Scythe, Steampunk, e o Carro na Frente dos Bois

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A sabedoria popular ensina que colocar “o carro na frente dos bois” é uma receita para a catástrofe, e quase sempre dá errado. Entretanto, vez por outra acontece um episódio ou situação que desafia esse adágio. Uma dessas é, sem dúvida, o excelente e prestigiadíssimo jogo Scythe. Lançado nacionalmente pela Grok em 2017, quando a editora ainda era Ludofy, o Scythe fez parte da terceira leva de jogos estrangeiros de sucesso. E esse sucesso no exterior também se repetiu em terras brasileiras, pois o jogo vendeu bastante, e atualmente possui uma sólida base de fãs “brazucas”.

 

Mas antes de explicar o que o Scythe, e o dito popular, têm a ver um com o outro, é preciso retornar um pouco no tempo. O Scythe é um jogo ambientado no universo steampunk que, por sua vez, é um gênero de ficção científica derivado do cyberpunk.

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Retornando ainda mais, a ficção científica é um gênero literário muito antigo, que remonta ao século XIX. Isso principalmente devido aos livros de Júlio Verne, considerado o “pai da ficção científica”, com muita justiça. Isso é praticamente um consenso. Porém, existe quem conteste essa afirmação, alegando que a ficção científica surgiu muito antes, com o “Frankenstein” de Mary Shelley, nascido de uma brincadeira despretensiosa. Isso porque “Frankenstein” é uma obra de 1818, e “Cinco Semanas em um Balão”, primeiro livro de sucesso de Júlio Verne é de 1862. Só que essa alegação tem dois problemas.

 

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Imagem BGG: Scythe

 

 

O primeiro problema é o fato de Mary Shelley ter escrito apenas dois livros que remotamente tem a ver com ciência: Frankenstein e The Last Man. Ao contrário disso, praticamente toda a obra de Júlio Verne é voltada para ciência, em variados aspectos como geologia, viagens espaciais, ciências aéreas, submarinos, etc.

 

O segundo problema é que Frankenstein e The Last Man são muito mais voltados para questões filosóficas, existenciais, sociais e psicológicas, do que propriamente científicas. Já na extensa literatura de Júlio Verne, diversos problemas científicos são abordados, às vezes até mesmo em pequenos detalhes.

 

Basta citar a questão da mudança do formato da cápsula em “Da Terra à Lua”, para poder acomodar os astronautas do livro. Outra passagem interessante são as explicações do Capitão Nemo sobre o funcionamento, e a subsistência da tripulação do Náutilus, em “20.000 Léguas Submarinas”.

 

Com o fim do período mais produtivo de Júlio Verne, surge na transição do século XIX, para o século XX, o igualmente genial H.G. Wells. Livros como “A Máquina do Tempo” (1885), “O Homem Invisível” (1897), “Guerra dos Mundos” (1898), “O Alimento dos Deuses” (1904), “Os Dias do Cometa” (1906), Men Like Gods (1923) e “The Shape of Things to Come” (1933), ajudaram a moldar a ficção científica das primeiras décadas do século XX.

 

Da década de 1930 em diante, a ficção científica foi muito impulsionado pelas revistas no estilo pulp fiction. Vale um destaque especial para a Revista Astounding Science-Fiction, lançada em 1936, onde grandes nomes da ficção científica publicaram seus contos, pela primeira vez.

 

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Imagem Google: Astounding Science-Fiction

 

Veio a Segunda Guerra Mundial, e após seu térmico as duas superpotências emergentes, EUA e União Soviética, iniciaram a chamada Guerra Fria. Um dos principais aspectos foi a corrida armamentista, principalmente após agosto de 1949, quando os soviéticos mostraram que também possuíam a bomba atômica. Logo em sequência, na metade dos anos 50, começou a corrida espacial, entre as duas nações, que perdurou praticamente até os anos 80. Muito mais do que levar o homem ao espaço, a principal preocupação eram os satélites espiões capazes de coletar informações vitais do inimigo.

 

Nesse mesmo período dos anos 50, surgiram três dos maiores pilares da ficção científica moderna e esse gênero literário nunca mais foi o mesmo. Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Ray Bradbury não apenas redefiniram a ficção científica, mas também influenciaram profundamente tudo aquilo que se escreveu depois. Tanto Asimov, quanto Clarke, eram inclusive cientistas de formação, o primeiro bioquímico e o segundo físico, e publicaram diversos artigos e livros científicos, principalmente Asimov.  Uma das características de seus livros é que eles procuravam escrever, o máximo possível, com base no saber científico real da época. Uma curiosidade é que diversas edições posteriores de contos e livros possuem introduções explicando eventuais incongruências, conforme os dados científicos da época se mostravam equivocados.

