Crítica: Arábia
Direção: João Dumans e Affonso Uchoa
Elenco: Aristides de Sousa, Renan Rovida, Renata Cabral, Gláucia Vandeveld, Murilo Caliari e Wederson Neguinho
Nota 4/5
O Cinema tem como excelência trazer a percepção dos fatos, servir como reflexo da sociedade e principalmente, como arte, fazer com que grupos (de excluídos, normalmente) consigam se enxergar na tela. Tal premissa pode ser vista, por exemplo, em Central do Brasil, Cidade de Deus, Quer Horas Ela Volta?, Vidas Secas e outros tantos clássicos do Cinema Brasileiro. Portanto, exercendo um grande poder de identificação sobre o público, Arábia (dos diretores João Dumans e Affonso Uchoa) é mais um filme de alma e identidade brasileira, emanando um poder de empatia para pessoas, como dito antes, quase desconhecidas da sociedade, ou que muitos fazem questão de desconhecer.
Depois de um acidente ocorrido numa fábrica em Ouro Preto, Minas Gerais, o jovem André (Caliari) é incumbido de ir à casa do acidentado, Cristiano (Sousa) e pegar seus pertences, enquanto o mesmo é atendido. Todavia, o rapaz encontra no local um caderno como as anotações e lembranças do operário durante suas andanças pelo interior do Brasil. É neste momento que Arábia mostra toda a sua relevância como obra cinematográfica e que, como dito anteriormente, é um filme sobre o brasileiro comum, o trabalhador ignorado e tratado como uma peça descartável.
Arábia conta com uma estrutura sem uma linha reta na história e sem um inicio, meio e fim clássicos, por assim dizer, por tratar de maneira episódica a jornada de Cristiano em busca de algum alento, um emprego que traga um pouco da dignidade antes perdida por ser um ex-presidiário. E dentro deste road movie com alma brasileira, a obra traz assim casos, pessoas, dramas, amores, medos, inseguranças e principalmente injustiças nas quais vamos sendo apresentados; e de como aquilo reflete em nosso cotidiano de maneira crua. Assim, o longa não deixa inócua a perspectiva do público, uma vez que Cristiano atravessa verdadeiras provações miseráveis, que servem como uma tapa na cara (com se isso fosse necessário) dos defensores da meritocracia “pura” e suas recompensas pelo esforço vindo do trabalho.
Trabalhadores vivendo sem carteira assinada e sendo as maiores vítimas de uma sociedade que, por exemplo, apoiam a retirada de direitos dos trabalhadores mais vulneráveis em nome do mercado. Anônimos que, como a cuidadora da cidade em que mora André, pontuam sua existência como arautos de altruísmo para pessoas que precisam de auxilio ou de alguém que possa apenas ouvi-las (não sendo a toa que a direção foque a atriz quase sempre ocultando seu rosto).
Desconhecidos que fazem parte de um ciclo que se repete quase ininterruptamente como visto na figura de um velho morador chamado simplesmente de “Zé”, com quem Cristiano conversa brevemente numa pequena cidade. Indivíduo este que, enraizado naquele local e que se não fosse o filme, não nos daríamos conta de sua existência no mundo real e sua luta no passado para melhorar um pouco as condições dos trabalhadores locais, inclusive mencionando a inspiração nas lutas feitas em São Bernardo lideradas por Lula – sendo sintomático que o tal “Zé” tenha sido rotulado como desagregador pelos patrões, como é de praxe pelos donos de terras que somente visam o lucro.
O roteiro de Affonso Uchoa e João Dumans aposta em diálogos simples (como os personagens) e aleatórios no início da obra o que pode causar certa ausência de dinamismo e estranheza, como na conversa entre Renan e seu irmão sobre religião e cotidiano. Todavia, o restante é compensando a partir do momento que somos apresentados à saga de Cristiano – mesmo usando o recurso da narração em off que nem sempre se torna eficiente na narrativa. Contudo, devemos lembrar que os atores, em parte semiprofissionais, neste caso, trazem a verossimilhança e credibilidade perfeita a obra, onde até mesmo a trilha sonora soa de maneira diversificada e mais brasileira impossível por ir de Mano Brown, Raul Seixas com (“Cowboy Fora da Lei”) até Maria Bethânia (“Três Apitos” de Noel Rosa) para embalar as cenas de expurgos que Cristiano atravessa durante sua jornada (assim como canções que remetem ao típico cancioneiro popular brasileiro).
Cristiano não busca algum tipo de vingança, uma “grande recompensa final”, mas alguma oportunidade de se estabelecer e viver (e não mais sobreviver) de maneira digna, e dentro deste fluxo, o protagonista se torna um exemplo (des)conhecido de milhões espalhados no país afora (como podemos exemplificar no simples diálogo, mas cheio de veracidade e realismo, entre o protagonista e outro trabalhador comparando se um saco de cimento é mais pesado que carregar telhas). Uma espécie de Macunaímas solitários que vão e vem na frente dos nossos olhos através das estradas e interior de um país cuja elite cisma em ignorar em suas visões políticas.
Inclusive, por momentos a obra mostra um exercício ainda maior de solidariedade e reflexão por fazer com que o próprio Cristiano tenha alguma consciência de seus direitos como trabalhador e ser humano quando o mesmo se insere dentro de pequena peça de teatro que provavelmente despertou sua necessidade de escrever sobre suas vidas como um testemunho – comprovando a grande importância que a própria arte tem para a formação da pessoa, por mais simples e desprovida que ela possa aparentar (e é ainda mais revoltante ver parte da nossa sociedade tratar tal elemento como descartável quando se trata das classes mais baixas tentando buscar algum tipo de informação sobre eles mesmos). E para tudo isso, é elogiável a presença de Aristides de Souza emanando sinceridade e força através de seu Cristiano, cuja autenticidade está mais que intrínseca no ator, por este ter convivido com esta realidade.
Enfim, sem precisar usar qualquer artifício para criar as emoções e moldando a obra aos desafios de Cristiano, Arábia é uma peça de um grande mosaico inserido na nossa sociedade, e é duramente triste e importante percebermos aqueles indivíduos desiludidos sempre à margem da nossa sociedade. Um filme que serve como resposta (e motivação para mudar) para todos que ainda teimam em desprezar estes igualmente brasileiros.
Rodrigo Rodrigues
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Ccusra
Bem vindo
Obrigado pelo comentário. Os atores que em sua maioria não são profissionais, ajudam a criar o sentido de realidade que a obra pede. É um tipo de abordagem que infelizmente podem torcer o nariz mesmo
Abraço e o convido para ler nossas outras críticas!
assisti isso ai, tecnicamente concordo que tudo foi muito bem feito sim, apesar de muitos vao torcer o nariz pro ritmo e pros atores, eu gostei, acho que é super válido que o cinema nacional retrate essa realidade