Crítica: Manifesto
Manifesto
Direção: Julian Rosefeldt
Elenco: Cate Blanchett, Ruby Bustamante, Ea-Ja Kim, Ralf Tempel
Manifesto: Texto de natureza dissertativa e persuasiva, uma declaração pública de princípios e intenções, que objetiva alertar um problema ou fazer a denúncia pública de um problema que está ocorrendo, normalmente de cunho político.
Como alguém que propõe a escrever críticas cinematográficas, minha relação com a Arte (no caso cinema) é estreita. Portanto, procuro não somente me aprofundar sobre linguagem cinematográfica, mas também ao significado da Arte em si para cada vez mais expandir minha percepção do mundo (incluindo através de outras expressões artísticas também, se possível). E assim passar um pouco do que aprendi (e aprendo) para quem lê meus textos para que também possam ter esta sensibilidade e criar uma visão mais apurada sobre filmes e ajudar a trilhar um caminho para uma melhor consciência do mundo e a sociedade que nos cercam – isso não significa, claro, que a pessoa deva concordar comigo ou com minhas ideologias, mas sim, criar um pensamento para engrandecer o debate sobre um filme e o mundo que vivemos . Até porque, lembrando uma frase o diretor Eric Rohmer que sempre uso em minhas críticas : “Todo bom filme também é um documentário da sua época“.
Portanto, em muitos casos, pelo fato das Artes estarem instintivamente ligadas ao homem desde seus primórdios, é dolorosamente triste (e perigoso) ver quem em pleno ano de 2017, especificamente no Brasil, grupos levados por uma ideologia baseada em ódio e ignorância recriminem exposições em museus e que proíba também (leia-se censura) artistas exercerem sua profissão e exibirem sua Arte – pessoas que na maior parte usam discursos baseados em preconceitos por não terem a mínima ideia do que estão falando. Até porque o interesse destes grupos é justamente causar um tumulto, “ganhar no grito” e obviamente obter o controle de parte da população que pouco despertou para o mundo como cidadãos que precisam viver em sociedade livre e como respeito ao próximo. Incomoda-me ainda mais que alguns integrantes da própria classe artística se omitam e fiquem de fora da discussão devido a capacidade da Arte em promover e servir com um gatilho pensante ao surgimento de um novo mundo, uma sociedade mais pensante e menos reacionária – algo por vezes explicado devido a concentração da mídia em apenas dois ou três grupos, o que acaba desencorajando muitas das opiniões.
Inclusive , quando menciono questões sociopolíticas nas minhas críticas, alguns leitores torcem o nariz por acharem que tais questões passam longe da discussão cinematográfica, o que é um grande erro. Devemos lembrar que nenhuma forma de Arte – nenhuma – é apolítica, inclusive o cinema que desde seus primórdios (como o formalismo russo durante a revolução de 1917, os Americanos com seu “American Way” e Nazismo) foi usado para propagar ideologias e partidos – e ainda sim permitiu que a linguagem cinematográfica evoluísse para o que conhecemos hoje.
Assim, este provocador Manifesto dirigido e escrito por Julian Rosefeldt apresenta Cate Blanchett de maneira poderosa em vários papéis representando os diversos aspectos da Arte (divididos em sequencias quase que independentes representando cada uma da suas expressões) e como podemos encarar e interpretar tal elemento dentro de nossa sociedade. Portanto, não é por acaso que o filme inicia-se com diversos nomes de pensadores, filósofos (Marx, por exemplo) e artistas como os diretores Jim Jarmusch e Lars Von Trier, tidos como “Cult” e assim com dificuldade de atingir o grande público, como existisse um juízo de valor que separasse um filme “Cult” de um “Blockbuster“.