 

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Imagem Google: Asimov, Bradbury, Clarke e Dick gênios da FC

 

A geração seguinte a esses três monstros, e influenciada por eles, conta com nomes como Phillip K. Dick (quase contemporâneo dos três) e William Gibson. O primeiro escreveu o romance “Androides Sonham com Carneiros Elétricos?”, que foi adaptado para o cinema por Ridley Scott no fenomenal clássico Blade Runner. O segundo escreveu o romance superinfluente Neuromancer, de 1984, que lançou as bases o subgênero cyberpunk de ficção científica.

 

Na verdade quem cunhou o termo cyberpunk foi Bruce Bethke, alguns anos antes, no conto “Cyberpunk” publicado em 1980 na revista Amazing Science Fiction Stories. Mas apesar disso, e sem nenhuma dúvida, foi o romance Neuromancer que realmente tornou o gênero cyberpunk aquilo que ele é.

 

Cyberpunk é um tipo de ficção científica pessimista, mesclando grande desenvolvimento tecnológico com degradação social e péssima qualidade de vida, para a maioria da população. Nisso, o gênero cyberpunk contrasta com o futuro imaginado por Asimov, que era muito mais otimista. No cyberpunk, as cidades são feitas de vielas imundas, muita violência, grandes corporações, prédios imensos, outdoors gigantescos e uma onipresente luz neon. Os poucos ricos vivem uma vida paradisíaca com tudo que a tecnologia tem de melhor, e o grosso da população com as sobras e migalhas. Nesse aspecto o filme Blade Runner retrata fielmente como seria um futuro cyberpunk.

 

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Imagem Google: Neuromancer

 

Alguns anos depois, já na década de 90, surgiu o steampunk, que é outro subgênero da ficção científica, decorrente e influenciado pelo cyberpunk, mas diametralmente oposto. O cyberpunk foca em um futuro sombrio e avançado tecnologicamente, com lasers, computadores e ciberespaço.

 

Já o steampunk foca em um passado alternativo, com tecnologia baseada na mecânica, e principalmente tendo o vapor como fonte de energia, daí seu nome. Portanto, todo o desenvolvimento tecnológico leva em conta o vapor, inclusive aviões, computadores e robôs gigantes. Nesse universo paralelo, mesmo retratando uma época mais antiga, muitos desses desenvolvimentos superam inclusive a tecnologia atual.

 

É nesse cenário que surge o Scythe. Ele é um jogo com temática steampunk (tecnologia baseada no vapor, mas em um nível superior ao nível atual com robôs gigantescos MECH). Essas máquinas avançadíssimas são movidas a vapor e baseadas na mecânica e em engrenagens. Juntamente com os MECH, outro elemento do jogo é a utilização da tração animal como principal forma de transporte de tropas. Ele também utiliza animais selvagens, tais como ursos e lobos, como verdadeiros companheiros de batalha.

 

E onde entra os carros na frente dos bois?

 

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Imagem jrozalski.com: 1920 Before the Storm – Jakub Rozalski

 

Pois bem, quase que na totalidade dos jogos de tabuleiro, primeiro nasce a ideia do jogo. Só depois, com o conceito central pronto, é que se pensa nos elementos intangíveis (mecânicas e regras), bem como os elementos tangíveis como componentes e arte. Mesmo os jogos que são adaptações de filmes e livros, em grande parte seguem essa receita.

 

Com o Scythe aconteceu o contrário. Não surgiu primeiro a ideia inicial do Scythe e depois seus criadores procuraram uma artista que desse forma ao conceito. Existia inicialmente a arte do artista polonês Jakub Rozalski, e baseado nas suas pinturas é que se procurou criar um jogo que refletisse esse universo. O Scythe foi inspirado principalmente na série de quadros 1920+, especialmente o quadro “1920 – Antes da Tempestade”, daí “o carro na frente dos bois”. A imagem da própria caixa do jogo é uma obra do artista.

 

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Imagem jrozalski.com: 1920 Iron Harvest – Jakub Rozalski

 

Uma coisa muito interessante no trabalho de Jakub Rozalski é que o desenvolvimento tecnológico, não se estende por todos os setores sociais, como o econômico. Assim, boa parte da produção agrícola não é mecanizada, e nisso reside a crítica social de sua arte. O desenvolvimento tecnológico não está a serviço da sociedade, mas sim a serviço do Estado e mesmo assim apenas em alguns setores específicos e estratégicos.

 

Essa dualidade da arte de Jakub Rozalski (exército mecanizado parcialmente x produção baseada exclusivamente na força de trabalho humana) é muito bem trabalhada no Scythe. O jogo não é apenas um “Battletech moderno”, aliás, o aspecto econômico, e produção de recursos, são talvez mais dominantes que os conflitos militares diretos.

