Crítica: Ferrugem
Direção: Aly Muritiba
Elenco: Tiffanny Dopke, Giovanni de Lorenzi, Enrique Diaz, Pedro Inoue e Clarrissa Kiste
Nota 4/5
A empatia é um adjetivo feminino que resume a capacidade psicológica de se pôr no lugar do outro em uma determinada situação (normalmente de fragilidade) para que se possa entender o que a outra pessoa estaria sentindo. Portanto, a origem feminina da palavra é mais que simbólica em uma época que bullying, em conjunto com a tecnologia dos celulares e as redes sociais, podem não apenas destruir reputações, mas destruir vidas; onde a sociedade chauvinista culpa a vítima (mulher) em caso de exposição, abusos, etc. Assim, Ferrugem, de Aly Muritiba (de Para Minha Amada Morta), não é somente uma obra contemporânea e um mosaico de nossa sociedade atual, mas um longa que mostra que precisamos entender, de uma vez por todas, a gravidade de um assunto que cada vez mais resulta em tragédias. E a situação é ainda mais agravante quanto falamos de adolescentes nascidos dentro dessa era da tecnologia, ainda em formação e maturação, sendo que as consequências atingem todos ao seu redor.
Contudo, ao dividir a obra em duas partes que se completam instrinsicamente, o diretor aprofunda a discussão sobre o aspecto da mulher através de um drama familiar diante do mundo hostil para o sexo feminino, não sendo coincidência, portanto, que todos os personagens masculinos sejam vistos como babacas, covardes, insensatos e infantis.
Portanto, não é para menos que no início da primeira parte do filme, somos jogados diretamente neste mundo de celulares empunhados a todo momento registrando selfies (sem esquecer as caretas – duckface – e dedos em forma de um ”v”) que acabam por desviar a atenção dos jovens para o que acontece ao redor. E ao conhecermos a jovem Tati (Dopke, em uma atuação cheia de nuances) e seu mundo adolescente de descobertas entre amigos de escola (como todos nós um dia já vivenciamos), tudo é mais que importante para que nos identifiquemos com o drama quando um vídeo íntimo da garota com o ex-namorado é exposto e viralizado na Internet após seu envolvimento com Renet (Lorenzi). Vemos então como uma menina cheio de desejos, medos, amigos, sonhos e ideias sendo transformada – aos olhos da sociedade – apenas em mais uma ”novinha” de sites pornográficos.
Imprimindo realidade, sem jamais criar qualquer tipo de estereótipo, caricatura ou mesmo querer romantizar um assunto grave (algo que a maioria dos filmes e séries com abordagens adolescentes parecem ignorar), a direção de Aly é elogiável ao construir a base para a tal identificação com a protagonista Tati e principalmente reflexão sobre os problemas de bullying e machismo do dia a dia.
Se, por exemplo, para o ex-namorado de Tati, a sua vergonha pela exposição se dá mais pelo tamanho de seu órgão sexual (o que denuncia a insegurança masculina padrão), sem que jamais isso possa impedi-lo de ”pegar” outras meninas futuramente, Tati, por ser mulher, é que sofrerá as maiores punições (físicas e psicológicas). Imagine, por um segundo, como deve ficar a mente de uma jovem (em desenvolvimento) ao acordar pela manhã e tornar uma simples caminhada pelos corredores do colégio em um calvário de vozes, barulhos e acusações que carregará pela vida toda.
Até porque, como diz o ”manual do homem branco hétero”, a jovem ”fez porque quis’’ ou ”não se dá o respeito’’, como se negassem que ali existe uma pessoa que teve sua vida sexual exposta sem permissão. Ademais, ao longa apresentar, mesmo que de maneira um pouco exagerada, as paredes dos banheiros pichadas com dizeres como ”tudo puta’’ ou com desenhos de cunho sexual, vemos mais uma “prova” do machismo que as mulheres são submetidas em todos os cantos e lugares. Assim, para aumentar tal contexto de isolamento da própria Tati e jogar com a expectativa (cruel) do público, a direção oculta de maneira inteligente o rosto dos pais da adolescente (inclusive em seu final) e o fato de evitar reproduzir um vídeo crucial do filme , engrandecendo o ponto de vista da protagonista, e obviamente o tom trágico da obra.
