Crítica: A Vida Invisível

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Direção: Karim Aïnouz

Elenco: Julia Stockler, Carol Duarte,  Gregório Duvivier, Flávia Gusmão, António Fonseca, Nikolas Antunes, Flávio Bauraqui, Flávio Bauraqui, Maria Manoella, Cristina Pereira e Fernanda Montenegro

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Nota 4/5

Eu jamais poderia dizer que , como homem e por mais defensor das causas que possa ser, sou “feminista”. Nenhum homem jamais passou por uma fração do que as mulheres encaram no dia a dia e seria, no mínimo, hipócrita afirmar algo assim. Compreender e lutar contra o machismo diário é uma obrigação de cada um. Assim, além dos ensinamentos e empatia que a obra nos traz sobre esse assunto, A Vida Invisível é principalmente sobre o universo feminino que custamos debater e principalmente sobre a toxicidade do patriarcalismo passado de geração em geração!

Baseado no livro de Martha Batalha, A Vida Invisível conta a história das irmãs Guida (Stockler) e Eurídice (Duarte) vivendo no Rio de Janeiro na virada dos anos 40 para 50. Contudo, Guida acaba fugindo para a Europa com o namorado Grego enquanto Eurídice luta para manter seu sonho de virar pianista internacional mesmo se encontrando em um ambiente hostil onde o casamento é quase a sina de toda mulher jovem de uma família tradicional portuguesa no Brasil. Consequentemente , o posterior retorno de Guida ao Rio de Janeiro acaba criando uma instabilidade familiar que as separam de vez; todavia, a crise pela ausência e sentimento de abandono que Eurídice sente pela irmã é ocasionada de maneira dolorosamente cruel pelo machismo já citado.

Transitando de maneira hábil em vários assuntos deste universo feminino através do ponto de vistas das irmãs, Karim Aïnouz consegue como poucos transmitir as experiências, dores e medos das irmãs diante de um sociedade opressiva e condenatória onde qualquer atitude mais independente poderia taxá-las de “vagabundas” ; comprovando a  delicada capacidade em sua filmografia de falar de assuntos como liberdade do corpo feminino visto em O Céu de Sueli ou a temática homossexual em contextos completamente diferentes (Madame Satã e Praia do Futuro).

Inserindo de maneira orgânica diversos assuntos como gravidez, aborto, censura e independência feminina no mercado de trabalho, somos compelidos a entender que a cumplicidade entre as mulheres é um ponto de apoio fundamental em uma sociedade que vê como “ameaça” uma mulher levar adiante seus sonhos por não saber quem ficará em casa para cuidar da família; onde a direção deixa explícito que o termo “família” não é exatamente composta por um homem em mulher e sim onde há amor independente da orientação sexual.

Se pensarmos como ainda hoje tais assuntos são combustíveis para o campo de luta, imagine 70 anos atrás, quando as mulheres dependiam de métodos contraceptivos pouco eficazes ficando à mercê de uma sociedade que as recrimina e que as veem como meras procriadoras – ou o fato de as proibirem de viajar somente por serem solteiras. Uma época, assim como hoje, onde o prazer masculino subjuga a vontade feminina, não sendo à toa que sexo é visto como satisfação apenas do homem e uma violência para mulher. Emblemática, portanto, a frase dita por Filomena (Santos) que resume toda a resiliência da mulher: “No início dói, mas depois acostuma!”, exemplificando a violência tanto física quanto psicologia que o filme aborda.

Contando com duas atrizes formidáveis, tanto Carol Duarte e Julia Stockler invocam de maneira distintas duas mulheres lutando contra o status quo predominante masculino para levar seus sonhos adiante. Guida é apaixonada e se deixar levar pelos seus sentimentos e demonstra uma coragem incomum para a época, características que aos poucos vão sendo usadas como matriz da sua própria sobrevivência e do filho, com uma resiliência dolorosa, ambos ajudados pela forte e íntegra presença de Barbara Santos.

Assim,  Carol Duarte faz de sua Eurídice uma mulher que, com o “abandono” da irmã,  acaba sendo o para-raios de todos os malefícios do machismo do marido Antenor (Duvivier) arcando com a dor de adiar/cancelar seus sonhos de se tornar um musicista reconhecida; e somente em pensar que cada contato que ela teve no início do longa com a irmã poderia ser o último aumenta ainda mais a carga emocional da personagem.

Criando uma atmosfera de lembranças em cada plano, não é incomum nos identificarmos com alguns ambientes em cada detalhe, seja dos azulejos ou a decoração de uma casa típica do subúrbio carioca. E se a direção de arte também teve o cuidado para transpor de maneira elogiável o Rio de Janeiro dos anos 50 (algo que fica evidente quando a direção usa dos planos mais abertos), a fotografia de Hélène Louvart tem um trabalho primordial na contextualização da obra; primeiro ao trazer um equilíbrio em cores sépia do universo de Eurídice, que realça sempre as cores como um importante elemento dramático relacionado a Guida (falarei sobre isso mais a frente) e ao focar a trama ocorrendo mais na parte central do Rio de Janeiro através de cortiços e casarões antigos corroídos pelo tempo, a direção acaba fugindo daquela atmosfera tradicional praiana da cidade normalmente vista através da zona sul carioca que poderia tirar um pouco a identificação com o filme – tanto que os cartões postais são apenas visualizados raramente em segundo plano, onde os personagens sempre demostram seu incômodo com o clima sufocante da região central da cidade.

Elogiável que tal decisão de ambientalizar o longa em tal época (um mérito provavelmente trazido do livro), faz com que as emoções se tornem de certa maneira algo ainda mais duradouro em uma época em que a distância entre pessoas era resolvida através de cartas. Repetindo a mesma lógica vista em Praia do Futuro, Karim Aïnouz usa cores básicas de maneira bem clara como o fato de Guida representar o azul e Eurídice o vermelho; assim constantemente a direção insere elementos nas cores da primeira para justificar sua presença mesmo que indiretamente na vida da segunda tanto através de elementos em cena (seja uma cortina, por exemplo) ou quando em determinado momento em que as irmãs estão próximas as roupas de Eurídice traduzem bem tal sentimento ao mostrá-la vestida com as cores azul e vermelho!

Tomando decisões corretas em seu desfecho no terceiro ato (contando com a presença da atriz Cristina Pereira, que ao ser escalada junto com Gregório Duvivier, acaba sendo quase um ato político), a direção evita cair na vala comum melodramática que poderia enfraquecer a narrativa. Não que o filme em si não tenha um aura quase novelesca e expositiva (existem elementos para isso, como a presença do ator Flávio Bauraqui como detetive ou o fato de soar como certa inocência a insistência de Guida em enviar cartas com um álibi dramático do filme), mas ainda assim é visível que os conflitos não se tornam artificiais; até porque contando com a presença de Fernanda Montenegro a obra  golpeia o espectador com a presença terna e melancolicamente doce da grande atriz com um misto de indignação e revolta por parte do público com o desfecho.

A Vida Invisível comprova quanto precisamos entender um mínimo de empatia aos sentimentos femininos alheios e o quanto a perpetuação do patriarcado é violento, cruel e doentio.

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Rodrigo Rodrigues

Eu gosto de Cinema e todas suas vertentes! Mas não aceito que tentem rescrever a historia ou acharem que cinema começou nos anos 2000. De resto ainda tentando descobrir o que estou fazendo aqui!

2 thoughts on “Crítica: A Vida Invisível

    1. Bem vindo Decision

      Que bom que gostou do filme e obrigado pelo elogio, mesmo.

      Se puder compartilhe nossos conteúdos

      Abraço

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