Crítica: Malu
Direção: Pedro Freire
Elenco: Yara de Novaes, Juliana Carneiro da Cunha, Carol Cunha e Atila Bee.
Baseado nas memórias do diretor Pedro Freire, Malu é uma visão particular da atriz – e mãe do diretor – Malu Rocha, interpretada eletricamente por Yara de Novaes. Um mulher de 50 anos, morando em uma desamparada comunidade carioca no início dos anos 90 com a mãe (Juliana Carneiro da Cunha); onde, desempregada, Malu passa os dias vivendo das lembranças do passado durante quando atuava nos palcos políticos nos anos 70, em plena ditadura.
Numa busca quase quixoteana em arrecadar fundos para transformar a casa – em construção -, em um espaço cultural para a comunidade, Malu soa como riso nas dinâmicas entre os personagens através das lágrimas devido ao tenso choque de gerações e conflitos familiares quando a filha Joana (Carol Cunha) retorna do exterior para passar algum tempo com elas.
A casa quase em ruínas, comprada em conjunto com o ex-marido, se torna um ambiente cheio de conflitos quando aqueles cômodos decadentes são usados como um espaço para enfretamento, alegrias, tristezas, pobreza, ideologia de gênero, conservadorismo, abuso sexual, maconha, etc., refletidos nas palavras por ora duras, ora cheias de afeto e energia.
O longa é engrandecido também pela presença de Tibira, interpretado por um excelente Atila Bee como uma entidade artística (“Não vou deixar que o seu mal mate a minha poesia”, já uma das frases mais emblemáticas do ano). Entre um momento e outro há um sentimentalismo que compromete a naturalidade dos personagens (talvez pouco tempo para refilmarem certas cenas), mas em nenhum momento os corações das personagens ficam distantes de seus atos.
O roteiro, do próprio diretor, tem como mérito criar um elo constante entre o passado e o futuro através de Malu com sua carreira (quando trabalhou com o dramaturgo Plínio Marcos) não ter decolado pela repressão da ditadura.
Esse espólio pode não surgir inicialmente no longa, mas é interessante como vamos construindo esse mosaico ao longo do filme, como Malu sofre com isso tendo a mãe com um figura de repressão religiosa e a filha adulta durante abertura política brasileira não aparentar ter o mesmo compromisso sociopolítico da mãe; no entanto, a análise é justamente essa construção: como o filme não chega a apontar diretamente o contexto da época, tudo fica intrínseco, mas não menos contundente.
Elogiável também o diretor permitir que o espectador não fique na zona de conforto ao acompanhar o relacionamento imprevisível dos personagens. Sempre criando uma montanha-russa de emoções com a razão de aspecto quadrada confinando ainda mais aquele espaço, Malu pode ir de um momento de comicidade (mas nunca deixando de atacar a instituição – como a cena do padre), até o rompimento do relacionamento de mãe e filha; inclusive tal cena é ainda mais elogiável, não somente pela força visceral das atrizes e uma mise-en-scene lembrando uma peça de teatro, mas também pelo ótimo trabalho na fotografia de Mauro Pinheiro Jr. abusando das sombras em momentos chaves levando à escuridão tomando a mente e corpo de Malu e filha.
Dito isso, Yara de Novaes confere à sua personagem uma abordagem sem qualquer sutileza mesmo nos momentos de mais introspecção. Com uma protagonista desbocada, explosiva, solitária, exagerada e desafiadora até nos momentos finais e degenerativos, Malu serve também – como não poderia deixar de ser – de manifesto político de resignação da dúvida vindo diretamente dos anos 90 para 2024, como se pedisse: depois de tudo que passamos, – e estamos passando – peço que as futuras gerações não cometam nossos erros e sigam lutando.
Portanto, soa certa com melancolia (pelo contexto da personagem) que, assim como visto em Ainda Estou Aqui (que também é sobre a visão dos pais pelo filho), o alerta parece sempre atual.
Para onde estamos indo?
Rodrigo Rodrigues
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ótimo que filmes nos mostram as porcarias que o regime militar… mas sinto falta tb de filmes que nos mostrem as porcarias dos regimes socialista e comunista e ops ja tem varios ne so que em outros paises… no Brasil a classe artistica ainda cai nesse conto do vigario
Cara Mari Sharapova
Eu concordo em parte com o seu comentário, e gostaria de fazer algumas considerações.
Realmente, abusos seríssimos foram cometidos também nas ditaduras de esquerda, como os “campos de reeducação política” siberianos na antiga União Soviética, bem como nos fuzilamentos sumários em Cuba. Com o advento da Internet e a democratização, maior acesso e mais rapidez na divulgação de notícias, muita gente boa da nossa esquerda se surpreendeu ao descobrir que Cuba não era exatamente aquela ilha paradisíaca, que todos acreditavam ser, e que o cruel embargo econômico de mais de sessenta anos e ainda vigente, justificava apenas em parte, a situação da sociedade cubana. Infelizmente a Internet foi totalmente corrompida e hoje fica difícil acreditar naquilo que se vê ou se lê on-line, por conta do flagelo do fanatismo radical e paranoico e das famigeradas fake news, que ainda hoje literalmente decidem eleições.
