Resenha: “Amana Ao Deus Dará” e entrevista com Edna Lopes

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amana-capa-300x300 Resenha: "Amana Ao Deus Dará" e entrevista com Edna Lopes
Amana Ao Deus Dará – capa

Durante o 2º Encontro do Lady’s Comics, em Belo Horizonte, tive a oportunidade de conhecer Edna Lopes, que participou da mesa Ficção Científica: Primeiro Roteiro. Após o evento, em uma conversa entre artistas e pesquisadorxs, Edna falou sobre um trabalho seu que imediatamente ganhou a atenção de todxs por sua importância e atualidade.

Amana Ao Deus Dará é uma história em quadrinhos escrita e ilustrada por Edna Lopes, e publicada pela editora Casa da Palavra, no ano de 2004. A história conta a tragetoria de Amana, uma jovem que foi criada pela avó na cidade de São Paulo, sem nunca ter conhecido os pais. Sua avó sempre a destratava sempre comparando-a com a mãe e inferiorizando-a por ser descendente de indígenas. Cansada do descaso da avó e com a intenção de encontrar seus pais, Amana foge para o Rio de Janeiro, onde se inicia o percurso que a levará para Salvador e, por fim, ao coração do Brasil, Amazônia.

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A história de Amana é inspirada no livro “Meninas da Noite”, de Gilberto Dimenstein. O livro é um compilado de reportagens sobre a prostituição infantil e o tráfico de mulheres nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. As reportagens foram realizadas entre os anos de 1985 e 1995, e foram publicadas em 1992, pela Folha de S. Paulo. No quadrinho, Amana presencia a prática criminosa e desumana de homens que encarceram mulheres e crianças forçando-as a se prostituir para pagar suas comidas, camas, entre outras dívidas absurdas que as forçam a uma vida de servidão e violência. Assim como o livro de Dimenstein, o quadrinho de Edna Lopes é uma contundente crítica e denúncia dos diversos abusos sofridos pelas mulheres por todo o país.

amana-6-300x300 Resenha: "Amana Ao Deus Dará" e entrevista com Edna LopesO quadrinho se passa na década de 1980, Amana inicia sua jornada no ano de 1981, e podemos nos aclimatar ao período através das ilustrações que reproduzem as cidades em detalhes como os prédios, as casas, o vestuário, os veículos, enfim, toda uma gama de imagens que nos remetem ao contexto dos anos 1980′. Outro fator que nos proporciona não só uma viagem no tempo, mas também uma viagem pelo Brasil, é o texto. Edna Lopes trabalha com excelência os sotaques, as gírias e todos os aspectos da cultura do período tratado.

É fundamental destacarmos também as diversas referências contidas no quadrinho. As músicas citadas compõem praticamente uma trilha sonora para o quadrinho e podemos encontrar o trabalho de artistas como Dorival Caymmi, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Dona Ivone Lara, além de alusões a autores da literatura brasileira, como Machado de Assis. João Alves, ator e arte-educador, observou também influências do cinema nacional em Amana Ao Deus Dará, como em momentos que o quadrinho se aproxima muito de cenas de Iracema, Uma Transa Amazônica, filme de 1976 dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Podemos enfatizar também, o traço fino que lembra Hergé, e a primorosa utilização dos requadros compondo as cenas de forma dinâmica e sempre envolvente, como na cena da festa no Rio, ou nas ilustrações que encerram e precedem os capítulos e principalmente nas páginas 66 e 67, onde o layout reproduz um disco e a disposição dos requadros conduz a leitura criando movimento como de um LP na vitrola.

Amana Ao Deus Dará é um quadrinho fundamental nos dias de hoje. Sua história forte e com final surpreendente é infelizmente atual, uma vez que o tráfico de mulheres e a prostituição infantil são crimes que até os dias de hoje persistem em existir. A HQ é muito importante sobretudo no contexto que vivemos, onde o feminismo se faz cada vez mais necessário para enfrentar e resistir à cultura machista que submete inúmeras mulheres à violência psicológica, física e sexual todos os dias.

