Crítica: Uma Mulher Fantástica
Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantastica)
Diretor: Sebastián Lelio
Elenco: Daniela Vega, Francisco Reyes, Luis Gnecco, Aline Küppenheim, Nestor Cantillana, Amparo Noguera, Alejandro Goic, Sergio Hernandez e Antonia Zegers
Mulher Fantástica é uma contundente, podemos dizer assim, herança dos momentos em que a discussão sobre ao transexualidade é abordada sem estereótipos e tratadas em circunstâncias que fogem ao contexto como uma obra de Almodóvar ou os icônicos Meninos não Choram e Transamérica. Portanto, a obra do Sebastián Lelio não é bem sucedida somente neste quesito, mas também na maneira que sua narrativa invoca um elogiável sentido de naturalidade para a protagonista dentro de uma estória de autoafirmação diante da sociedade e a necessidade da protagonista exercer o mais humano e belo sentimento: o amor.
Trabalhando como garçonete durante o dia e a noite como cantora , Marina (Daniela Vega numa atuação profunda e verdadeira) acabou conhecendo Orlando (Reyes), um homem bem mais velho que trocou a esposa para viver o romance com a artista. E como o filme já inicia com o relacionamento estabelecido, é elogiável que a obra se dedique ao relacionamento com Orlando mostrando delicadamente o prazer da companhia de Marina apenas com o fato de sorrir discretamente ao vê-la cantando; e claro ao tratamento dado pela direção beirando ao espontâneo e instintivo sem precisar colocar-se de maneira expositiva o romance de um homem e uma transexual, mas sim, repetindo, de duas pessoas que realmente sentem-se bem com a presença do companheiro.
Entretanto, devido a um acidente com o amado, Marina irá sofrer com o preconceito da família e todo sentimento de culpa que recairá sobre ela. Neste momento, o filme abre margem para as discussões, servindo à proposta preconceituosa dos personagens secundários. Seria a reação da família de Orlando proporcional ou justificada caso o abandono fosse para outra mulher dita “normal”? Assim é elogiável ao conotar o preconceito e atitudes de pessoas que ditam regras dizendo para gays se “darem o respeito” (seja lá o que isso for), mas ao mesmo tempo chamam Marina de “monstro” (algo típico da “família tradicional”) – até porque são as mesmas pessoas que agridem e ofendem em nome da “família e dos bons costumes” passando longe de qualquer exercício de amor ao próximo. Portanto, quando o roteiro do diretor em conjunto de Gonzalo Maza se sobressai pelo simples em tratar tal relacionamento de maneira fluida entre duas pessoas adultas, faço apenas um exercício de ironia ao invocar a palavra ”normal”, lembrando que nos dias atuais infelizmente a palavra tem uma abrangência excludente e preconceituosa, disfarçada de “opinião”.
Estes detalhes de reconhecimento diante da sociedade e suas devidas reações são representadas de maneira lúdica. Se Marina tem a aceitação, respeito e afeto dos familiares e amigos do trabalho é proporcionalmente inverso que a recíproca aos poucos vai sendo inserida gradativamente em conjunto com o desconforto e ignorância de parte do restante dos personagens. Como o fato de Gabo (Gnecco) sem saber como cumprimentar Marina com um beijo no rosto ou um masculino aperto de mão (de certa maneira um comportamento involuntário e sutil). Ou o fato das próprias autoridades, representadas na figura da policial Adriana (Noguera), se apresentarem com uma inicial compreensão, mas sendo transformada numa inabilidade total em preservar e respeitar o corpo de Marina e seu estado psicológico. Contudo, quando chegamos ao comportamento da família de Orlando, tal elemento é escancaradamente intrínseco e igualmente preconceituoso pelo fato da mesma jamais aceitar que o marido tenha largado tudo para ficar com Marina.
Assim quando a ex-esposa Sonia (Küppenheim) confronta Marina não estamos diante de duas mulheres discutindo uma relação com um elemento em comum somente como um drama familiar, e sim, um estado disfarçado de incredulidade com ignorância, onde é impossível tal elemento dar margem para qualquer tipo de diálogo. Portanto, quando Sonia ofende Marina de maneira cruel (“você é uma Quimera!”) ou oferece dinheiro como se fosse este o motivador de um romance da protagonista, dói ao percebemos no rosto de traços definidos de Marina que nada mais pode fazer além de sentir uma resignação e resiliência.