O roteiro expõe quase como monólogos sua força de seus pensamentos em cada frase ao fluir de maneira única mesmo como mudança de ambientes e situações. Por sempre se manter fiel em discutir a proposta da Arte, é elogiável que todos os diálogos (ou discursos) sejam visto como um elemento uníssono ao próximo, mesmo que por vezes pareça soar sentindo algum, como visto na sequência que discute a dança e que a professora (Blanchett) discursa de maneira onírica como seu corpo de bailarinas devem se comportar. Uma interessante questão é que mesmo mencionando movimentos artísticos como o Dadaísmo (criado no início do século 20 quebrando padrões e chocando com a burguesia e enfrentando o nacionalismo durante a Primeira Guerra Mundial) você não precisa ter tais conceitos claros em sua mente ou seus significados (até porque o filme não se propõe a isso), mas sim o fato da importância e a representatividade destes elementos para quebrar o Status Quo dominante e servir como uma semente na sua curiosidade para, aí sim, expandir seu mundo. Assim, como é emblemática a cena ocorrida durante um enterro, na qual temos o belo discurso da viúva (Blanchett), não estamos diante de uma perda comum, mas sim, o fato daquele morto trazer a metáfora de cada um de nós, vítima das rotinas, do apego ao material e do discurso materialista.
E narrativamente falando, o diretor (mesmo sendo apenas seus segundo longa) conduz a câmera com elegância, usando constantemente plongees (ângulos vistos de cima para baixo) como uma provação divina, cujos cortes e movimentos são igualmente elegantes ajudando na fluidez do filme, como visto no plano da escada em caracol que se transforma em duas meninas girando ao brincar. Ademais, a fotografia a cargo de Christoph Krauss é competente em espelhar tais ambientes como reflexo direto das personagens de Blanchett, contextualizado com a postura crítica ao sistema. Como a fábrica abandonada servindo como palco para o morador de rua expor suas amarguras e denúncias de que todos perderam com um mundo capitalista obscurecendo o pensamento, onde glorificamos a automação dentro de uma sociedade sempre com pressa, permeada de uma “juventude violenta e sem apego ao passado”. Ou como no cena se passando numa bolsa de valores, onde o diretor usa um plano com grande profundidade, temos os números e valores subjugando os homens – e consequentemente suas vidas.
Claro que a Arte deve sempre ser discutida e questionada, até porque a mesma “não é um senso comum, ela não obriga ninguém a nada, servindo como um caos para organizar a humanidade“. Ela é um rebelde sem causa, uma anarquista que manda uma “Foda-se” a si mesma, propondo a questionar seu objeto de estudo sem regras. Assim como a música que surge também contestadora ao passado e do que antes era moderno, pois se hoje Chopin é considerado “chato” para novas gerações hoje, analisamos na mesma proporção que atualmente a música é feita de plateias sem qualquer desejo de buscar algo menos comercial e padronizado. Mas mesmo assim é Arte, e se é menor ou não , é outra história. E até mesmo a literatura, que é vista como um ambiente elitizado e de difícil acesso para muitos, o longa abre espaço para tal critica, até porque, a Arte deve ser vista para o povo e servir ao povo e não a determinados grupos. Ademais, por exemplo, devemos levar em consideração que Shakespeare sempre foi popular e não há razão para criarmos uma atmosfera inalcançável a um dos mais importantes escritores da história.
E claro que o cinema não poderia deixar de ser abordado como um exercício de metalinguagem, e nada mais simbólico que durante uma cena, a cientista (Blanchett) encare um objeto preto remetendo ao monólito de 2001 – Uma Odisseia no Espaço (Kubrick) que carrega até hoje a fama de interpretação difícil demais para o público em geral compreender. Algo absurdo e que sempre contestei. Por que em vez de condenar um filme que alguém alega que não entendeu, não procura entender o que aquela experiência tentou passar? Você não precisa buscar uma explicação exata, ou acatar a interpretação do diretor ou da crítica (tais opiniões irão te AJUDAR a ter uma visão mais apurada sobre o filme e o Cinema em si), até porque depois que sai das mãos do diretor, a obra se torna pública e do público virá inúmeras interpretações e sensações (e sua interpretação tendo exemplos a partir de elementos do filme, sempre será válida). O que abre a discussão: Como trazer isso para pessoas que nunca viram ou nunca se interessaram pelo assunto e consequentemente possamos abrir um novo mundo para ela? O filme abre uma possibilidade ao incluir, principalmente para os amantes cinéfilos, a professora (Blanchett) ensinando conceitos básicos da linguagem cinematográfica para as crianças. Possibilidade esta, inclusive, defendida por nada mais que Martin Scorsese num texto publicado há alguns anos atrás:
“Os jovens precisam entender que nem todas as imagens existem para serem consumidas como fast food e então esquecidas; precisamos educá-los para que entendam a diferença entre imagens em movimento que estimulam sua humanidade e sua inteligência e imagens que estão apenas querendo vender algo a eles.”
