra me dizer que não podemos ser salvos!”
A ameaça de Armagedom não vem de um plano maligno de um supervilão, mas sim das ações dos supostos heróis que deviam proteger a humanidade. Dez anos antes do tempo presente da história, Super-Homem travou uma batalha nos tribunais com o intuito de punir Magog, um herói da nova geração que assassinou um supervilão, que não revelarei para evitar spoilers, após o mesmo cometer um atentado que tirou a vida de diversas pessoas, inclusive Lois Lane, a amada do Super-Homem. O desfecho do julgamento se deu com a absolvição de Magog, que venceu o pleito com larga vantagem devido ao apoio popular. Percebendo que seus ideais não mais representavam a vontade dos homens, o Homem de Aço se exila em sua Fortaleza da Solidão, deixando a humanidade à sorte de seus novos benfeitores.
O estopim ocorre quando Magog, e seu Batalhão da Justiça, encurralam um vilão, que sem opção de rendição ou fuga, parte para uma violenta resistência que resultou numa catástrofe nuclear que tornou o Estado do Kansas um enorme deserto radioativo. Frente ao cenário desesperador criado pela nova raça de super-heróis, o pastor McCay brada: “Você não entende? Para qualquer um de nós sobreviver, precisamos… agora, mais do que nunca… de esperança!”. E assim é marcado o retorno dos “deuses do passado”, mas como observado por McCay, “A ameaça do Armagedom não terminou. Ela apenas começou…”
Na edição definitiva de Reino do Amanhã, lançada pela Panini Books, em 2013, Mark Waid relata o início do projeto no capítulo “Daqui até o Reino do Amanhã”, na página 220. Waid diz ter sido convidado a participar do projeto de Ross, inicialmente intitulado A Era Heróica, pelo editor da DC, Dan Raspler, devido ao seu “conhecimento enciclopédico” do Universo DC. Apesar da confiança de Raspler em seu trabalho, Waid revela que não se entusiasmou muito com a notícia, pois não estava tão confiante em si mesmo e sabia a quantidade de trabalho e a responsabilidade que teria ao retratar o panteão de heróis da DC em um projeto tão audacioso.
É muito importante observar o contexto em que O Reino do Amanhã é lançado. No começo dos anos 90, a principal novidade do mundo dos quadrinhos estadunidenses foi a criação a Image Comics. Jovens escritores e desenhistas que trabalharam ao longo dos anos 80 nas principais empresas, DC e Marvel, optaram por inicia uma companhia própria onde teriam maior liberdade criativa e maior participação nos lucros gerados pelas histórias e personagens. Entre os principais artistas envolvidos, estavam Jim Lee, Rob Liefeld, Marc Silvestri, Todd McFarlane, Erik Larsen, Whilce Portacio e Jim Valentino.
Inspirados pela onda de anti-heróis que fez sucesso nos quadrinhos dos anos 80, os personagens da Image traziam visuais arrojados de heróis e heroínas musculosos e sensuais, com características conflitantes e ideais distantes do clássico super-herói que jamais cometeria um crime, quanto mais um assassinato. Os heróis da Image retratavam um mundo onde não se pode dar uma segunda chance ao vilão. Um mundo violento e hostil que oprime os fracos enquanto os únicos que podem subverter as injustiças são os mais poderosos. Quadrinhos como Spawn (1992), Gen¹³ (1994), WildC.A.T.s (1993), Witchblade (1995), dominaram as prateleiras, levando a Image ao posto de segundo lugar no ranking da indústria dos quadrinhos, ficando atrás apenas da Marvel. Hoje em dia a Image e a IDW Publishing disputam o terceiro lugar, uma vez que a DC e a Marvel voltaram ao seu eterno embate pelos primeiro e segundo lugares do ranking.
Você deve estar se perguntando: o que isso tudo tem a ver com Reino do Amanhã? Pois bem, caro leitor, lembra-se da nova raça de super-heróis que não possuíam os ideais e a moral dos antigos paladinos da justiça? Uma coincidência e tanto, não é? Sim, podemos entender O Reino do Amanhã justamente como uma crítica ao momento que se encontrava a indústria dos quadrinhos.
