Crítica: Ainda Estou Aqui
Direção: Walter Salles
Elenco: Fernanda Torres, Selton Mello, Maeve Jinkings, Otavio Linhares, Dan Stulbach, Marjorie Estiano, Antonio Saboia, Camila Márdila, Valentina Herszage, Humberto Carrão, Helena Albergaria, Luiza Kosovski, Olívia Torres, Caio Horowicz, Gabriela Carneiro da Cunha, Carla Ribas, Maria Manoella e Fernanda Montenegro.
Há filmes que nascem necessários e relevantes independentes de suas épocas.
O que mais me entristece é justamente sua relevância, não somente como um documento histórico, mas pelo fato de sua importância soar tão atual com um constante exemplo de erros que parecem sempre estarem a um passo de se repetirem.
A ditadura (1964-1985) torturou, matou e custou o desenvolvimento do país com suas mazelas sociais e políticas perpetuadas até hoje. Em nome da luta contra o comunismo, famílias foram destruídas, políticos deportados, crianças igualmente torturadas e a sociedade em geral calada. Não sendo ainda mais contundente, no avanço da extrema direita no mundo, que a obra seja lançada agora como – mais um – aviso dos perigos que regimes ditatoriais representam.
Principalmente aqui no Brasil onde falhamos no passado em não punir (muitos dos torturadores faleceram) pelos crimes cometidos através das comissões da verdade durante o governo Dilma em 2012 (que apesar dos avanços, as comissões foram esvaziadas pelos coniventes/herdeiros da ditadura que ajudaram golpear a então presidenta para posteriormente assumirem o cargo) e principalmente a esdrúxula lei da anistia de 1979 (homologada pelo próprio regime); assim chegamos, depois da tentativa de golpe em 08 janeiro, novamente ao cenário da justiça brasileira tardar em condenar os mandantes pelos atos terroristas – mandantes esses que agem impunemente fazendo campanha política e mantendo a cadela do fascismo sempre no cio.
Inclusive, sempre defendi que obras como “Jango” do Paulo Henrique Fontenelle e “O dia que durou 21 anos” de Camilo Tavares fossem usadas em grade curricular para que jovens não sejam vítimas do qualquer tipo de normalização ou apagamento de memória sobre o período da ditadura militar; algo de suma importância, uma vez que o extremismo tem uma facilidade de cooptar os jovens e a população desassistida.
Assim, esse “Ainda Estou Aqui”, escrito por Murilo Hauser e Heitor Lorega (baseado no livro do escritor Marcelo Rubens Paiva), é um filme da visão do então jovem Marcelo, mais precisamente do desaparecimento de seu pai, o engenheiro, exilado na época do AI-5 e ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva (Selton Mello num atuação transmitido doçura no papel), levado pelos agentes em janeiro de 1971 e que nunca mais voltou.
É também um drama sobre memórias que urgem em manter vivos os momentos felizes em família através da figura de sua mãe Eunice (Torres); um filme cujas lembranças foram arrancadas restando apenas espaços vazios a serem preenchidos devido à ausência paterna e as dificuldades que a família teve dali em diante. Recordações que ficariam marcadas para sempre: a última conversa, o jantar em família e brincadeira entre pai e filhos. Agora tudo virou uma busca sobre um corpo que pode ter sido descartado numa vala comum durante a madrugada.
O filme de Walter Salles é um drama sobre um lar destruído, mas não deixa necessariamente de abordar o contexto da época. A câmera do diretor é ainda mais discreta por convidar o espectador a testemunhar aquela rotina durante seu longo primeiro ato, e ficamos até com percepção de exaustão por ser tão prosaico de uma família rica.
Essa sensação é mais salientada pelo trabalho da direção de artes que, mesmo tendo que gritar repetidamente ao público que estamos nos anos 70 (seja por um vinil da época ou um pote de achocolatado, por exemplo), acaba sendo narrativamente eficaz em sua lógica; justamente para gerar o contraste da visão cheia de vida daquela família com o ambiente sombrio dos porões da ditadura. Algo que sempre cria um empecilho na identificação com o público (ao contrário do outro lado da moeda, como visto em Cidade de Deus, que apesar de não abordar diretamente a ditadura, devemos lembrar que aquela violência não era uma crise de segurança pública do governo militar, e sim, um projeto de segregação).
