Crítica: Green Book – O Guia
Direção: Peter Farrelly
Elenco: Mahershala Ali, Viggo Mortensen, Linda Cardellini, Sebastian Maniscalco, Dimiter D. Marinov e Mike Hatton
Nota 4/5
Green Book – O Guia (primeira e última vez que usarei esse subtítulo inútil), do diretor Peter John Farrelly (Debi & Loide), é uma carismática obra sobre o choque de cultura entre duas pessoas completamente distintas (engrandecido pelas excelentes performances dos atores principais), cujo preconceito às suas origens acaba sendo o elo para um agradável road movie permeado de delicadezas, descobertas, uma amizade improvável e principalmente humor, tendo como pano de fundo uma viagem ao segregado e racista sul norte-americano.
Portanto, sim, é inevitável que a primeira coisa que vem à mente com essa descrição seja Conduzindo Miss Daisy, onde Jessica Tandy era conduzida por Morgan Freeman, e que se tornou o grande vencedor do Oscar de 1990 com quatro estatuetas (incluindo o de melhor filme). Contudo, obviamente, há diferenças (assim como semelhanças com relação ao tom menos sóbrio) entre as obras quando mencionamos a questão racial; e logo de cara é visível que ao trazer o personagem negro como o conduzido e o branco (sai uma judia e entra o ítalo americano) como condutor, a discussão racial ganha contornos inéditos na inversão de papéis. Principalmente se levarmos em conta que a história é baseada em acontecimentos reais quando na década de 60, o pianista Dr. Don Shirley (Mahershala Ali) contrata o ex-segurança da casa de espetáculos Copacabana, Tony Lip (Mortensen), como seu motorista durante uma turnê que acontece em vários estados do sul dos Estados Unidos – e somente o fato da trama se passar nesses locais no auge da segregação traz um forte simbolismo, principalmente pelo fato de Green Book se tratar de um livro (guia) com os hotéis que aceitam os negros (normalmente espeluncas a beira da estrada).
Tornando o humor algo extremamente bem executado e fundamental para o carisma da obra – além da dinâmica entre Mortensen e Ali – Green Book é suficientemente capaz de usar a comicidade como base para as discussões, o que é sempre bem vindo; obviamente não é o único modo para expor os problemas raciais, mas é um dos mais eficazes, principalmente ao jogar o espectador contra seu próprio preconceito quando está envolvido em uma atmosfera cômica (e realmente existem passagens hilárias, tanto realizadas pela própria interação dos personagens como a explicação de Tony para uma capa do disco do pianista, ou até em uma cena que usa uma gag física, como vista na seqüência em que Tony discute com um empregado do teatro que não disponibilizou o piano favorito do músico). Portanto, ao “brincar” com preconceito, nada mais emblemático que em determinada cena em que Shirley é proibido de usar o mesmo banheiro dos brancos, rapidamente identificamos que aquela cena ali não tem nada de engraçada – e qual não foi minha surpresa ao notar que alguma pessoas no cinema ainda riram de tal seqüência e talvez nem se deram conta de que foram chamadas de racistas e nem perceberam.
Claro que, como um road movie que se preze, Green Book precisa desenvolver e trabalhar os conflitos dos personagens em busca de um crescimento para ambas as partes; e sendo assim, o roteiro baseado no livro do filho do verdadeiro Tony Vallelonga procura trazer vários aspectos daquelas duas pessoas de maneira mais simples possível. De um lado temos um ítalo americano como vemos em todas aquelas imagens concebidas de um descendente de italianos vindo da área de “relações humanas” de uma boate: pouca instrução e inflexão, às vezes rude, homem de família, por vezes impaciente, direto com as palavras e gestuais tipicamente italianos, mas ainda íntegro dentro daquele universo. Um homem que apenas busca estar com a família antes do natal e que deixa qualquer tipo de preconceito de lado para conseguir um salário bem maior que sonharia expulsando bêbados de um bar. Sendo interessante que ele mesmo ao admitir que não se importa com o senso comum que se tem de um italiano que adora comida (pizzas, massas e outras especialidades), Tony tem, até certo ponto, um arco dramático sem grandes nuances ou mudanças uma vez que ele termina o filme praticamente da mesma maneira que começou (o que pode ser um defeito); mas isso não impede que Viggo Mortensen e seus quilos a mais transformem seu personagem em um sujeito querido, de bom coração e de grande empatia – mesmo com seus defeitos.
O que nos traz ao personagem de Mahershala Ali que faz de Dr. Don Shirley, uma pessoa elegante, voz e gestos totalmente antagônicos aos de seu motorista e cujo arco dramático, ao contrário do amigo, é montado a partir de redescobertas de um mundo que ele aparentemente evitava enfrentar; alguém criado em um mundo de brancos sem que se dê conta de que poderia ser “confundido” com um.