Ademais, é elogiável que a narrativa de Ferrugem consiga expor de maneira eficiente o ponto de vista tanto de Tati quanto de Renet em seus próprios conflitos, interligando-os de maneira fluída e estendendo a discussão – até porque a segunda parte, focada mais em Renet, é claramente mais lenta que a primeira, refletindo seu estado de espírito e culpa. Ao apostar em tons mais coloridos no início do filme (como no momento em que o casal é tomado de luz vermelha durante um encontro), a fotografia de Rui Poças vai se tornando mais dessaturada a medida que Tati vai se isolando de todos através de longos silêncios entre os cortes; inclusive criando rimas visuais como o fato de Tati surgir cercada pela água doce de um aquário, para no fim, Renet surgir por momentos, nas águas salgadas de uma praia (simbolizando sua personas diferentes). É interessante também que na segunda parte, toda a tecnologia que foi um dos focos dos primeiros atos, vá sendo deixada de lado, mas sem que seja abandonada a temática de escancarar o comportamento masculino, expondo o drama familiar de Renet. Comportamento este que acha descabido que uma mãe, depois de criar os filhos durante 17 anos, não possa um dia questionar a ausência paterna e levar outra vida (e neste caso as atuações de Enrique Diaz e Clarissa Kiste, como pais de Renet, são fundamentais para entendermos tal dinâmica refletida no filho). Isso tudo sem deixarmos de sentir as consequências e presença do que ocorreu com Tati.
Entendendo que o ocorrido com aquelas mulheres não é um fato isolado e que as consequências ou correlações passam longe das coincidências, somos ainda mais compelidos a reflexão da posição destas que são as verdadeiras vítimas de um padrão comportamental ainda, doentiamente, presente em nossa sociedade.
Rodrigo Rodrigues
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filme de qualidade..parabeNS Aly Muritiba.MAIRI ESTÁ NA TORCIDA POR VOCÊ SEMPRE!!
É isso aí, força ao cinema nacional !
Obrigado pelo comentário Professor.
Abraço!
que bom filme brasileiro sem ator de novela da Globo
Divisor
Bem vindo,
Obrigado pelo seu comentário!
Abraços
bom filme e concordo com vc qt ao que falou mas uma coisa é verdade se alguma mulher nao quiser se ver na Internet, melhor nao confiar e nao permitir que seja filmada na intimidade… e passou da hora de criminalizar os canalhas que fazem isso, vazam os videos
Cambio
Obrigado pelo comentário, isso engrandece o debate.
Contudo, tenho que discordar de parte de seu comentário. Jamais, em hipótese alguma, a culpa é da vítima! É justamente esta “brecha” que os canalhas sobrevivem na sociedade , que devem ser criminalizados de uma vez por todas como você disse tão bem !
Abraço
Eu não disse que a culpa é da vítima, Rodrigo. O que eu disse é: como ta cheio de fdp por ai, a unica maneira que uma mulher tem de ter 100% de certeza de qua nao cairá em videos de sexo na Net é NAO DEIXAR o marido/amante/namorado/peguete filmar ou fotografar ela. Se deixou, se confiou, já passou a ter risco. A culpa é do canalha que tem a coragem de expor uma mulher que confiou nele, mas ainda assim ela tem uma chance de EVITAR isso: nao se deixar filmar. É igual uma pessoa sair com diamante na rua a pé a noite… nao terá culpa se for assaltada, é dever do Estado proteger, ninguem tem o direito de roubar, etc… mas o único jeito de GARANTIR 100% que nao será assaltada e não perderá o diamante é NÃO SAINDO A PÉ A NOITE COM ELE NO PESCOÇO!
cinema nacional tem muita qualidade, qd se presta a fazer algo serio que nao seja uma comedia babaca com producao do SBT ou Globo… longa vida a setima arte
Rastafari
Bem vindo e obrigado pelo seu comentário.
Infelizmente o grande problema é que os bons filmes (e do outros estilos) tem uma má divulgação. Ao contrário dos filmes que você citou. Uma pena mesmo! Mas, jamais deixe de apoiar o cinema brasileiro.
Abraços