Cyberpunk: sociedade, política e mercado
Os universos criados na literatura, cinema, quadrinhos e TV tem uma organização social, política e cultural bem estabelecida, o que possibilita uma comparação direta com a nossa realidade. Quando analisamos estas sociedades utópicas e distópicas fazemos bem mais do que imaginar universos fantásticos, estamos realizando um exercício constante de questionar os caminhos que a nossa sociedade tem escolhido para si.
Lá pela metade da década de 80 surgia um livro que iria revolucionar as formas de encarar o futuro, inserindo um conceito de sociedade mais próxima do que temos hoje e mais distante do assombro totalitarista que rondava o mundo durante até a Guerra Fria. O livro Neuromancer consolidava o universo cyberpunk, um conceito de futuro caracterizado pelo simples “High Tech, Low Life” (em tradução livre: muita tecnologia e pouca qualidade de vida). Willian Gibson, o autor do livro, seria um importante questionador do papel da tecnologia e do capital nas sociedades do futuro. Hoje, mais do que em qualquer outro momento histórico, esses universos imaginados nunca foram tão reais.
Da Utopia de Thomas Morus até a série Star Trek, temos universos sendo criados com base na nossa observação da sociedade. Aqui nos prenderemos a ficção científica, em especial ao cyberpunk, por ser um gênero literário que busca desenvolver seu enredo com certa aproximação com a realidade baseado em conceitos científicos. Este é um dos links diretos entre estas narrativas e o mundo como conhecemos, já que estas não abrem mão em manter as principais leis e teorias que regem a nossa vida na Terra presentes em seus universos.
O cyberpunk tornou-se um vasto universo literário da década de 80 para cá, se transformando em uma visão recorrente do futuro na cultura pop. Autores como William Gibson, Philip K. Dick, Bruce Sterling e Pat Cadigan estão constantemente relacionados com o gênero. Filmes como Blade Runner, Matrix, Ghost in The Shell, Akira, A Scanner Darkly, Minority Report e tantos outros, têm forte influência.
Como falamos logo no início da nossa conversa, aqui destacamos o romance Neuromancer de 1984, publicado por William Gibson e que se tornou uma referência direta ao gênero. No romance são introduzidos conceitos tecnológicos que seriam apenas consolidados na nossa vida cotidiana anos depois, como: internet, ciberespaço, hackers, inteligência artificial, próteses cibernéticas, megalópoles, entre tantas.
A narrativa acompanha o hacker Case em uma emaranhada trama que envolve grandes corporações, conspirações governamentais, gangues internacionais e a disputa por informações privilegiadas. Ambientada em sua maior parte no Sprawl, um aglomerado metropolitano que envolve cidades entre Boston e Atlanta, desenvolve-se em escala global, nos possibilitando conhecer um pouco da geopolítica deste universo que ainda é cenário paro os romances Count Zero (1986) e Mona Lisa Overdrive (1988).
E é justamente a partir do ambiente criado em Neuromancer que iremos traçar um paralelo entre o universo cyberpunk e o Estado contemporâneo.
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Cyberpunk e Estado
Traçar paralelos entre o universo criado na literatura cyberpunk e o nosso mundo não é mais uma tarefa difícil, já que podemos conferir referências por todo o lado. A partir de agora vamos tentar explorar um pouco mais da estrutura política deste universo.
Poder, pra quem?
Um dos aspectos clássicos que norteiam grande parte das narrativas cyberpunk é relação direta entre governos e corporações. Através da leitura de futuro desses autores fica explícita a crescente influência das grandes empresas e corporações “não oficiais” (máfias, gangues, cartéis, etc) nos mecanismos e interesses de um governo.
De forma objetiva, os interesses do Estado cumprem a função de suprir explicitamente os interesses das corporações, sejam conglomerados de empresas multinacionais ou máfias, por exemplo. Os negócios e o poder do capital determinam os caminhos que um governo irá tomar, seja referente a relações internacionais com outras nações ou da postura do Estado em relação aos cidadãos.