Assim, é quase uma personificação de naturalidade que durante um noticiário sobre o clima, a jornalista e a repórter do tempo (ambas chamadas de Cate e obviamente interpretada por Blanchett) conversam sobre a Arte como fosse uma notícia normal, e se tornando simbólico, como o cinema, que a repórter esteja dando a noticia embaixo de uma chuva falsa, um simulacro que somente o cinema é capaz de fazer.
Questionando e “amaldiçoando” o público que tenha visto aquela sua projeção como algo incompreensível e erudito, Manifesto não somente se torna relevante para discutir assuntos em voga, como é uma obra contundente na defesa da nossa própria liberdade como sociedade através da Arte. Que tratemos qualquer uma delas como na cena de uma família tradicional (podem substituir pela “tradicional família brasileira”), cuja mãe (Blanchett) transforma a oração em um manifesto em defesa da própria Arte. E que baseando no rumo conservador que nossa sociedade cada vez mais abraça, acho cada vez mais raro isso acontecer. Infelizmente.
Mas para retificar sempre para todos aqueles que acham a Arte algo não inerente a nossas vidas e a combate em sua cerne como fosse algo de gente desocupada ou de vagabundo, devemos lembrar que:
Arte exige verdade, não sinceridade. Arte desconhece a ordem.
Na Arte nada é original, tanto pode ser feitas de erotismo, um cuspe, de ursinhos e ser tão estúpida quanto à vida.
Arte é do povo e a Arte serve a revolução, pois ela é o que nos rodeia.
Arte é sem lógica, intuitiva, complexa, e nem sempre baseada na simplicidade.
A Arte são poemas, são as flores e árvores. A Arte é sombra e luz.
A Arte é o apego ao nada e além da compreensão.
Ou como diria o Godard: “Não importa de onde vem, e sim para onde leva”
A Arte pode ser tudo, menos proibida!
Nota 5/5
Rodrigo Rodrigues
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essa questão do que é arte e do que não é acaba sendo bem espinhosa e dificil de definir… ate onde qualquer coisa é arte? em tempos dakeles problemas no MASP e na exposição do Santander, a discussao é bem vinda…
Luna
Bem Vinda e Obrigado pelo comentário.
Entendo sua dúvida que é pertinente. Todavia, como transgressora, a arte ele sempre será vista mais como algo subjetivo que propriamente ter um limite. Até porque a discussão se deu justamente por alguém ou um grupo quis impor um limite. E isso não pode acontecer. Jamais.
Você pode não gostar, achar que não é arte e que não serviu para sua maneira de ver o mundo. Isso é válido, mas proibir e que outras pessoas tenham acesso, não.
Abraços.
grande critica, tecnicamente falando… alto nivel… sensibilidade e conhecimento saindo pelos poros… parabens… vai rolar critica de Depois Daquela Montanha (The Mountain Between Us)?
Pitanga
Bem Vindo
Agradeço imensamente que tenha gostado, e claro, pelo elogios. Espero que o filme tenha agradado, caso tenha visto.
Quanto a Crítica do ”Depois Daquela Montanha”, ainda não pude ver o filme , mas semana quem vem o farei e escreverei sobre.
Abraço
Excelente crítica! E o filme me parece muito muito interessante!
Pera Pereira
Bem vinda
Obrigado pelo elogio. Espero que goste do filme também. Realmente é um manifesto.
Abraços