Mas a questão da autoafirmação de Marina se dá através de pequenos momentos em que a narrativa se propõe a levar ao espectador uma pequena dubiedade da personagem. Se por vezes a vemos extravasando suas dores demonstrando força (como dar um soco naquelas máquinas de parque de diversões) é interessante como a direção jamais deixa transparecer a dúvida na mente de Marina que pudesse levar ao espectador a pensar numa indecisão sobre sua orientação sexual – algo que algumas pessoas adorariam que acontecesse. Até porque a direção jamais deixa claro se Marina fez a intervenção cirúrgica ou não para mudança de sexo (algo inteligentemente ocultado pela direção).
Trazendo por vezes planos que remete a personagem se julgando diante de sua imagem, é emblemática (e uma das mais marcantes do ano) a cena no terceiro ato carregado de simbologias em que Marina posiciona um espelho entre as pernas ocultando seu sexo. E, mesmo frustrando uma possível curiosidade do espectador, tal resolução da direção se torna inteligente e importante para fortalecer o aspecto feminino e de que Marina se vê como mulher e isso é o que importa para ela e que devemos considerar. Inclusive é interessante que o roteiro apresente resoluções para algumas situações de maneira contextualizada e delicada, como na sequência ocorrida dentro de uma sauna onde, para se “misturar” entre os homens, Marina apenas muda a toalha da parte de cima (representando o feminino) para a parte de baixo (para representar o masculino).
Finalizando de maneira que não oferece uma grande recompensa à protagonista apesar da sua procura, Marina ratifica toda sua força para prestar a última homenagem e as poucas lembranças que restam de Orlando. Todavia, a jovem sabe que terá um longo e novos caminhos durante a vida. E assim é fundamental que possamos, como sociedade, não atrapalharmos esse caminho, inclusive de outras Marinas.
Nota 4/5
Rodrigo Rodrigues
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sou homem e hetero portanto nao me identifico com os personagens e assisto o filme como se fosse um cujos protagonistas fossem crianças, por exemplo, ou seja, de forma “distante”, mas pra quem se identifica com eles deve sim ser legal e importante se ver representado na tela, algo como um balconista ver um filme em que o protagonista é balconista e a historia mostra um pouco de como é o dia a dia de sua profissao
Ditinho
Bem vindo
A identificação dentro de um filme passa um pouco longe do protagonista ter os mesmos dilemas do espectador em si. Caso seguíssemos esta lógica, eu também não me identificaria com o filme por ser hétero.
Assim como não me identificaria, caso o filme fosse protagonizado por uma mulher, e as mulheres não se identificariam com um filme protagonizado por homens – a grande maioria diga-se de passagem.
A identificação é feita através da narrativa e de como os conflitos e dramas dos personagens (seja ele bom ou ruim) podem causar algum sentimento no espectador com aquela historia. Claro que se um personagem passe por alguma situação idêntica do espectador (uma perda familiar, por exemplo) este terá uma envolvimento maior. Ou se alguma minoria ou grupos se veem na tela, é lógico que o filme terá um alcance maior – até porque , como expressão artística, o cinema deve exercer esta inclusão.
Entretanto, isso não excluiria a pessoa que não passou por aquilo. Se o filme for bem escrito e dirigido os assuntos atingirão todos os espectadores de maneira universal.
Assim, no caso de “Uma mulher fantástica”, a identificação é bem sucedida por fazer com que o publico se importe se envolva com as dificuldades da protagonista com relação ao preconceito da sociedade. Obviamente você não é obrigado a se identificar com o filme, mas usar o fator orientação sexual não é válido.
Abraços
dificil pra alguns se acostumar em achar isso normal, mas a verdade é que achar ou nao normal, nao é desculpa, tem que respeitar e tratar igual sim, tem que acabar isso de pq é diferente (ou “anormal”), tratar mal, excluir, ter preconceito… todo mundo tem direito de ser o que quiser, tinha que ser todo mundo bem tratado
Inciso
Obrigado pelo comentário,
Isso ai. Ninguém tem o direito de fiscalizar a orientação sexual de outras pessoas.
Abraços