Distopias Urbanas: Aquarius, Demolidor, Pokémon e o Direito à Cidade

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O edifício do filme

Aquarius trouxe para o cinema um cenário bastante comum das grandes cidades brasileiras: a disputa entre o novo e o antigo, a especulação imobiliária e a memória afetiva. A segregação do espaço urbano e a sua disputa está longe de ser novidade nas telonas, sendo recorrentemente representando de diversas formas e para diversos públicos, da ficção científica Distrito 9 até a animação Up, por exemplo. Entre Aquarius, Demolidor, Pokémon Go e tantos outros fenômenos recentes da cultura pop, o que podemos especular sobre o futuro das nossas cidades?   

(atenção: este artigo pode conter leves spoilers da trama de Aquarius)

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No filme de Kleber Mendonça Filho que estreou em setembro deste ano, conhecemos Clara, uma jornalista aposentada que vive entre a nostalgia e os fantasmas do seu passado na cidade de Recife, mais precisamente em um apartamento com décadas de história na Praia de Boa Viagem. Entre os diversos símbolos e significados que permeiam a película, o grande personagem que divide espaço em tela com a protagonista é, sem dúvida, o prédio onde ela mora, o Edifício Aquarius, que dá nome ao longa. Da mesma forma que já conferimos em muitos longas e seriados, a vida tranquila da protagonista acaba por ser drasticamente modificada quando a especulação imobiliária bate, literalmente, na sua porta. O “progresso e o novo” são representados na forma de uma construtora poderosa e um jovem e ambicioso engenheiro que surgem com uma proposta irrecusável e, enquanto todos às sua volta aceitam o valor das cifras, Clara prefere se apegar às lembranças e permanecer onde sempre esteve. Os resultados desse conflito, deixo que assista ao filme para descobrir por si só.

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Up: realidade e ficção lado a lado.

Muito aclamado pela crítica nacional e internacional, o diretor e roteirista, chama atenção para uma questão atual e urgente que ocorre nas grandes cidades brasileiras: o poder da especulação imobiliária. Com um timing perfeito, Aquarius estreia cerca de um ano depois do ápice dos eventos em torno do Movimento Ocupe Estelita, quando a privatização do Cais José Estelita acabou gerando uma batalha judicial, onde, de um lado, estava um consórcio que arrematou do governo a área de enorme potencial por um preço abaixo do mercado e, de outro, estavam ativistas contra o destino de transformar em privada um área que antes era pública. Dentre os célebres ativistas por trás da campanha estava Irandhir Santos, ator que participou dos dois filmes de Kleber, Aquarius e O Som ao Redor, e que foi o porta-voz do movimento com o curta-metragem “Recife, Cidade Roubada” de 2014 (clique aqui para assistir).

Assim, precisamos compreender que Aquarius não é uma obra isolada no tempo e espaço, ela é uma representação sensível de um momento da cidade do Recife (e de tantas outras cidades no Brasil e no mundo). O fantástico longa-metragem O Som ao Redor já trataria o tema em 2013, o documentário Cidade Roubada iria direto ao ponto em 2014 e Aquarius, de uma forma mais sutil e explorando os signos visuais, também faria o mesmo em 2016. Sendo manifestada de forma delicada e progressiva pelos personagens das tramas ou como força motriz que desenvolve todo o suspense da história, a questão imobiliária é o cerne dos conflitos nos dois longas de Kleber. Assim, Aquarius e O Som ao Redor são praticamente o mesmo filme, onde não cabe papel para bonzinhos ou bandidos: o mesmo personagem que alimenta monstros, acaba também sendo engolido por eles. Aí está a segurança/insegurança no bairro residencial de O Som ao Redor e a pressão do mercado de arranha-céus sobre Clara, que também é dona de cinco apartamentos na cidade – será que algum desses empreendimentos também não pressionou alguém a abandonar antigas memórias?

No caso de Aquarius, uma região vista como nobre aos olhos dos investidores do mercado imobiliário vai acabar alavancando a ideia de que mudanças precisam ser feitas nas leis de uso do solo do município, permitindo que sobrados e pequenos apartamentos possam dar espaço para edifícios com algumas dezenas de andares. Estas leis são constantemente modificadas em todas as cidades, permitindo que a cada novo período prédios mais altos possam ser construídos e, assim, aumentando o aproveitamento do metro quadrado dessas regiões super valorizadas. Agora imagine o Edifício Aquarius com seus três andares, uma dezena de apartamentos, na beira do mar e em uma região nobre da cidade… quantos apartamentos poderão ser construídos na mesma área? Essa diferença é lucro para quem constrói e, por isso, trata-se de um negócio tão interessante.

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Cartaz de O Som ao Redor

Isso nos remete diretamente para a ficção científica distópica, em especial ao cyberpunk, onde temos uma sociedade que é moldada pelos interesses das corporações e, em consequência, temos uma cidade que é o reflexo desses interesses e desinteresses. Áreas nobres receberão investimentos e seguirão lindas. Áreas periféricas seguirão esquecidas, só havendo intervenção quando houver algum interesse por trás disso, o que nem sempre levará em conta os interesses da população ou a condição ambiental do local (faça uma pesquisa rápida na internet sobre a erosão costeira na praia de Boa Viagem e Brasília Teimosa, ambas no filme, e veja como historicamente essa região já tem problemas em relação a ocupação de áreas delicadas).