Para finalizar, trazemos uma breve entrevista que realizamos por e-mail com Edna Lopes que, muito solícita, respondeu algumas perguntas que intencionam conhecer melhor a artista e seu trabalho.

1 Amana Ao Deus Dará tem como fator marcante em seu enredo a trajetória. No próprio quadrinho você relata sua trajetória pessoal, que assim como a personagem principal, tem suas raízes espalhadas pelo Brasil. Aonde esses caminhos se encontram? Qual a influência de seu percurso na jornada de Amana?

amana-3-300x300 Resenha: "Amana Ao Deus Dará" e entrevista com Edna LopesR: A grande influência pessoal que vejo espelhada em Amana, é o contato que tive desde de pequena com as dificuldades de se viver num país onde a escravidão é vista como algo natural. Ao perguntar por que tantas pessoas tinham de viver trabalhando quase que 24 horas por dia, enquanto poucas nem sequer trabalhavam e viviam num luxo obsceno de supérfluos? Por que mulheres tinham de trabalhar mais do que homens, negros mais do que brancos, pobres mais do que ricos?
Se em países desenvolvidos as pessoas tinham os direitos mínimos assegurados pelo estado como o estudo, a alimentação, a moradia e por que no Brasil isso era aceito como privilégio de poucos? Minha jornada pessoal acabou por se focar na descoberta das respostas para essas perguntas.
Ao descobrir que isso fazia parte de uma conjuntura muito maior do que o próprio país, que é um “acordo” internacional e basicamente o que ainda sustenta o sistema capitalista, me dediquei a mostrar o para o máximo possível de pessoas, que nada disso é natural. Que sermos escravos não é aceitável. A trajetória de Amana mostra o ápice dessa injustiça, onde mulheres são escravizadas ainda criança e destituídas de qualquer dignidade.

2 Quando nos conhecemos, estávamos em Belo Horizonte, no 2º Encontro do Lady’s Comics, onde você foi convidada para mesa sobre ficção científica. Qual a importância de eventos como esse para o meio dos quadrinhos no Brasil e para você?

R: É necessário ter esse tipo de evento porque a produção artística feminina é muito particular e é geralmente (não)vista e (não)compreendida. As Histórias em Quadrinhos são formatadas há muito tempo pela produção masculina, pela visão de mundo dos homens (essencialmente brancos e héteros) e isso impede que a maioria das pessoas enxergue toda a autenticidade de uma obra voltada para as questões femininas ou LGBT.
É muito difícil uma mulher obter sucesso sem estar fazendo algo dentro dos padrões exigidos pela audiência masculina e o que tem de mais bacana na produção feminina de HQs é que ela enfoca justamente aquilo que nunca é mostrado: o mundo visto por uma mente feminina.
Eu nunca achei que estivesse fazendo quadrinhos de gênero, mas o que faço é realmente diferente do usual e é muito importante para a visibilidade da minha obra que haja eventos assim.
Talvez daqui a alguns anos isso possa ser diferente, que as quadrinistas ganhem mais espaço e não precisem de lugares especiais. Por outro lado foi fascinante estar no meio somente de mulheres, é uma experiência que eu gostaria de repetir muitas vezes. Acho que era assim que as feiticeiras se sentiam quando armavam suas fogueiras na mata. É uma sensação de voltar para uma casa cheia de irmãs que nunca tive. Foi mágico.

3 Em Belo Horizonte, você me contou a “história da história” da Amana, ou seja, como surgiu a ideia desse enredo envolvente e intenso, como aroma de café. O que te motivou a escrever este quadrinho e como foi esse momento em que a ideia ganhou forma para você?

