Cyberpunk: poder, repressão e resistência
A ficção científica constantemente nos faz questionar o futuro que escolhemos para nós, nos apresentando utopias que soam distantes e distopias com dois pés na realidade. Com o cyberpunk, um subgênero consagrado a partir da década de 80, não é diferente: um futuro rico em inovações tecnológicas e muito desigual quando o assunto é qualidade de vida da sua população. Mas quem são os responsáveis por estas condições na sociedade cyberpunk e como esse poder é imposto?
No artigo anterior, discutimos a estrutura política no cyberpunk com uma pergunta em especial: quem detém o poder nesse universo? As corporações. Nestas sociedades o governo tem um papel diminuído pelas forças do mercado, transformando-se em um mero facilitador para a acumulação de capital por grandes conglomerados empresariais.
Lógico que a população fica completamente em segundo plano neste contexto, sendo apenas explorada como uma forma de manter o sistema em funcionamento, dando legitimidade ao Estado e seus interesses. Para dar aval à essa governabilidade controlada pelos monopólios do mercado, os cidadãos precisam reconhecer a figura do governo e para isto são usadas ferramentas de consentimento. Neste texto iremos analisar as formas com que o Estado e as corporações impõem seu poder sobre a sociedade, fortalecendo a sua condição de superioridade em relação aos demais.
“ Resistir é inútil ”
Parafraseando a famosa frase dos Borg em Star Trek, quem detém poder acredita fielmente em seus mecanismos para alcançar a obediência do restante da população. No Estado cyberpunk, o consentimento é feito através do prazer (tecnologias e consumismo), da repressão (militarismo, socioeconômica e monitoramento contínuo) e do controle da informação.
Digo consentimento pelo prazer quando se utiliza da tecnologia para alienar um indivíduo, fazendo-o passar longas horas do seu tempo ocioso atrelado a uma atividade e assim bloqueando manifestações do pensamento crítico. Realidade virtual e aumentada (como no curta sci-fi Uncanny Valley), implantes cibernéticos recreativos, imersão no ciberespaço, as TVs do futuro, o consumo de drogas e a ambição consumista podem se encaixar nessa categoria. Assim, o Estado consegue saber exatamente o que o indivíduo faz, o que quer e onde vai estar… cortando qualquer forma resistência pela raiz.
Um bom exemplo de consentimento pelo prazer é o regime governamental apresentado em Admirável Mundo Novo (e seu SOMA) ou a figura de Cypher em Matrix, que prefere abrir mão do conhecimento da realidade em troca de uma “ilusão” bem mais prazerosa. É uma escolha que todo cidadão pode ter e a verdade, quase sempre, não é bela.
Nem sempre se fala diretamente de repressão pelo Estado no cyberpunk, pois muitas vezes sua figura está tão diminuída que até mesmo as corporações assumem esse papel. De modo geral, o papel da força em prol da hegemonia é feito abusando da maior vantagem em relação aos demais: o capital. O alto nível tecnológico em conjunto com grandes investimentos possibilita defender a posição privilegiada e os interesses de um segmento dominante com o que há de mais moderno e letal, abusando de arsenal tecnológico e da espionagem, realizando o monitoramento contínuo da população.
Bons exemplos podem ser observados em Juiz Dredd (autoridade policial que assimila os poderes legais de investigar, julgar, condenar e executar em uma Nova Iorque super expandida do futuro) e o clássico Robocop, que nos lembra o papel histórico da polícia e do exército: sanar os conflitos entre os grupos que constituem a sociedade. No caso de Robocop a situação é ainda mais interessante, pois por trás da força militar está uma corporação, a OCP, com controle total sobre o Estado e a mídia. A força de repressão é tão intensa e rentável que muitas vezes o mercado e a sociedade civil também assumem este papel, como no surgimento de forças paramilitares e na figura dos caçadores de recompensa como acompanhamos em Cowboy Bebop, sempre em prol de interesses próprios e/ou em consonância com aqueles quem detém o poder.
Em relação ao monitoramento contínuo da população, destaca-se o importante romance A Scanner Darkly de Philip K. Dick, adaptado para o cinema em 2006 por Richard Linklater com o título O Homem Duplo, no Brasil.
