Crítica: Aquarius
Direção: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Sonia Braga, Humberto Carrão, Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Fernando Teixeira, Thaia Perez e Barbara Colen
Ficar imune a Aquarius é uma tarefa quase impossível. A capacidade do diretor Kleber Mendonça Filho de evocar uma gama de sensações, o passado se fazendo presente, ecos sociais e principalmente pessoais é incontestável. Assim como em O Som ao Redor, o diretor não deixa jamais de inserir um sentido de denúncia e urgência social brasileira. Características que somente não fazem sentido nas cabeças reacionárias que tentaram boicotar o filme – inclusive censurando inicialmente o filme para menores de 18 anos (depois desfazendo da ideia) ou dizendo para as pessoas de bem (seja lá o que isso for) não assistirem o filme.
O longa começa com um cena de abertura no início dos anos 80 em Pernambuco (mas que poderia ser em qualquer capital do país) com os carros de diversos e coloridos modelos (uma metáfora do confronto entre o antigo e o novo de hoje que soam iguais?), onde conhecemos a então jovem e adorável Clara (Colen) se divertindo com amigos na praia de Boa Viagem durante a comemoração do aniversário da sua tia Lúcia (Perez).
Rotular este evento de algo aleatório seria um pouco equivocado, mas sim um capítulo a mais na vida em comum de uma família de rostos que soam sempre conhecidos nas nossas memórias pessoais (até mesmo a falha da música tocado no vinil é importante para as lembranças e contexto). Lembranças que povoam nossa mente e que poucos podem compartilhar a ponto de serem eternas (tia Lúcia que o diga).
Assim o diretor não é econômico nos detalhes, os planos são de extrema importância e significado, como o fato de momentos focarem a velha estante na sala como uma testemunha ocular da historia da família e que possivelmente poderá passar para futuras gerações. Ou como o fato de Clara sempre mexer em seus cabelos (deixando soltos) como uma prova de força, de intimidade, ao contrário dos cabelos presos quando em uma situação de confronto. Para engrandecer o contexto a trilha sonora é fundamental, principalmente através da música Hoje de Taiguara (‘trago em meu corpo as marcas do meu tempo, meu desespero, a vida num momento , a fossa, a fome, a flor, o fim do mundo…”), ou quando na passagem de tempo, com um corte fluído, a música que ouvimos (“Toda menina Baiana”) na cena anterior, ocorrida na festa da Tia Lucia, ainda é tocada no dias atuais, mas que aos poucos vai se perdendo como o passado ficando para trás.
Toda filmada a partir do roteiro escrito pelo próprio diretor, a narrativa soa sempre em ritmo lento, mas pouco cansativo, justamente pela mão de Mendonça em imprimir um ritmo onde os personagens sempre estão em conflitos pessoais e, é claro, com o passado ou ecos rondando o ambiente.
E como estamos falando de um filme de Kleber Mendonça nem tudo tem como ser explicado, mas sim sentido. Todavia, tudo que podemos encontrar como simbolismo para a nossa sociedade atual estão lá: o crescimento urbano e descontrolado, o fanatismo religioso sendo imposto, a degradação do ambiente (que soa muito pior nos olhos dos mais antigos).
Mesmo assim a metralhadora crítica social de Kleber não exclui ninguém e isso pode ser comprovado de várias maneiras. Não somente com a questão mencionada acima como o fato da segregação social bem distinta e geograficamente bem demarcada como em qualquer grande capital brasileira, onde um esgoto a céu aberto na praia separa as classes. De um lado a classe média e do outro, pessoas de rostos comuns e lembranças mistas de dor e saudade.
Entretanto quando conhecemos Clara (Braga) estamos cientes de uma mulher que acompanhou com dificuldades todas as etapas que a vida nos impõe. Agora uma jornalista reconhecida e famosa, Clara vive uma solidão. Mas Clara não é somente um fruto de lembranças. Mas sim uma mulher que jamais se torna coadjuvante em sua vida (inclusive sexualmente falando), onde busca simplesmente viver, ter prazer, ver o tempo passar desfrutando dos anos e lembranças que ainda restam juntos dos filhos e netos.
Remanescente de uma época que ficou para trás, mas com o fato de ser uma última moradora do prédio que acabou de ser comprado por uma imobiliária que fará de tudo para que Clara venda seu apartamento e possam por o prédio abaixo em nome do futuro. A face deste novo mundo que se aproxima tem em Diego (Carrão) sua personificação, um jovem engenheiro com estudo no exterior que exemplifica esta ‘renovação’, ou como Claro acusa: ‘uma elite sem caráter’.
Clara se mostra uma pessoa que acompanha o desenvolvimento social e qualquer atitude que poderia soar como egoísta para o público principalmente pelo fato dele possuir uma estrutura financeira favorável e não depender necessariamente daquele apartamento. Mas seria somente isso que deveríamos levar em conta? Aqui cabe a discussão, pois todas as suas lembranças estão ali (assim imediatamente vem a tona o primeiro ato do filme)
Falando em elite, claro que o diretor não poderia deixar de usar o fato do nosso eco escravocrata, onde a empregada era ‘quase da família’. Entretanto ao tentar compartilhar suas lembranças com a família através de uma foto, ela é completamente ignorada. Isso sem levar em consideração que a câmera de Kleber foca diversas vezes a personagem sempre ocultando o rosto como se tirasse sua personalidade (ou numa brilhante passagem com tons oníricos, Clara é confrontada pela antiga empregada de rosto sempre nas sombras).
Lutando até o fim pela suas lembranças, Aquarius simboliza não somente a nossa necessidade de manter viva nossa história diante do mundo (infelizmente muitas se perdem como cupins corroendo uma madeira nobre ou quando nos transformamos em saco de panos e ossos apodrecidos pelo tempo).
Assim, devemos fazer um exercício pouco praticado nos dias de hoje: empatia a memória como pessoas e para pessoas. Isso que nos mantêm vivos.
Cotação 4/5
Rodrigo Rodrigues
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