E como os acontecimentos passam diretamente pela sua existência, o longa é hábil em construir um clima de indignação pelo fato de acharmos que ele “abandonou” suas origens negras em prol das palmas da elite branca; e de certa maneira não estaríamos errados, até porque ele mesmo admitiu que desconhecia grandes nomes da música com Litlle Richards e Aretha Franklin. Contudo, mesmo sem jamais se aprofundar nas discussões raciais de maneira mais crua, e sempre trazendo um visual sem tons mais sombrios (a fotografia de Sean Porter é sempre pautada por uma palheta de cores quentes e fortes), é na presença de Ali que mensuramos que aquele músico preso em um mundo próprio, tendo que reencontrar suas origens, mostra força para enfrentar um mundo hostil à sua cor e sexualidade. Assim ao questionar o amigo em um momento de revolta, dizendo que ele se achava mais negro que ele, a direção deixa claro que as aparências realmente podem ocultar uma alma atormentada. E mesmo dentro desta conceituação, o longa ainda consegue momentos marcantes dentro do contexto de Don Shirley, como quando, ao ver os trabalhadores de uma lavoura, o pianista entende que nem sempre suas atitudes poderão ser compreendidas diante de um cenário de opressão e desumanidade.
Green Book é uma obra que, com todos seus méritos, ainda assim poderá ser acusada de inocente e com um desfecho para lá de sentimentalista, e até dentro dos temas apresentados – com relação às motivações de Shirley – poderá ser ainda considerada algo moralista ou até mesmo sem ousadia em uma jogada de esperteza do diretor, mesmo abordando um assunto tão crucial como o de dois homens marginalizados pelo senso comum; e neste caso seria algo absolutamente aceitável tais deduções – ou que o longa fosse chamado até mesmo de anacrônico e pedante. Todavia, em um ano com grandes filmes que usam de uma narrativa pouco convencional para expor o preconceito de maneira marcante, como por exemplo, Infiltrado na Klan e Ponto Cego, ainda assim, é possível que saiamos da sessão com uma sensação agradável pelo entrosamento dos seus personagens, sem esquecer o perigo que a sociedade ao redor deles representa.
É… é possível.
Rodrigo Rodrigues
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Um filme sobre questões raciais, ainda hoje chamam muita a atenção, mas fiquei bem decepcionado com o diretor Spike Lee, que surtou no Oscar e tentou abandonar a cerimônia ao saber que o Green Book seria o vencedor da noite. Para Lee, O diretor simplesmente não concorda com os pontos de vista elaborados sobre racismo por mostrar ‘um branco ajudando afro descendente coitado” . Lamentável.
Vigo Mortensen foi indicado pelo papel? ou so ano que vem? Pq merece muito!
Larissa
Obrigado pelo comentário e seja bem vinda
Sim, foi indicado, mas as chances de ganhar são poucas!
Abraço
Boa critica q consegui mostrar as virtudes do filme parabens
Dilei Brito
Bem vindo
Obrigado pelo elogio ao texto. Este é o maior prêmio que alguém que escreve sobre cinema pode receber
Abraços e se puder de uma curtida na nossa página no Facebook
Abraço
parado demais… arrastado, lento… muita filosofia e pouca historia… esta alem da minha capacidade de admirar um filme
Evilene
Bem vindo
Eu acredito!
Abraço
k k k k k k k k k Rodrigo mandou bem
Bom filme, tem esse lado crítico do ponto de vista social, mas fora isso tb é legal pq tem uma história boa e os atores estão muito bem! Recomendo!
Sanepovisk
Bem vindo
Obrigado pelo comentário.Que bom que o filme agradou
Abraço
O filme é um road movie divertido, mas que também faz pensar. A transformação de Tony de um conservador racista em alguém mais tolerante é um dos caminhos percorridos, mas não o único. Shirley também muda ao embarcar na jornada ao lado do motorista.
Green Book – O Guia é um caso que se vale do selo de “história real” para se aproximar do público com uma narrativa sobre aceitação (de si mesmo e do outro). Assim como Fargo, o “baseado em uma história real” que acompanha Green Book pode ser uma forma de manipulação sentimental, o que não é nenhum absurdo em uma arte que se vale na sua essência da capacidade de brincar com a percepção do público – desde que os irmãos Lumière fizeram a plateia temer por suas vidas com a exibição de A Chegada do Trem na Estação.
Com a discussão racial muito mais aprofundada de hoje, dificilmente Green Book: O Guia terá o mesmo ápice que Conduzindo Miss Daisy alcançou; o Muro de Berlim jamais foi reerguido (e querem erguer outro parecido em uma fronteira); a “Tolerância Zero” desmedida de George H. W. Bush não parece ter encontrado uma solução além de segregar ainda mais; e um filme de Spike Lee (Infiltrado na Klan) está indicado ao Oscar como um dos favoritos – além do próprio Lee como Melhor Diretor pela primeira vez. Novos tempos!