A própria segregação socioeconômica surge como mecanismo de repressão no Estado distópico do futuro, sempre trabalhando com o intuito de separar aqueles que detém o capital e as pessoas subjugadas. E claro, essas diferenças e desigualdades intensificam os conflitos que acabarão sendo intermediados pelo Estado. Isso fica bastante didático ao observarmos a sociedade criada em GUNNM (ou Alita Battle Angel), onde a cidade Zalem literalmente flutua nos céus e é destinada apenas a nata da sociedade, enquanto boa parte da população vive em péssimas condições entre o emaranhado desordenado da Cidade da Sucata. Ascender à Zalem é um sonho para muitos… mas a que preço?
Por fim, mas não menos importante, destacamos o controle da informação, trabalhando em prol de um controle ideológico sobre os indivíduos. Seja através das tecnologias que promovem o prazer ou dos meios midiáticos, o Estado controla de formas diretas e indiretas o que é consumido pela população. Destacando produtos e informações que vão em encontro ao mantenimento do poder das corporações. Não há independência nos grandes órgãos midiáticos e a educação é moldada para barrar o pensamento crítico, evitando rebeliões e criando mais consumidores deste estilo de vida. Em Robocop, tanto em sua versão original quanto na recente, podemos acompanhar bem o papel da mídia e da propaganda sobre a opinião pública. Por sua vez, em Johnny Mnemonic, filme dos anos 90 que é uma adaptação de um conto de William Gibson, conhecemos de perto o papel dos contrabandistas de informações e a imensa riqueza que carregam.
Informação é poder (e quem detém o poder sabe disso).
A privacidade é uma lenda (e você já deveria estar ciente desde o início).
Resistir é possível
Dentro da literatura distópica e cyberpunk sempre cabe a um seleto grupo a tarefa de resistir perante ao poder. Sempre à margem da sociedade, são parte da periferia destes universos e transformam esta situação em uma poderosa aliada.
Como notamos, os instrumentos de consentimento dos governos e corporações são muito afinados e resistir fisicamente torna-se inviável, frente ao nível de superioridade tecnológica e monetária. Normalmente nestes enredos, é comum que os heróis, como Case de Neuromancer, se infiltrem e tentem alterar o sistema através de outros artifícios… o uso da informação!
A informação é poderosa no universo cyberpunk, grandes corporações criam e destroem mundos em busca da informação correta. Porém muitas vezes é no emaranhado do mundo periférico e no ciberespaço que a luta fica de igual para igual. Não atoa, o ciberespaço é tão explorado em Neuromancer, onde são criados conceitos como Matrix e a realidade virtual, uma forma de interagir “fisicamente” com a internet. Justamente por isso, hackers assumem papéis de protagonistas na resistência ao Estado/corporações, causam mudanças e desmoronam impérios em batalhas que envolvem programação, vírus de computadores e firewalls letais.
O ciberespaço surge como esse espaço sem regras e ilimitado em oposição ao espaço “real” que é totalmente controlado e monitorado. Um local onde a informação pode circular livremente, hegemonias podem ser desafiadas, meios midiáticos independentes podem se multiplicar e o conhecimento pode ser amplamente compartilhado. E é justamente nesta situação e nas figuras de resistência, como os hackers, que reside todo o ‘punk’ por trás do ‘cyber.’
Um paralelo com nossos dias atuais pode ser vistos nas ações de Snowden, do grupo Anonymous, bem como de Julian Assange e seu WikiLeaks, expondo segredos e colocando em xeque a legitimidade de governos pelo mundo. O próprio Ocupy Wall Street ou as manifestações de Junho de 2013 também parecem beber desta fonte, desta vez em uma manifestação coletiva. O mesmo vale para a evolução das mídias independentes, propiciando qualidade de informação ao alcance de toda a comunidade (em contraste com a evidente imparcialidade dos grandes meios midiáticos). A própria universidade, quando consegue quebrar as barreiras autoimpostas com a comunidade, instiga o pensamento crítico contra as instituições de poder através da discussão e de descobertas científicas. Como reflexo desse viés racional na sociedade (ou ao menos em boa parte dela), governos teocráticos foram menos comumente retratados nos futuros de livros e filmes nas últimas décadas (mas estão longe de serem inexistentes, vide Mad Max, uma prova que esse temor ainda existe).