Inclusive, a fotografia de Adrian Teijido realça isso de maneira contundente: se temos na casa da família Paiva um ambiente de luz entrando pelas janelas com um palheta de cores quentes de um ambiente praiano, é triste constatar – no quesito da história – que tais elementos vão sendo substituídos aos poucos pela escuridão do regime militar. Seja pelas cortinas sendo fechadas para ocultar o crime sendo cometido ao manter a família sequestrada, enquanto aguardam noticias que nunca virão, cujo ambiente é substituído pelos corredores do centro de tortura até culminar na escuridão total em volta de Eunice durante seu encarceramento, uma escuridão de morte, de sufocamento e desesperança. Aliás, o simbolismo de uma época que muitos insistem em amenizar, é feito nos detalhes de duas cenas que acabam criando um elo com nossos tempos atuais.
Uma delas é quando Eunice, ao escrever uma carta, começa o parágrafo “Ele não” e o pequeno gesto de Fernanda Torres em segurar por míseros segundos a escrita faz uma diferença tremenda para reforçar aquele gesto como ligação ao filho e defensor da ditadura militar que presidiu o país; isso sem dizer que esse mesmo psicopata debochou das famílias que procuram os restos mortais dos desparecidos dizendo que quem procura ossos é cachorro (e uma cena envolvendo o cão da família Paiva pode até não ser intencional nesse sentido, mas faz total significado pelo simbolismo do ato).
Assim, Fernanda Torres confere a Eunice um olhar discreto, e apesar de ser associada a papeis mais cômicos, volta ao centro da discussão política brasileira (como visto em “O Que é isso Companheiro?” de 1997 e “Terra Estrangeira” de 1995). Eunice transita numa espécie de negação ao mesmo tempo sabendo que precisa levar adiante sua vida como força matriz de cinco filhos e perpetuar sua história e a o nome do marido (Eunice se tornou símbolo na defesa dos direitos humanos, que lutou arduamente contra o espólio da ditadura e também é referência na defesa dos povos indígenas, igualmente vulneráveis).
Mantendo um clima de apreensão de algo que sabemos que nunca virá, Ainda Estou Aqui apressa um pouco suas passagens de tempo em seu trecho final, mas servindo sempre para não deixar que a memória de Rubens Paiva e os crimes da ditadura sejam esquecidos (mesmo, já na década de 90, o único alívio da família Paiva foi um atestado de óbito do governo de FHC). A presença ilustríssima de Fernanda Montenegro (que apenas num único gesto traz todas as dores à personagem) e seu estado de saúde da personagem é uma triste metáfora para sobre aquilo que não devemos fazer: esquecer!
Rodrigo Rodrigues
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Um filme necessário. Qd os artistas e a produção não querem lacrar, apenas combater a desinformação e as fake news, uma obra “esquerdista” sai boa. O mesmo vale pra direita, antes que me ataquem!
Um filme muito relevante pra nossos tempos, em que negacionistas (a maioria nem tinha nascido quando estes eventos aconteceram), conspiradores e imediatistas de última hora tentando pagar de herói nacional, tentam mudar nossa história . Não podemos deixar que se repita nunca mais estes eventos no Brasil.
Parabéns ao Marcelo Rubens Paiva, que levou mais um livro para os cinemas, na década de 80, ele conseguiu levar “Feliz Ano Velho” (best seller da juventude daquele período), para as telas grandes .
Li Feliz Ano Velho e Blecaute do Marcelo, dois livros muito legais… em Feliz Ano Velho ele ja cita o caso do sumiço do pai… como vcs disseram, cada vez mais dificil impedir que reescrevam a historia e digam que “nao era ditadura” nesse pais