Direção : Jordan Peele

Elenco: Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Shahadi Wright Joseph, Evan Alex, Yahya Abdul-Mateen II, Anna Diop, Noelle Sheldon e Madison Curry

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Nota 4/5

Como é impossível escrever o texto sem abordar detalhes da trama… o texto pode conter spoilers!

Quando algum gênero é usado não somente para atender sua demanda, mas sim discutir algo em suas entrelinhas, qualquer obra se torna elogiável. Assim, se no inesquecível Corra! o diretor Jordan Peele expôs de maneira única o racismo institucional moldado como um excelente filme de terror, neste Nós o diretor criar uma obra mais ambiciosa, sem facilidades aparentes para um entendimento único e que permite diversas interpretações para discutir a sociedade atual. Ademais, não é a toa que o longa remeta, devido ao seu contexto de “troca de corpos”, ao clássico Invasores de Corpos (minha versão preferida é a de 1978 com Donald Sutherland) que sempre foi usado como metáfora para diversos temas como, por exemplo, a guerra fria e perseguições ideológica.

Roteirizada pelo próprio diretor, a obra tem início em 1986 quando a pequena Adelaide (Nyong’o na vida adulta) se perde de seus pais em um parque de diversões perto da praia e cujo fato a traumatizou durante um bom tempo. Todavia, já adulta, ao passar um fim de semana nesta mesma praia com o marido (Winston Duke) e os filhos, eles recebem a visita de um misterioso grupo que passa então a persegui-los. Bem, como se pode perceber, é até difícil tentar resumir o enredo do filme, pois implicaria em um exercício falho e raso devido às aspirações da obra e entregaria por demais a trama. Portanto, ao contrário, por exemplo, de Corra!, Jordan investe logo de cara em um terror mais direto – até mesmo com doses aparentemente sobrenaturais comuns em outras obras, mas ainda eficientes.

Contudo, não é somente isso, pois o diretor sabe equilibrar tais momentos sem apostar constantemente em sustos ou alguém saindo de algum lugar para matar alguém (até porque o filme conta com tais elementos e estes são um dos atrativos da obra), mas sim aposta na estranheza e no desconforto que os detalhes causam; sejam eles como o movimentar de um personagem de maneira sobre-humana, um sorriso perturbador do personagem, etc. E até alguém pode questionar porque neste filme tais recursos podem funcionar mais que em outros e a resposta é simples: preocupamo-nos em como a história se desenvolve e com os personagens envolvidos! Fora que, evitando jumps cuts (cortes rápidos transitando entres as cenas ou mesmo antecipando os sustos, como muitas obras fazem com sua trilha sonora) e evitando qualquer elemento narrativo que desvie a atenção do público, o diretor engrandece a atmosfera de suspense.

Claro que para isso a importância do elenco é fundamental, onde a presença de Lupita Nyong’o traz consigo todos os elementos que causam o clima de terror de maneira eficiente, sejam pela sua mudança de voz ou a expressão insana de seu olhar. Inclusive, o humor ainda é mais bem utilizado e mais presente que no filme anterior do diretor, pois consegue fluir de maneira orgânica dentro das cenas, engrandecendo o clima de tensão e nervosismo; como podemos ver na seqüência em que, sendo atacada, a família faz uma breve discussão sobre quem teria matado mais que o outro. E até a crítica é usada de maneira eficiente dentro do cômico, principalmente na presença da família da personagem da sempre ótima Elizabeth Moss, cuja linha tênue entre a crítica e o exagero é bem estabelecida, isso sem contar aquela que talvez seja uma da melhores cenas da obra, em que, tentando sobreviver a um ataque da família de “cópias”, a cena tem como pano de fundo músicas confrontando o estado policial.

Contudo, nada disso é usado somente para impor um clima de tensão e medo, até porque o diretor faz muito bem seu trabalho, e usa tais elementos como pano de fundo para discutir suas camadas e alegoria diversas. Ademais, a questão racial não se torna tão explícita como no filme anterior, pois se em Corra! logo de cara tínhamos o contexto jogado na cara do público, aqui tudo é mais velado em seu início. Nós é, principalmente, um filme de reflexos, reflexos de uma sociedade morta pelos seus próprios preconceitos, futilidades e vaidade. Portanto, não sendo a toa que as cenas que contém espelhos se tornem tão simbólicas e filosóficas, como podemos comprovar no momento em que a protagonista é atacada pela sua cópia e temos as imagens refletidas no vidro, se tornando um jogo de personalidades distorcidas de ambas.

