Crítica: Roma
Direção: Alfonso Cuarón
Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Marco Graf, Daniela Demesa, Nancy García García, Verónica García, Jorge Antonio Guerrero e Fernando Grediaga
Nota 5/5
Em certo momento Roma, de Alfonso Cuarón, não estava me deparando somente com as recordações do diretor e sua infância no México no bairro que dá nome ao filme, mas minhas próprias lembranças quando criança, como objetos, pessoas e situações simples e corriqueiras que me transportaram para décadas atrás, e que aos poucos foram sendo levadas pelo tempo. As roupas sendo penduradas no varal, o cachorro que cresceu com as crianças, as brincadeiras na casa de parentes e até mesmo observado meu pai estacionando o carro dentro de uma garagem pequena e apertada. Lembranças que se consolidam nos rostos de pessoas que ajudaram no meu crescimento e sobrevivência, independente de serem parentes ou não. Contudo, tais sentimentos não são exclusividade minha e por serem tão pessoais quanto coletivos, engrandecem ainda mais as qualidades da obra.
Deste mesmo modo conhecemos Cleo (Aparicio) vivendo com sua amiga Adela (Garcia) em um pequeno anexo à casa da família de classe média alta no início dos anos 70, ela trabalha como empregada e babá da família formada por Sra. Sofia (Tavira), seu marido Sr. Antonio (Grediaga) e os quatro filhos do casal: Toño (Autrey), Paco (Peralta), Pepe (Graf, que seria a personificação do diretor quando criança) e Sofi (Demesa), mas uma série de acontecimentos muda para sempre o contexto daquelas pessoas, principalmente Cleo.
Filmado de maneira impecável (entrarei em detalhes mais a frente), o longa de Cuarón traça de maneira absolutamente pessoal um ambiente familiar, ao mesmo tempo em que abrange de maneira sutil – e contundente – todo um contexto social e político de um país, onde a presença de Cleo se torna o ponto de equilíbrio da casa, principalmente pelo afeto e carinho que as crianças têm para com os demais passar diretamente pela presença da jovem Cleo. Obviamente que a primeira coisa que vem em mente é o paralelo que Roma faz com o filme Que Horas Ela Volta?, mas se na importante obra de Anna Muylaert o conflito de classes tem um exponencial a mais com a filha da empregada interpretada pela Regina Casé, aqui os dilemas são vistos de maneira em que a linha tênue entre a situação de Cleo e seu relacionamento com a patroa é quase um arco feminista conjunto por serem duas mulheres que se encontram solitárias (“Todas as mulheres sempre estão sozinhas’’) devido ao abandono masculino, cujas figuras sempre são vistas como covardes.
Mas ratificando, isso não significa que a direção amenize as diferenças e contrastes. Pelo contrário, inclusive em vários momentos o longa aponta nas feridas do descaso político e social em que a população mais carente sofre – uma espécie de tratamento de pão e circo à moda antiga com governantes prometendo melhorias que nunca serão cumpridas em meio a lama e pobreza. Ademais, a direção expõe de maneira lúdica através de rimas visuais, todas estes contrastes entre as realidades com que Cleo está mais familiarizada e o ambiente em que trabalha. Em determinado momento, por exemplo, vemos os filhos de Sofia brincando com os primos e um deles com uma fantasia de astronauta em contraponto ao um menino com um balde na cabeça aludindo a um capacete naquele mesmo bairro pobre e eslameado. Neste momento é importante ressaltar que o contexto espacial é de grande influência na vida do diretor, o que nos remete imediatamente ao fato de Sem Rumo no Espaço (1969) ser exibido em um cinema e tal obra servir como inspiração para Gravidade (2013).
A linha tênue entre o amor de Cleo e o tratamento deferido pelas crianças é constantemente quebrada por não nos deixar esquecer que, apesar de tudo, ela ainda é a empregada da casa, não sendo a toa que mesmo em um momento de aconchego entre ela a família assistindo TV, a jovem tem seu momento de comodidade e afeto interrompido quando mandada a cozinha para fazer um chá para Antonio. Ou quando a família vai visitar parentes para comemorar o natal, e apesar da brincadeira entre as crianças e o tom alegre, ainda estamos falando de uma elite (se divertindo, inclusive, com armas) que segrega os “funcionários”, comemorando em um local a parte deles. Ou seja, pessoas que dificilmente os patrões recordam de seus sobrenomes ou aniversário, recordando apenas de suas funções e tarefas domésticas.
Ademais, aproveitando uma atmosfera fantasiosa, até porque como um filme de recordações isso é mais que inerente pelo próprio cinema ser um fluxo de sonhos, Cuarón inclui uma sequência quase que surreal (mas sem jamais sair do contexto da obra) como visto na sequência durante uma demonstração de um grupo de artes marciais no bairro pobre que Cleo visita ao tentar encontrar o paradeiro de Fermín (Guerrero), com quem teve um relacionamento breve. Temos ali uma clara conotação política, uma vez que aquele grupo de praticantes provavelmente foram recrutados pelo governo para agir em protesto contra estudantes, situação demonstrada na sequência da reconstituição do massacre de Corpus Christi que vitimou mais de cem pessoas em junho de 1971 – e neste contexto, o diretor, insere um belíssimo contexto religioso puxado diretamente de Filhos da Esperança (2006) quando em um dos mais belos planos do filme, cria uma referencia a Pietá de Michelangelo.