Outra forma recorrente de resistência, e que podemos conferir em Neuromancer e nos romances da trilogia Sprawl, é a consolidação de comunidades autônomas. Esses grupos anarquistas são regidos por regras próprias e encontram-se, de certa forma, isolados das decisões governamentais externas. Claro, a sua existência só é possível se passar despercebida pelos olhares das corporações ou se não apresentarem uma ameaça a sua hegemonia. Em caso contrário, ao serem alvo das máquinas do Estado/corporações, serão atingidas por violentas investidas, como acompanhamos na Zion de Matrix que é atacada pelos sentinelas ao serem determinadas como uma ameaça; diferentemente da Zion de Neuromancer. Um bom exemplo de comunidades deste tipo inseridas no universo sci-fi está no conto Visite Port Watson, praticamente um guia turístico da ilha de Sonsorol: um paraíso autônomo no Pacífico (em um texto tão autonomista, mas tão autonomista que até a sua autoria é um pouco incerta).
O que talvez ainda não tenha ficado claro é: até onde iria o enfrentamento no universo cyberpunk? Se corporações caem, são destruídas, quem as substitui? Aqueles que resistem estão dispostos a compor um novo Estado ou estão ali apenas como instrumentos para a sua reforma? O futuro está na autogestão das comunidades? Este é um questionamento que fica, não somente para a literatura, mas também para a nossa visão do mundo atual.
O que o futuro nos reserva?
Pensar o futuro é uma atividade recorrente em nossas vidas. Sempre nos pegamos pensando e imaginando como será o nosso futuro, bem como o futuro de tudo em que está a nossa volta.
O grande número de ficções científicas distópicas nos demonstra que não estamos muito felizes com a nossa sociedade, temos medos e somos (ou estamos) um tanto pessimistas em relação ao futuro. Não que isso seja algo totalmente ruim. Na verdade, acaba por se transformar em um ótimo exercício de autoconhecimento, instigando o reconhecimento de erros e a capacidade de assumir que “sim, nós erramos em muitas coisas”.
Assumir erros e buscar compreender o mundo que nos rodeia devem ser os primeiros, e mais intuitivos, passos para a evolução.
Criar a nossa própria visão da civilização no futuro nos possibilita pensar: é esse o caminho que queremos? Estamos fazendo um bom uso dos recursos que desenvolvemos? Usamos as revoluções intelectuais e tecnológicas a nosso favor ou deixamos que sejam usadas contra nós?
Dos escritos de Neuromancer até hoje, se passaram 30 anos. A internet se fez realidade, foi revolucionária e hoje faz parte do nosso cotidiano. Instrumento de resistência ou mecanismo para o consentimento pelo prazer e manipulação da informação? Contestadora ou consolidadora do mundo como conhecemos?
Bem… isso cabe a cada um de nós responder.
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Nota do autor: este artigo é parte do ensaio “O Cyberpunk e o Estado Contemporâneo”, onde além do debate que acabou de ler, também são introduzidos didaticamente conceitos das Teorias de Estado como “Legitimidade”, “Consentimento”, “Hegemonia” e o “Estado”, propriamente dito. Caso tenha interesse, você pode ler o texto na íntegra clicando aqui.
Arte da imagem de destaque: Nivanh Chanthara.
Gael Mota
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Texto excelente e assustador.
Muito foda maninho!!!
Tá, mas cadê a ficção científica? Você meramente só escreveu sobre a nossa realidade… Rs…Excelente texto! Sou fã de cyberpunk desde os 11 aninhos, tanto que escrevo um livro online e faço músicas no estilo.
Abraços. Virei seguidor do blog!
Ahahahahahahah, justo! Cada vez mais difícil separar a ficcção da realidade… e a tendência é só dificultar ainda mais. Depois gostaria de conhecer mais desses seus textos e músicas, posta aqui ou me manda pelo Facebook da vida.
Abração!
Íncrivel. Pra mim cyberpunk é uma cultura que cada vez mais ganha adeptos. O underground que todo mundo conhece.
Queria muito que a galera que curte fosse fácil de achar e manter contato
acho que esse foi o melhor texto que ja li na minha vida sobre o tema… parabens ao autor e ao site, desde ja me torneio fã de carteirinha desse site
Muito obrigado, Mário! Temos muitos temas para debater e explorar nesse universo, sempre que quiser sugerir algum tema ou participar, só avisar! Um abraço!
fantástico! sem mais
Valeu, Arnaldo! Fica de olho que sempre surgem temas do tipo por aqui.