Assim como a presença da própria Elizabeth Moss em sua cena em frente ao espelho, que pode também representar um mundo superficial de aparências moribundas que a sociedade se recusa a enxergar. Não sendo a toa que em determinado momento, ao perceber a organização das “cópias” em criar verdadeiras correntes humanas, tal situação claramente remete aos muros planejados pelo governo americano, onde esta organização pode ser vista como um “esforço coletivo” de parte da população contra as minorias (ademais, surgiu um comentário mais que lógico que pelo fato do filme se chamar “Us” é obviamente uma abreviatura para United States. Ou seja, mais simbólico impossível. Até porque não é coincidência que em determinado momento de terror, uma “cópia” diz: “Somos americanos!” como uma justificativa completa para as atrocidades cometidas).

Como dito anteriormente, Nós – ao contrário de Corra! – não torna o exercício de compreensão algo fácil para o espectador, mas nem por isso não se torna menos impactante e atual com relação às suas denúncias raciais, permeado de camadas de violentas críticas ao governo Trump e seus lacaios ideológicos com complexo de vira-latas espalhados pelo mundo. Neste momento que Nós entrega sua mensagem de maneira mais poderosa, quando as alegorias e metáforas dessa mesma sociedade acabam se voltando contra outros seres humanos de forma violenta e assustadora. Portanto, não é incorreto dizer que essa revolta de excluídos se revoltando contra suas personas “mundanas” sejam representados através da direção de artes que transforma o local em que se passa o clímax em uma espécie de Inferno Dantesco, uma alegoria de corredores de mentes perturbadas (como o mundo da superfície) que lutam para reaver uma chance de sobrevivência. Claro que neste momento a obra expõe de maneira prejudicial seu problema em tornar a “resolução” do filme em algo expositivo, com um embate físico e o fato de tentar explicar as motivações por trás daquelas cópias, onde o diretor tem seu momento Shyamalan (não foi um elogio…) com um plot twist sem necessidade de existir.

Deixando sensações diferentes após a sessão, Nós tem a capacidade de deixar peças que vão se encaixando ao nosso modo de assimilar o que foi assistido. E independente do desfecho que chegamos, o filme sabe qual foi o resultado e exatamente o ponto principal que tiramos dele.

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FB_IMG_1634308426192-120x120 Crítica: Nós (Us)

Rodrigo Rodrigues

Eu gosto de Cinema e todas suas vertentes! Mas não aceito que tentem rescrever a historia ou acharem que cinema começou nos anos 2000. De resto ainda tentando descobrir o que estou fazendo aqui!

20 thoughts on “Crítica: Nós (Us)

  1. No início de Nós, a pequena Adelaide (Madison Curry) assiste na televisão a propaganda do evento “Hands Across America” (“Mãos Dadas pelos EUA”, em tradução livre). Ocorrida em 1986, a campanha mobilizou milhares de americanos, que deram as mãos ao redor dos EUA e formaram uma grande corrente humana em prol da paz. No longa, o comercial foi a primeira vez em que a simbologia das mãos dadas aparece. Ela também é vista no adesivo na traseira do veículo da família e na camiseta da pequena Adelaide. Quando a família das Sombras aparece no quintal dos Wilson de mãos dadas, este é o primeiro indício de que a Adelaide original é a que passou a vida toda no subterrâneo. Afinal, era a pequena Adelaide que tinha a lembrança da utilização das mãos dadas como forma de protesto no comercial de televisão do evento “Hands Across America”. Assim, já adulta e planejando sua vingança, ela se utilizou da mesma simbologia para atormentar os Wilson em seu quintal e para passar a mensagem para todo os EUA da libertação das Sombras.

    1. bacana… mas o filme continua sendo ruim, mesmo com as explicacoes sobre a simbologia que ele tentou passar

  2. se vc desligar o cerebro e pensar nas questoes que o Ricardo California citou, até te entretem por um par de horas…

  3. como as pessoas de baixo nasciam?
    se alguem de cima morria, a de baixo morria tb?
    se alguem de baixo ficava doente…?
    pq os de baixo nao falavam se no resto eram iguais os de cima?
    quem fabricou a estrutura subterranea pra abrigar os de baixo? isso ocorria no planeta Terra inteiro?
    como se ve, uma ideia engenhosa, um filme interessante, mas bastam 30 segundos de pensamento sobre a estrutura em que ele se alicerçou para ver o castelo de cartas ruir… o filme nao se sustenta… mesmo um filme de surrealismo ou puramente filosofico tem um minimo de estrutura logica coerente, ou seja, “aquele universo” tem que fazer sentido, senao cai tudo por terra e Nós caiu por terra e a terra ainda fica arrasada, nao sobra nada, e nao adianta querermos que o filme seja bom pela critica social, pq infelizmente o que ocorreu é que ele tentou uma critica social e encaixou o filme nela, e tudo falhou miseravelmente, ao contrario de Corra, onde ai sim tudo era solidamente criado e se mantem mesmo depois de assistir varias vezes, e a critica social esta ali 100% presente, mas do jeito certo