Narrativamente brilhante, Roma é capaz de trazer em cada plano sentimentos ocultos destas recordações e simbolismos em diversos aspectos em seus detalhes. Mostrando total controle, Cuarón investe o filme inteiro em longos planos imergindo o público totalmente naquele cenário familiar sem necessariamente apostar em planos mais fechados ou closes. Isso, no entanto, não impede que os movimentos laterais e travellings tirem a impessoalidade da obra, até porque tais movimentos se tornam belíssimos e fluídos, como podemos ver em um momento em que a câmera faz uma espécie de giro de 360 graus quando Cleo sai do andar de cima até a parte debaixo da casa. Elogiável também que a trilha sonora invista de maneira diegética (som vindo do próprio filme) na lógica daqueles ambientes, novamente, remetendo à memória do diretor assim como todo o longa. Então, ao contrário de uma trilha sonora mais tradicional, o filme investe em sons engrandecendo a perturbação e estado de confusão de Cleo, como por exemplo, através do barulho vindo dos ambulantes ao redor dela ou uma banda de música que insiste em atravessar o caminho de Sofia durante alguma momentos de perturbação devido a separação, isso quando não desconta sua raiva na tentativa de estacionar um grandioso Galaxy na garagem.
Mantendo um design de produção igualmente impecável, Roma traz uma reconstituição de época primorosa, sem jamais desperdiçar os elementos em cena que sempre causam uma nostalgia (daqui a pouco ficarei sem adjetivos), onde constantemente são inseridos elementos que surgem como lembranças vivas, como o surgimento de um vendedor de bexigas, um sorveteiro ou um amolador de facas oferecendo seus serviços pelas ruas tranquilas do bairro. E não somente isso, é notável o trabalho das composições das cenas, e suas mise-en-scene envolvendo muitas pessoas é uma verdadeira aula por manter o fluxo de elementos em cena sempre em movimento, além do fato de ajudar a criar ainda mais uma fluidez do filme. E claro que não poderia deixar de comentar o trabalho de fotografia do próprio diretor no mínimo espetacular, por apostar sempre em um preto e branco de tão texturizado que eu juro que, por momentos, o preto e branco alcançava as cores (é uma das poucas vezes na vida que senti tal impressão), como visto na cena da floresta em chamas e na cena em que a família se dirige a praia.
Em em seus momentos finais, Alfonso Cuarón intensifica todos os sentimentos que Cleo passou na obra de maneira arrebatadora, mas não menos dolorida, no qual sentimos a agonia até por aquela mulher, que sempre surgiu de maneira ingênua e com poucas palavras, tenha que superar tamanho obstáculos e colocando em risco sua própria integridade física em nome daquela que ela ama.
Com a protagonista sempre vista como uma pessoa importante dentro da família (desde que esteja sempre disponível para atender aos patrões), Roma inicia um novo arco, tanto de Cleo quanto de Sofia. Se no começo Cleo era vista sempre em posição inferior (ponto ratificado como plano inicial do filme), é importante ressaltar que ela precisa ser elevada, mas que infelizmente – na maioria dos casos – essa “evolução” nada mais é do que um novo contexto, mas com as mesmas regras de sempre. E por mais lindas que tenham sido as recordações para alguns, tais memórias deve ser consideradas apenas… memórias.
Rodrigo Rodrigues
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dou aqui de Paraisopolis sempre vivi situacoes como as do filme entao me idntificar com isso é facil o tempo todo no filme eu via situasoes que passei ou minha familia pasou ou amigos passaram mas mesmo assim mesmo gostando muto do filme achei a favorita melhor tomara que ganhe o oscar
filme tecnicamente muito bom sem duvida, mas discordo de que seja favorito ao Oscar pois acabou sendo uma obra muito restrita, especifica, de nicho, pouco universal e accessivel acho dificil um filme pouco popular levar o Oscar
Tateishi
Bem vindo
Bem, não sou eu exatamente que disse. Roma ganhou quase todo os prêmios que disputou e isso deve ser considerado sempre como favoritismo no Oscar.
Obviamente, não estou afirmando que irá ganhar, até porque podem ocorrem decisões que vão além das qualidades do filme- mas as chances são maiores que qualquer outro!
E discordo quando diz que não é algo universal. Admito que é um filme de lembranças, mas tais elementos pode servir como exemplo tanto no México quanto no Brasil (vide “Que horas ela volta?”)
Abraço e muito obrigado pelo comentário!
mestre Cuaron um dos grandes da setima arte em todos os tempos
Aprova ai moderador, nao é spam nao, k k k k ta em ingles so pra fazer referencia ao anuncio do Oscar
And the Oscar goes to…