R: Gostei da comparação com o café, minha bebida preferida. A idéia do roteiro estava adormecida por anos na minha cabeça. Eu imaginava fazer uma história que mostrasse as diferentes culturas que o Brasil abriga, suas falas, seus costumes e queria que tivesse um cunho social, que sempre foi meu interesse maior. Queria que fosse uma garota percorrendo o Brasil mas só juntei todos os pontos depois de ter lido o livro Meninas da Noite do Gilberto Dimentein, que conta a terrível vida das meninas prostituídas. Alguns dias depois de ter lido eu estava fazendo um café e do momento em que coloquei o pó no filtro até a água sair escura na jarra, o roteiro inteiro estava pronto, inclusive com todas as viagens e muitos diálogos. Como ocorre sempre que tenho um download desses, tive de sair correndo para anotar com o café em punho.

4 No 2º Encontro do Lady’s Comics, diversas artistas iniciantes, veteranas, independentes ou que publicam seus quadrinhos através de editoras, trocaram experiência durante três dias de debates e oficinas. Como foi seu caminho como artista até seu primeiro quadrinho ser publicado?

R: Demorei a fazer quadrinhos, sempre me vi como uma pintora ou ilustradora, levou tempo pra juntar o lá com o cré. Quando fiz minha primeira história de seis páginas fui procurar editoras de quadrinhos e, como é clássico, na primeira recebi o famoso “que bonitinho o seu quadrinho”. Isso na cabeça de uma pessoa insegura é uma catástrofe. Mas com o Amana tive mais sorte, um amigo me indicou para uma editora que era dirigida por duas mulheres, acho que isso foi decisivo na escolha de imprimir meu livro. Elas logo se identificaram com a idéia e resolveram lançar.

5 Em Amana Ao Deus Dará, referências musicais compõem praticamente uma trilha sonora que acompanha o desenvolver da história. O que gosta de ouvir, ler, ou assistir? Quais artistas te inspiram?

R: Tenho um gosto muito variado, adoro trilhas sonoras, soul, funk, jazz, samba, pop, mpb. No Amana fiz algumas referências como Moacir Santos, da Dona Ivone Lara, Weldon Irvine e Beatles. Os artistas mais ouço são: Marku Ribas, Jon Lucien, Ed Motta, Henry Mancini, Ryuichi Sakamoto, Nelson Cavaquinho, Cartola, sambas enredo e outros.

Adoro os clássicos como Dostoievsky, Cervantes, Guimarães, Machado, Tardi, Hugo Pratt. Tenho lido mais ficção científica Stanislaw Lem, Asimov, Bradbury, Osamu Tezuka.

Gosto de filmes de ficção científica, assisto qualquer porcaria, mas em geral prefiro os filmes antigos. Meus diretores preferidos são Billy Wilder, Hayao Miyazaki, Kubrick, Fritz Lang, Lynch, Kurosawa, Eisentein.
Minhas inspirações são todos acima e Edgard Pierre Jacobs, Savard, Machado de Assis, Gene Yang, Trotsky, Rosa Luxemburg, Allan Poe, Posy Simmonds entre muitos.

6 Além de Amana Ao Deus Dará, que foi seu primeiro quadrinho, em 2004, você possui diversos trabalhos de ilustração e outras histórias em quadrinhos, que tipo de trabalho te interessa? Quais gêneros de histórias em quadrinhos você gosta de trabalhar?

R: Não tenho um gênero preferido, o que me move a fazer algo é sempre a vontade de acrescentar, de contribuir para mudar o que acho injusto e isso pode ser através de uma história da vida real, de ficção científica ou de um drama. Gosto de poder fazer uma história diferente a cada vez. Agora estou escrevendo contos que é uma forma de realizar mais coisas, em vez de estancar em histórias gigantescas, que minha mente tem a mania de criar.

Para saber mais sobre o trabalho de Edna Lopes, acessem: https://www.facebook.com/ednalopesArt/

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Raul Cassoni

Professor, historiador e músico. Um hibrido de boêmio com nerd, caso a vida fosse um enorme RPG. Discípulo de Mestre Splinter, Mestre Kame, Senhor Miyagi, Tio Ben, Prof. Xavier, entre outros que me guiaram em meu juramento de pesquisar a Nona Arte "nos dias mais claros e nas noites mais escuras", sempre usando meus "grandes poderes", e conhecimento, com "grande responsabilidade".

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