No meio urbanístico existe um termo que tem se tornado bastante comum recentemente e está intimamente ligado com as distopias da cidade do futuro: a Gentrificação Urbana. Esse termo tem certa proximidade com a revitalização de bairros abandonados e negligenciados, entretanto as suas intenções não são as mesmas de uma revitalização urbana como conhecemos, a qual parte de uma demanda social, da própria população e moradores. Na gentrificação é avaliado o potencial de um bairro em poder gerar rendimentos ao catapultar os valores do seu metro quadrado, ou seja, comprar terrenos valendo 10 para se vender valendo 1000. Assim, por exemplo, imagine um bairro central antigo e abandonado em uma cidade grande que conhece, cheio de problemas de segurança, iluminação, transporte e poluição. Mas, agora, imagine que de uns tempos pra cá as coisas começaram a mudar. Abriu um comércio novo atraído pelo aluguel barato, uma loja de vinil também veio em seguida e um restaurante, em seguida a iluminação nova já está instalada por todas as ruas. As coisas começam a dar certo e parece que mais gente começa a se interessar pelo bairro e com isso os aluguéis também começam a aumentar tão rápido quanto os investimentos. Logo, o bairro está com outra cara, totalmente modificado, inserido na dinâmica da cidade e bastante popular, mas olhe bem…. a população que ali vive e frequenta não é mais a mesma. Os antigos moradores do bairro, outrora negligenciado, não podem mais arcar com os altos aluguéis, muito menos com o mercadinho que virou uma rede internacional de supermercados, e acabam sendo gentilmente “expulsos” para outras áreas da cidade, as quais não estão abraçadas pelo planejamento, investimento público/privado e ainda sofrem com risco de desastres naturais. Em conclusão: revitalizou-se um bairro para que um determinado grupo o aproveitasse, mas os moradores não foram contemplados e acabaram expulsos. Sabe onde pode conferir isso de forma divertida? Na primeira temporada de Demolidor (do Netflix), quando Wilson Fisk estava todo cheio de boas intenções para dar uma cara nova à Hell’s Kitchen. Cria-se um problema para vender uma solução.

Por isso, já estamos bastante familiarizados com a ideia da cidade se modificar de acordo com o mercado imobiliário. Bairros ficam mais caros e outros mais baratos. Zonas antigas viram moda para um público específico e outras são negligenciadas até parecerem novamente interessantes para o investimento. E como vimos na nossa discussão de Estado Cyberpunk que aconteceu em outro momento, quem vai dizer o que vai dar certo ou errado na cidade é quem detém todo o poder. Logo, áreas centenárias dão lugar a prédios espelhados de 30 andares, bairros residenciais tornam-se áreas industriais e encostas com risco de deslizamento são ocupadas. Tudo está conectado, seja pro bem ou pro mal, se é que você consegue separar um do outro…. alguns diriam que é a história versus a modernidade, o progresso versus a memória, o mercado versus a demanda, mas também poderíamos dizer que é o Castelo Rá-Tim-Bum versus o Dr. Abobrinha mesmo.

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Demolidor e a Cozinha do Inferno

No fim, a cidade vai se tornando cada vez mais restrita: espaços públicos vão sendo abandonados, ruas tornam-se vazias, mais muros vão sendo levantados, mais áreas de convivência vão sendo esquecidas, seja pelo desinteresse da população ou devido à insegurança. Na contramão de tudo isso, quem imaginaria que um jogo de 20 anos atrás, uma simples diversão para celular, poderia julgar tudo o que descrevemos até agora? Intencionalmente ou não, Pokémon Go fez com que parte da população saísse de casa e redescobrisse a cidade onde vive. Faça um teste: olhe com cuidado aquela praça no centro da sua cidade que você passa na frente todos os dias, aquela que era meio escura, que já foi bonita um dia, mas hoje dá medo até de sentar no banco para ler um livro. De repente ela está tomada de gente, vários jogando, mas muitos outros aproveitando o movimento e o dia de sol para passar o tempo em um lugar que antes pensaria duas vezes antes de ir. Esse direito, essa possibilidade de explorar a sua cidade, poder sentar na rua, conversar, jogar algo, fazer malabares ou só ficar largado na grama tem haver com o seu direito à cidade…. e acredite ou não, a tecnologia parece estar ajudando a nos libertar do nosso próprio pessimismo em relação a cidade. Nada está certo, tudo está em aberto. Quanto isso vai durar ou se realmente vai trazer novos ares para áreas da cidade antes esquecidas, é coisa para os próximos capítulos da nossa própria ficção científica.

Como vimos no artigo Cyberpunk: poder, repressão e resistência, a tecnologia surge como um instrumento de democracia direta, capaz de alterar a realidade mesmo que utilizando-se de um ambiente virtual para isso. Em um mundo em que as mudanças parecem cada vez mais distantes e pouco efetivas, em que parecemos estar somente  a mercê do que nos cerca, é preciso encontrar alternativas para rever nossa expectativa de futuro… e é nessa hora que, novamente, a realidade vai buscar forças na ficção, no mundo das ideias.

E você, como imagina a sua cidade no futuro?

 

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Gael Mota

Vivendo entre o utópico e o distópico, o real e o imaginário, sempre encontra paralelos entre o sci-fi e o cotidiano. Cientista, redator e artista por acidente, acredita que o cyberpunk já chegou.

1 thought on “Distopias Urbanas: Aquarius, Demolidor, Pokémon e o Direito à Cidade

  1. Vcs tem uns artigos beeeem profundos aqui nesse site, to curtindo muito. Nesse caso é interessante como a tecnologia acaba transformando e moldando a nossa realidade, inclusive a fisica, alterando a paisagem urbana…

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