Traçando um comparativo com as teorias de Estado, temos no cyberpunk um governo que trabalha em prol das corporações, e obtém o consentimento da população através do prazer (tecnologias e comércio), da repressão (militarismo, socioeconômica e monitoramento contínuo) e do controle da informação. Assim, busca o alienamento da população de diversas formas, mas sempre propiciando controlar as liberdades de um individuo até um limite que não comprometa a hegemonia de quem manda realmente na coisa, uma classe dominante: as corporações.
Resumindo: no Estado cyberpunk a legitimidade do Estado está diretamente e explicitamente ligada ao mantenimento da hegemonia das corporações, as empresas que controlam a maior parte do capital nacional e transnacional, utilizando de diversas ferramentas para obter a permissão da sociedade para isso. Assim, nossa vida e dos todos os cidadãos de um mundo cyberpunk é determinada pelos interesses que as grandes empresas tem sobre nós e a cidade em que vivemos, os governos são meros fantoches usados para satisfazer tais estratégias.
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Autonomia relativa: nós e o Estado sci-fi
Partindo para comparações livres, vale um exercício para começarmos a relacionar o Estado no futuro distópico do cyberpunk e o nosso atual formato, principalmente quanto aos seus instrumentos de poder.
O conceito que quero utilizar para isso é o de autonomia relativa, em especial. A autonomia relativa está ligada diretamente ao que determina um Estado se chamar “legítimo”, ou seja, a posição de superioridade que adquire para governar uma nação, com o aval de toda a população e entidades diversas (mercado, exército, movimentos sociais, etc). Para se obter essa autonomia, um Estado precisa satisfazer as reivindicações dos diversos segmentos da sociedade civil para ganhar sua confiança, nos mais distintos segmentos da sociedade, e orquestrar tudo isso com os movimentos políticos que ocorrem dentro de sua estrutura.
Na nossa atual situação, sendo bastante simples na análise, há um Estado que busca satisfazer tanto os anseios dos setores populares quanto das empresas, empresários e investidores. É um equilíbrio delicado, cujo balanço para um lado ou para outro pode comprometer a legitimidade e governabilidade. Por mais que um ou outro grupo diga que um determinado governo favoreça outro setor da sociedade, isso sempre será negado ou disfarçado. O favorecimento de um determinado grupo, classe ou segmento nunca é explícito, mesmo que possamos observá-lo, pois isso comprometerá a legitimidade.
No universo cyberpunk, temos um futuro distópico onde essa aparente preocupação em demonstrar equilíbrio não é mais tão importante. Quebram-se as máscaras e o Estado serve como instrumento direto aos interesses das corporações, deixa isso explícito e não se importa tanto com o que o restante da sociedade civil pode pensar a respeito. Justamente porque seus aparelhos de consentimento são muito eficientes.
Desta forma, podemos considerar o Estado cyberpunk como uma visão de futuro onde os interesses de um determinado setor da sociedade civil, uma classe dominante, se tornaram superiores aos interesses de toda a nação… de forma totalmente explícita e destemida. Isso já acontece hoje? Segundo muitos pensadores, acontece desde o surgimento da concepção de Estado como conhecemos. Por vezes de forma explícita… em outras, mais discretamente.
Agora, após termos feito essa breve discussão a respeito da formatação social e política do universo cyberpunk, nos resta compreender como o Estado impõe seus interesses perante a população, obtendo seu consentimento para governar. No próximo artigo conversaremos sobre os mecanismos de opressão e resistência presentes no cyberpunk e como esses elementos transformam cidadãos comuns em protagonistas nos roteiros da literatura e do cinema. Sem mais, siga lendo em Cyberpunk: poder, repressão e resistência.
E para você, já vivemos o cyberpunk?
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Nota do autor: este artigo é parte do ensaio “O Cyberpunk e o Estado Contemporâneo”, onde além do debate que acabou de ler, também são introduzidos didaticamente conceitos das Teorias de Estado como “Legitimidade”, “Consentimento”, “Hegemonia” e “Estado”, propriamente dito. Caso tenha interesse, você pode ler o texto completo clicando aqui.
