Review: Kimi wa Pet
No caminho para casa, Sumire Iwaya encontra uma grande caixa na calçada e, para sua surpresa, ela se depara com um rapaz ferido dentro da caixa. Assim como um animal abandonado, ela decide levá-lo para casa até que ele fique bem. Nisso, ela acaba se acostumando com a presença do jovem em sua casa e até coloca nele o nome de Momo (em homenagem a um antigo cachorrinho seu). Assim se inicia Kimi wa Pet, uma comédia romântica cheia de altos e baixos envolvendo não só Sumire e Takeshi Gouda (Momo), mas também vários outros personagens fundamentais para dar vida a esse mangá ilustrado e escrito por Yayoi Ogawa.
Kimi wa Pet é um mangá interessante porque além de ter uma história envolvente e divertida, apresenta uma personagem que representa bem alguns dos dilemas enfrentados pelas mulheres japonesas.
Sumire é uma adulta esforçada, inteligente e independente, que se formou numa universidade renomada e realiza um ótimo trabalho como jornalista na sua empresa. Apesar de todas as suas qualidades, ela enfrenta problemas no trabalho e na vida amorosa. No trabalho, o fato de ser uma mulher bem-sucedida, ao mesmo tempo que gera admiração por parte de alguns, também gera discriminação entre colegas e superiores. Isso porque a sociedade japonesa é bastante patriarcal e existe uma forte divisão entre o que seria trabalho para mulheres e para homens. O fato de ser jornalista, aliás, é uma carreira seguida por poucas mulheres. Jake Adelstein conta como era a situação das suas colegas durante o tempo em que trabalhou para o Yomiuri Shinbun:
“Existe uma ‘vibe de macho’ em todo o departamento, e as mulheres são poucas. Em 2003, havia cinco ou seis mulheres num universo de uma centena de repórteres no departamento. Para sobreviver na seção local de notícias, as mulheres têm que aturar os péssimos horários igual aos homens, devem servir bebida nos copos deles em ocasiões sociais e nunca podem reclamar. Em vários sentidos, elas têm que trabalhar mais arduamente que os homens.”
Apesar de pedras no caminho, Sumire sempre dá o melhor de si, provando seu valor. Mas sua vida amorosa também passa por alguns percalços. Por ser mulher, seus pretendentes sentem que o fato de ela ganhar mais ou estar numa posição social mais alta do que eles é “errado”, e isso resulta em namoros frustrados.
Apesar de tudo, Sumire se sente realizada com seu trabalho e esse é um dos motivos pelos quais decidiu seguir a carreira. No entanto, ela tem vontade de se casar. Muitos podem se perguntar: e qual o problema? No Japão, para as mulheres, casamento e carreira não se conciliam tão facilmente. Se em muitos casos a mulher que se casa tem uma dupla jornada de trabalho (fora de casa e dentro de casa), no Japão, isso também ocorre, e apesar de exceções, ainda persiste uma tendência de que, assim que se casarem, elas deverão abandonar a carreira que construíram e se dedicar às tarefas do lar e ao cuidado dos filhos. Lá, essa tendência é mais pronunciada que no Brasil, por exemplo.
Além disso, nossa protagonista já está quase passando do que consideram a idade ideal para se casar, o que a faz sentir-se pressionada até para agradar sua família, que chega a tocar no assunto de omiai, ou seja, um encontro com um possível pretendente que ela talvez nem conheça. Para nós, brasileiros, algo assim pode parecer estranho e pouco natural, mas no Japão ainda existem os casamentos “arranjados”, não totalmente independendes da vontade dos noivos, (como era comum até os anos 1960, em que os pais escolhiam os pretendentes de seus filhos praticamente obrigando-os a se casar), mas por meio de recomendação familiar ou até agências de casamento, encarregadas de facilitar o encontro de pretendentes em potencial para que conversem, se conheçam um pouco e, quem sabe, se casem. Essa prática conhecida como omiai é até hoje um método bastante utilizado.