Entretanto há duas coisas a serem consideradas. No Brasil, durante o período republicano, só houve ditaduras de direita, a Era Vargas e a Ditadura Militar 1964-1985. Então não faz muito sentido que filmes brasileiros, abordando a história brasileira, mostrasse ditaduras de esquerda em nosso país, simplesmente porque elas não existiram. Mas o fato de nós não termos tido ditaduras de esquerda no Brasil, não quer dizer que elas não tenham ocorrido obviamente em outros lugares. E eu acho que é de filmes que retratem essas ditaduras de esquerda, que você sente falta, e realmente é difícil encontrar filmes com esse tema, que sejam isentos, ou que se restrinjam a narra o que ocorreu como foi o caso do “Ainda Estou Aqui” sobre a prisão, desaparecimento, assassinato e negacionismo envolvendo o engenheiro e ex-deputado cassado Rubens Paiva.
Como não dá para negar que esse fato real, efetivamente aconteceu, o que as pessoas de ultradireita e defensores da ditadura argumentam tem a profundidade de um pires, coisas do tipo “ele era comunista e comunista tem mais é que ser torturado e executado mesmo”. A quantidade de pessoas que com o advento do bolsonarismo começou a defender a tortura e uma das ditaduras mais cruéis e violentas da América Latina, além reverenciar torturadores confessos com o Cel. Ulstra, é de indignar qualquer pessoa decente, com um mínimo de ética e empatia pelo seu semelhante, além de ser muito preocupante. Eu sinceramente não consigo entender como uma pessoa consegue referendar e até se orgulhar da repressão e tortura durante a Ditadura Militar, que incluía seções de choque, unhas arrancadas com alicate, estupros, pessoas sodomizadas com cassetetes enquanto penduradas no pau-de-arara, baratas, ratos e aranhas enfiadas na boca, afogamentos parciais, assassinatos e ocultação dos cadáveres. Antes até havia algum pudor em relação a isso e quem defendia a ditadura dizia que isso nunca ocorreu, apesar dos relatos de quem viveu esse inferno, e as diversas tentativas de ocultar o que foi feito nos porões dos quartéis. Alguns setores das Forças Armadas defendem até hoje que Rubens Paiva não foi morto por militares, e que Valdmir Herzog na verdade se suicidou, quando todo mundo sabe, mesmo que alguns se recusem a admitir, que a verdade foi totalmente outra. Mas atualmente, da mesma forma que as pessoas passaram a ter orgulho de serem racistas e agirem como tal, o mesmo ocorre com a tortura, que muitos defendem ter sido muito merecida.
A segunda questão que eu quero destacar é que o comunismo, durante sua curta existência, esteve presente apenas em poucos países. Mas como a antiga União Soviética e a China são países muito extensos, e a população chinesa muito grande, a impressão que se tem é que o comunismo dominou muito mais da metade do mundo, quando isso não é verdade. União Soviética, atual Rússia, e China são realmente países muito extensos, mas os países que compunham a antiga Cortina de Ferro, não são tão grandes (a Ucrânia nessa época fazia para da União Soviética). A Venezuela é na melhor das hipóteses um país de pequeno para médio (e isso com muita boa vontade), além de só ter se tornado socialista de 1999 para cá. A Coreia do Norte é um país pequeno, Cuba é uma ilha mínima e Andorra é tão pequeno que muita gente nem sabe que existe. Em contrapartida, todo o resto do mundo é capitalista, e o capitalismo cujas origens remontam a final da idade média, durou muito mias tempo do que o comunismo, que só surgiu de verdade com a revolução russa de 1917 e perdurou até a perestroika no final dos anos 80. A própria China só é comunista da boca para fora, e em relação a não ter eleições livres, mas os meios de produção já estão nas mãos da iniciativa privada há décadas.
A situação está tão doida, que a ultradireita americana, copiada canhestramente pelas elites brasileiras, na falta de um país relevante a quem acusar de comunismo, passaram a dizer que países como Suécia, Dinamarca, Finlândia, Noruega (que a maioria dos americanos sequer conseguem apontar em um mapa), é que são os “novos comunistas”, por terem saúde e educação bancados pelo estado, que é de uma correção tão evidente, que dispensa maiores comentários.
Por fim, não sei se é exatamente aquilo que você quer, mas eu te indico o excelente “Adeus Lênin” de 2003, que catapultou Daniel Bruhl ao estrelato, e que retrata a vida na Alemanha Oriental e a reunificação alemã, após a queda do Muro de Berlim.
Um forte abraço e boas jogatinas natalinas!
Iuri Buscácio