Arte da imagem em destaque: Josan Gonzalez
Gael Mota
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por favor qual o filme onde os protagonistas colocam os olhos em maquinas tipo microscopios para ter acesso
a informaçoes. só que a exposição demasiada os deixa cegos, obrigado rnakkata@hotmail.com
Muito bom texto!
Ainda acrescentaria a ligação do cyberpunk com os dias atuais nas definições do capitalismo informacional, de um capital que gira em torno das informações que as pessoas tem das outras e que circulam em diversos meios.
No movimento hacker, talvez possamos enxergar essa busca pela informação codificada (porque não é livre?) e hoje temos tantas informações fáceis de serem manipuladas, ao mesmo tempo que tentamos ”guardá-las” de forma segura.
Basicamente como a tecnologia afeta a sociedade.
Certamente, da mesma forma que o mundo mudou, o capitalismo também mudou muito nas últimas décadas (e vice-versa), cada vez mais fluído e no universo do digital. Não sei se tu chegou a ver a segunda parte desse artigo, lá falo um pouco melhor dos instrumentos de poder e nas formas de resistência, aí entra bem o movimento hacker e o poder da informação.
O link tá aqui (como no final desse texto): http://maxiverso.com.br/blog/2016/08/18/cyberpunk-poder-repressao-e-resistencia/
Um abração! (e seguimos papeando sobre tudo isso)
Se ainda não o vivemos, estamos caminhando pra isso… sociedades como a japonesa, altamente integrada à tecnologia, já possuem caracteristicas do cyberpunk inerentes ao modo de vida da sociedade, so nao tendo tanto o climão gótico e obscuro que caracteriza o cyberpunk… ate quando, no entanto, viveremos apenas com o ‘lado bom’ do cyberpunk, sem os problemas mais graves que ele traz? nao da pra saber…
Realmente, Márcia. Muita coisa da ficção científica já é realidade, pro bem e pro mal. Por mais que muitas vezes sejamos pessimistas quanto ao futuro, enquanto estivermos no controle, passíveis de criticar nosso caminho, ainda temos alguma chance!
mano indo na onda do Antunes, que tal um especial sobre o RPG da White Wolf que tem os Adeptos da Virtualidade, totalmente inspirado no Neuromancer… ta de parabens pelo artigo um dos melhores que ja li sobre o Cyberpunk
É uma sensacional ideia, Paulo! Além de me aprofundar mais no assunto, adoraria jogar. Tu utiliza o sistema? Quem sabe poderia me contar mais sobre as experiências. Te dizer que desde GURPS pouco contato tive com RPGs de mesa realmente dedicados ao tema, com material exclusivo para o gênero. Vou pesquisar!
Parabens pelo texto, Gael! Estou compartilhando com meus amigos do Cyber Club de Fortaleza. Vc planeja uma resenha bem detalhada ou um especial apenas sobre Neuromancer?
Muito obrigado, Antunes! Compartilhe mesmo, espero que gostem e alimente boas discussões. Estou a disposição sempre que precisarem. A ideia agora é fechar essa conversa mais geral que uso Neuromancer como começo de conversa, mas passa por outras obras também. Na quinta-feira que vem (18/08/16) coloco no ar a segunda parte, depois disso fico em aberto para novos temas, agora com mais liberdade para ir a fundo em cada caso. Se tiver sugestão, manda aí!
O cyberpunk me inspira me move, me faz pensar em questões sociais e filosóficas que permeiam a vida e nos fazem pensar sobre os caminhos que a sociedade toma… parabéns pelo texto, maravilhoso, foi favoritado aqui!
Sem dúvida, tanto o cyber quanto tantas outras obras do sci-fi nos fazem questionar vários pontos da nossa própria vida, aqui no mundo real mesmo. Acho isso sensacional, a ficção amplia as coisas e torna tudo mais visivel. Obrigado pelas palavras, segue em contato que semana que vem tem mais material! Abração!