Sumire tenta escapar dessas recomendações para resolver a questão sozinha. Ao que parece, ela prefere um casamento por amor. Aquele que se concretiza a partir de uma evolução que conhecemos bem: primeiro namoramos, adquirimos intimidade e conhecimento sobre uma outra pessoa, sempre colocando nossos sentimentos na balança para, só depois, partir para o casamento. Para a sorte dela, existe uma pessoa que ela gosta e volta a namorar depois que a vida os reúne novamente: o seu senpai (veterano) da época de faculdade, Shigehito Hasumi.
Hasumi-senpai é o homem ideal para os padrões japoneses: bem-sucedido financeiramente, mais velho, e com o bônus de ser compreensivo e gostar muito dela e ela dele, mesmo Sumire não se sentindo tão confortável na sua presença, por ela tentar manter a imagem de namorada ideal sempre que estão juntos. Mesmo assim, a possibilidade de um casamento entre os dois é quase certa. No entanto, como foi dito anteriormente, Sumire tem Takeshi dentro de sua casa, o rapaz de estimação que ela chama de Momo.
O jovem Takeshi é um dançarino talentoso, mais novo que ela, brincalhão e otimista. Ele realmente age como um pet quando está perto de Sumire, sua “dona”, que lhe garante abrigo e comida enquanto os dois estiverem nessa relação. Momo é um grande companheiro e com ele a protagonista consegue relaxar e ficar à vontade. Sumire sabe que, assim que se casar com Hasumi, ela precisará tomar uma decisão quanto ao destino de Momo, a quem ela se apega cada vez mais conforme vivem juntos. Logo, ela precisará se decidir entre Hasumi-senpai e Momo.
O segredo de Sumire é quase descoberto por Hasumi-senpai algumas vezes, o que leva a situações engraçadas na tentativa de esconder a verdade, e Momo se passa pelo primo de segundo grau da protagonista sempre que a ligação dos dois vem à tona. Num tom cômico, a autora do mangá retrata um caso de traição emocional. Mesmo que Momo e Sumire não se relacionem fisicamente, os dois têm fortes sentimentos um pelo outro e vemos que a moça parece gostar tanto do seu Momo quanto do seu namorado. O fato de ela fazer disso um segredo e mentir para Hasumi-senpai várias vezes sobre a sua verdadeira ligação com Takeshi reforça ainda mais esse tipo de traição.
Temos, então, uma protagonista com várias qualidades, mas que também tem defeitos e não age tão corretamente de um ponto de vista moral. Indecisão, mentiras e segredos levam a acontecimentos que tornam Kimi wa Pet uma história com situações inusitadas e também realistas, com reviravoltas e surpresas. Recomendo o mangá para quem gosta de uma boa comédia romântica com drama. A comédia é hilária muitas vezes, e o drama pode arrancar lágrimas dos leitores mais sentimentais. É um bom mangá para quem gosta de rir e se emocionar.
Kimi wa Pet foi serializado de 2000 a 2005 na revista japonesa Kiss, totalizando 14 volumes, e apesar de não ter adaptação para anime, foi adaptado para um dorama (série televisiva japonesa) de 10 episódios e uma adaptação cinematográfica sul-coreana. O mangá venceu o Kodansha Shoujo* Manga Award (mesmo sendo um josei**) em 2003 e foi lançado nos EUA pela editora Tokyopop (com o título de Tramps Like Us) e também licenciado na Alemanha, França e Itália. Além disso, este ano foi anunciada uma nova adaptação para dorama.
* Shoujo: mangá voltado para o público feminino jovem.
**Josei: mangá voltado para o público feminino adulto. Apesar do público-alvo, Kimi wa Pet é um mangá também apreciado por leitores do sexo masculino.
Referências:
Japan: why so few women journalists? – Reiko Ishiyama
Lovesick Japan: sex, marriage, romance, law – Mark D. West
Tokyo Vice: an American reporter on the police beat in Japan – Jake Adelstein
Karina Moreira
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