Na edição número 11, de junho de 1997, a revista Wizard, periódico especializado em HQs, o escritor Craig Shutt escreveu uma matéria completa sobre a obra de Waid e Ross que estava prestes a ser lançada no Brasil. Na matéria encontramos uma entrevista com Alex Ross e Mark Waid onde os autores revelam suas intenções com o quadrinho. Shutt observa, “Ele [Ross] não nega que queria usar a série pra explorar alguns de seus pensamentos sobre o estado da indústria dos quadrinhos de hoje.” Alex Ross define o momento, “Pra mim parece que nos quadrinhos de hoje só existem gangues enfrentando gangues… Em todas, DC, Marvel, Image, só temos pessoas brigando sem muita razão…”. Mark Waid em seguida acrescenta, “começamos com uma brincadeira: ‘o que aconteceria se o Universo Image invadisse o Universo DC?”
Reino do Amanhã, é uma obra repleta de detalhes que tornam a experiência mais interessante. A escolha de personagens como Alan Scott como Lanterna Verde, o visual do Flash com o famoso capacete com asas dos anos 40 e o símbolo do Super-Homem, dão sinais de que a inspiração para os “deuses do passado” veio da Era de Ouro dos Quadrinhos, período conhecido pelo primeiro auge da indústria dos quadrinhos, durante a década de 1940, a partir da primeira edição da Action Comics, quadrinho que introduziu não só o Homem de Aço, mas todo o gênero dos super-heróis, em 1938. Outro detalhe interessante está no nome do protagonista, o pastor Norman McCay, Norman é o nome do pai de Ross, Clark Norman Ross, que inclusive é o modelo que o artista se inspirou para ilustrar o pastor, enquanto McCay vem de Winsor McCay, um dos primeiros artistas a produzir quadrinhos nos Estados Unidos e criador das histórias de Little Nemo in Slumberland, de 1905, onde retratava os sonhos de um garoto que protagonizava aventuras fantásticas.
O legado deixado pela icônica série Reino do Amanhã se estende até os dias de hoje. Mais que uma crítica ao declínio do gênero dos super-heróis nos anos 90, Ross e Waid propõem uma solução para o futuro: olhar para o passado. Nos anos 2000, podemos ver que os heróis não saíram de moda, pelo contrário, seus laços com o público foram renovados através das milionárias adaptações de suas histórias para o cinema e a série de reboots realizada nos quadrinhos das principais editoras para atualizar as tramas de acordo com o cenário do século XXI. Esse ano a DC Comics anunciou sua nova reformulação de seu universo ficcional, o projeto foi chamado de Rebirth (Renascimento), e como Geoff Johns, diretor criativo da DC, definiu, o objetivo do projeto é voltar à essência dos personagens clássicos. Sacou a influência?
Agora queremos saber sua opinião… Já leu Reino do Amanhã? Como foi sua experiência? Ainda não leu? Espero que tenha despertado seu interesse por essa obra imperdível que completou seus vinte anos em 2016 e certamente ainda será lembrada daqui outros vinte!
Raul Cassoni
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Ótima resenha. Saber mais sobre o contexto em que a HQ foi feita com certeza vai melhorar a experiência quando eu finalmente pegar O Reino do Amanhã pra ler, hehe.
Obrigado, Karina! Espero que você se aproveite bastante essa HQ que tem seu lugar na história e no meu coração rs.
Raul explica melhor isso de que Marvels foi homenagem à Marvel e Reino do Amanhã foi homenagem à DC… não entendi
Explico sim, Gaballo. Marvels retrata o surgimento do Universo ficcional da Marvel através da perspectiva de um protagonista, que assim como em Reino do Amanhã, é um sujeito comum, no caso um fotógrafo. A ideia é semelhante ao Reino do Amanhã, que seria propor que os super-heróis existisse na realidade e sendo assim, qual seria o impacto, a influencia disso no cidadão comum. Alex Ross e Kurt Busiek traçam um paralelo histórico onde de acordo com o lançamento dos heróis nas HQs, seria o surgimento dele na realidade, por exemplo, o primeiro super-heróis da Marvel foi o Tocha Humana em 1939, então é aí que em Marvels, surge o primeiro ser “Maravilhoso” na realidade. E assim os autores vão te apresentando todo o Universo Marvel perpassando os principais eventos que ocorreram nas HQs numa belíssima homenagem à Marvel. Já em Reino do Amanhã, o caminho é parecido, mais invés de apresentar o nascimento do universo ficcional dos heróis, Alex Ross e Mark Waid propõem o final desse Universo da DC em tom apocalíptico, como na Bíblia, e assim os autores também vão se referir à uma infinidade de detalhes da história do Universo DC. Futuramente vou escrever uma resenha sobre o Marvels.. é outra obra imperdível.