 

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Imagem jrozalski.com: 1920 Warlord – Jakub Rozalski

 

Na verdade o desenvolvimento tecnológico é restrito às forças armadas, e assim mesmo apenas a alguns setores. Como se pode ver em algumas pinturas, os exércitos já contam com robôs gigantes, mas o principal meio de transporte de tropas ainda é o cavalo.

 

Muito provavelmente isso tem dois motivos. O primeiro motivo, embora não haja confirmação nesse sentido, é uma provável alusão a um episódio mítico da 2ª Guerra Mundial. Reza a lenda que uma unidade de lanceiros do exército polonês, montados a cavalo, atacou brava e heroicamente uma unidade de tanques panzer alemães. Já está mais do que provado que o episódio não ocorreu dessa maneira. Mas foi assim que a odiosa máquina de propaganda nazista explorou o episódio, como forma de diminuir os poloneses, como uma nação atrasada. Por outro lado, ao Aliados exploraram o episódio da mesma forma, porém com outro viés, enaltecendo a coragem, o sacrifício e patriotismo dos poloneses.

 

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Imagem jrozalski.com: 1920 Final Charge – Jakub Rozalski

 

Apesar disso, o fato é que em 1939 praticamente nenhuma unidade do exército polonês era motorizada, e a cavalaria efetivamente usava cavalos. Mas ao contrário do que se pensa, o exército alemão, tido como o mais avançado da época, também dependia bastante de cavalos. Em 1º de setembro de 1939, primeiro dia da 2ª Guerra Mundial, uma unidade de cavalaria polonesa entrou em combate com uma unidade de infantaria alemã, nos arredores do vilarejo de Krojanty.

 

A unidade polonesa contava com soldados montados à cavalo, e a unidade alemã com soldados à pé e alguns caminhões blindados e com metralhadoras. O encontro resultou na total aniquilação da unidade polonesa, restando diversos cadáveres de soldados e cavalos, o que deu origem ao mito. Porém, o ataque permitiu a retirada em segurança do 1º Batalhão de Rifles polonês e do Grupo Operacional Checo, para lutarem em melhores condições e melhor terreno. Com o tempo o mito do ataque dos lanceiros ganhou corpo e fama, alguns enaltecendo o despreparo e outros a coragem e tenacidade, de modo que ele vive até hoje.

 

O segundo motivo, e bem mais provável, é deixar claro que o ambiente retratado nas pinturas não é o futuro, mas sim o passado, em especial o início do século XX. Porém, esse passado acontece em uma realidade alternativa, que é o espírito do gênero Steampunk.

 

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Imagem jrozalski.com: 1920 Heroes of Zalesie – Jakub Rozalski

 

No entanto nem tudo são flores para Jakub Rozalski. Ninguém duvida da genialidade do artista, mas uma questão, no mínimo polêmica, envolve a sua arte. Muitas de suas obras não são criadas do zero, mas sim a partir de fotos reais, em cima das quais o artista acrescenta o desenhos dos MECH. Isso levou inclusive à discussão sobre até que ponto ele tem o direito autoral sobre as imagens que produz, justamente porque elas foram criadas tendo como base imagens pré-existentes.

 

O Scythe, não bastasse ser um dos melhores jogos já feitos, é ainda mais admirável, por subverter o senso comum (primeiro o jogo, depois a arte). Não é qualquer jogo que sobrevive a uma mudança tão drástica no processo de criação, e muito menos que obtém tamanho sucesso. Mesmo passados quase 10 anos de seu lançamento (2016), o Scythe ainda ocupa a invejável posição 17 no ranking do BGG. Essa é mais uma prova de toda a genialidade de seu criador Jamie Stegmaier e daquele que o inspirou Jakub Rozalski.

 

Um forte abraço e boas jogatinas!

 

Iuri Buscácio

 

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Iuri Buscácio

Leitor voraz de filosofia, teatro, literatura brasileira e estrangeira, suspense, e de romances históricos, de fantasia e ficção científica, além de ser fã de quadrinhos americanos e europeus, desde os tempos da saudosa Ebal, amante do cinema e das séries, e também um grande entusiasta e pesquisador dos jogos de tabuleiro, tanto clássicos quanto modernos, cuja trilha sonora é o bom samba, a MPB de qualidade, black music e música pop dos anos 70 e 80.

2 thoughts on “Scythe, Steampunk, e o Carro na Frente dos Bois

  1. Sensacional texto, Iuri! Parabéns! Não sabia dessas curiosidades espetaculares relativas ao Scythe!

    1. Caro Ralph

      Muito obrigado meu camarada.

      Eu sou suspeito para falar, mas uma das coisas que mais me atrai nos jogos de tabuleiro, é que em muitos casos, a história por trás do jogo é tão interessante e legal, quanto o próprio jogo.

      Um forte abraço e boas jogatinas!

      Iuri Buscácio

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