    1. esquece as respostas pra isso… nao existem… nada faz sentido a nao ser o conteudo racista… resumindo o filme é uma intrincada metafora pra criticar o racismo nos EUA… mas nitidamente passou do ponto, o Jordan Peele ta deslumbrado com ele mesmo, se acha o mais incrivel maravilhoso paladinho cinematografico, o unico que tem voz pelos oprimidos… tudo pq Corra! foi um excelente filme… mas depois disso, me digam algo do mesmo nivel que ele fez? nada… fora o estrago que ele causou em Alem da Imaginacao

  4. Existe uma grande diferença entre um bom filme de terror que exija raciocínio lógico dedutivo e um bom filme de terror amparado num misto de teorias filosóficas e místicas. Nós é o segundo caso. Num filme do primeiro caso, rapidamente passamos a gostar à medida que vamos interpretando o que se passa na tela, tentando dar um sentido e deduzir o que pode vir a ser o presente e futuro na trama. Nós exige mais que isso. Só depois que li mais sobre as fases alquimicas e nigredo, passei a compreender por completo o porquê de tudo. É o que posso dizer que entendi. Como se fosse um episódio longo, enganoso e cansativo de “além da imaginação ” ou Black mirror. Mas com alegorias de autocrítica social puramente americana. E olha que meu forte é mesmo filmes sobre realidades paralelas, dobras dimensionais e contextos de misticismo. Gostei e não gostei rsrs da trama, sim. Do desenrolar, não.

    1. Centoundici
      Bem vindo
      Parabéns pelo seu comentário, você buscou compreender o que filme propõe, principalmente da questão da “morte espiritual” . Independente se meu texto permitiu ou não tal análise.
      Obrigado

    2. bacana…mas o filme continua sendo ruim, mesmo com as explicacoes sobre a simbologia que ele tentou passar

    1. Irineu
      Bem vindo
      Evite criar muita expectativa sobre um filme. Isso pode atrapalhar a percepção sobre. Vai por mim
      De qualquer maneira assista rs
      Abraço

  5. nao da mais pra ir no cinema so assistir um filme divertido ou ficar tenso com um suspense tudo tem que ser analisado pq tem subtexto e metaforas tudo tem uma explicacao um motivo que significa uma critica social ou politica puxa so quero me sentar numa cadeira e ver um filme legal sem me preocupar com o que aquilo significa quem esta sendo criticado ou qual posicao da sociedade atual esta sendo criticada sera pedir muito

  6. cheguei nesse site faz uns meses e tenho aprendido bastante com as críticas, são muito técnicas, adoro elas, essa aqui tb está muito boa, gostaria de me aprofundar no tema das técnicas de cinema, que livros vc recomendaria ou então algum curso online bom, obrigado, parabens pelos seus textos

    1. Jean
      Bem vindo
      Obrigado pela visita e elogios. Isso é sinal que o trabalho esta sendo bem feito.
      Fico feliz que deseja se aprofundar na linguagem cinematográfica.
      Recomendo basicamente : Manual do Roteiro (Sid Field), A Linguagem secreta do Cinema (Jean-Claude Carrière), Estética do Cinema (Gérard Betton), A forma do filme (Eisenstein), Truffaut entrevista Hitchcock.

  7. Na minha concepção, “Nós” é construído com conceitos que não são óbvios, em razão disso, por diversas vezes, soa confuso.
    A relação com o fantástico permite que o diretor trabalhe com um roteiro que utiliza toda a evolução da trama com camadas carregadas de significados. Isso faz com que a obra apresente uma progressão mais complexa.
    Talvez por isso Peele tenha optado por uma abordagem mais explícita sobre o conflito principal.
    Diálogos expositivos contam um pouco demais, porém dentro de um filme com incontáveis subtextos, tal problema não causa incômodo nem chama a atenção para si.
    Você concorda com essa interpretação?

    1. SuperChampions
      Bem vindo
      Não somente concordo como adoraria ter escrito tal versão. Parabéns!
      Abraço

  8. mais um filme que vc precisa de manual pra entender, senao sai boiando da sessao, mas os criticos vao dizer que é excelente, é tipo vc pegar um livro escrito numa linguagem tao complexa que so com dicionario do lado vc pode ler, porem o livro é dirigido a todos os publicos e nao so aos catedraticos do portugues, tem alguma coisa errada ai

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