Mansions of Madness – Um Livro, Um Filme, Um Jogo…
A ideia que serve de mote para essa nova série de artigos, como o título já diz é relacionar três diferentes formas de entretenimento, que mesmo distintas têm muito em comum. Portanto, o artigo explora os traços comuns envolvendo um livro, filme e um jogo, e a forma como eles se relacionam uns com os outros.
Nesse momento vale lembrar, que qualquer lista é intrinsecamente arbitrária e depende muito da opinião do autor da lista. Considerando que pessoas diferentes têm pontos de vistas diferentes, é natural que qualquer um que leia o artigo tenha uma lista ligeiramente diferente. É natural que se pergunte “por que esse jogo ou esse tema e não aquele?”, ou se ache que outro livro/filme/jogo se encaixaria melhor na lista.
Isso dá espaço a uma das coisas muito interessantes de se escrever na Internet, que é a possibilidade de interação autor-leitor. Por isso a seção dos comentários está franqueada para que cada um deixe a sua opinião, ratificando as escolhas da lista, ou apresentando novas alternativas. Independente de se concordar ou discordar, todas as opiniões são muito bem vindas, com o único requisito de que se procure manter o respeito e o alto nível respeitoso e urbano dos comentários. As escolhas da lista serão justificadas, defendidas, e a divergência debatida, com quem se dispuser a isso, dentro do possível.
Seguindo nessa toada, há outro aspecto nessa série de artigos que vale a pena mencionar, em relação às de livros e filmes. Os board games citados certamente já são conhecidos de todos, mas as citações das outras duas “mídias” (literatura e áudio visual) nem tanto. Alguns livros e séries, bem como alguns livros e coleções são bem antigos ou bem obscuros.
Imagem Google: O Hobbit (livro), O Hobbit (filme) e Batalha dos Cinco Exércitos (board game) – apelou perdeu camarada!!!!!
Isso foi proposital, justamente para sugerir novas possibilidades culturais, e de entretenimento puro e descompromissado, fora do lugar comum, para quem não conheça tais obras. Por isso a divergência e a apresentação de outras obras são tão importantes. A intenção é que surjam mais e mais citações alternativas, especialmente livros, para quem está órfão do George Martin e do Patrick Rothfuss, até hoje.
Outra coisa a se notar, como foi sugerido anteriormente, é que tanto livros quanto filmes não são usados aqui no sentido estrito. Por isso, “livro” engloba qualquer obrar escrita seja ela um livro, conto, reportagem, HQ, artigo científico, tese acadêmica e por aí vai. Do mesmo modo, o termo “filme” se refere aos filmes, mas também às séries, aos documentários, vídeos do Youtube e assemelhados. Só é interessante atentar para o detalhe, de que as três mídias devem ser relacionadas, mas preferencialmente não diretamente.
Não tem muita graça citar “O Hobbit” (livro), “O Hobbit” (filme) e “A Batalha dos Cincos Exércitos” (jogo). Agora, citar: o Silmarillion (livro), O Senhor dos Anéis (filme) e Hobbit Tales from the Green Dragon Inn (jogo), já deixa a coisa mais interessante. Nesse segundo caso, mesmo que as obras citadas sejam muito próximas e com uma relação evidente, elas não têm uma ligação direta. O filme não é a versão cinematográfica do livro, nem o jogo sua versão board game, mesmo que todos compartilhem o mesmo autor e universo.
Dito isso tudo, e sem mais delongas segue abaixo o objeto da primeira lista de artigos: “Um Livro, Um Filme, Um Board Game”.
Call of Cthulhu (Weird Tales 1928) – Lovecraft Medo do Desconhecido – Mansions of Madness
Um Livro…
Publicado originalmente em 1928 na revista, o conto “O Chamado de Cthulhu”, de H.P. Lovecraft, é uma das pedras angulares da moderna literatura de horror. Esse conto, assim como os demais trabalhos do autor, foi tão inspirador e influente que criou o subgênero do horror cósmico.
Na literatura de horror convencional, o antagonista ou a fonte do medo, normalmente tem algumas características bem estabelecidas. A mais comum é a origem sobrenatural, em que se enfrenta um ser monstruoso (aberração natural ou criação humana). Também muito comum é o medo com origens no folclore ou no mundo espiritual (um demônio ou força maligna saída diretamente da religião). Além dessas fontes, também há o horror oriundo da própria humanidade deturpada, através de personagens psicóticos e ultraviolentos.
Já no “horror cósmico” o patamar é outro. Os vilões ou entidades são seres extraterrenos, com tamanho, poderes e vilania, muito além da capacidade de compreensão humana. A escala de magnitude desses seres é tão incomensurável que eles sequer dão importância a nós, reles seres humanos. Tais seres estão tão acima dos limites da mente humana, que a sua mera visão é capaz de mergulhar uma pessoa, na mais profunda loucura.
Além do horror cósmico, outros temas centrais na obre de Lovecraft são a lita entre insanidade e realidade, cultos ancestrais e o fanatismo, bem como o desconhecido e o inominável. De todas as entidades cósmicas criadas por Lovecraft, mesmo nem sendo a mais poderosa, nenhuma outra é tão emblemática, quanto Cthulhu.
O conto “O Chamado de Cthulhu” possui algumas sutilezas que passam despercebidas em uma primeira leitura. Essas sutilezas, a forma de abordar os temas e a própria qualidade do texto são elementos fundamentais, para torná-lo o marco literário que é atualmente.
Imagem Google: Revista Weird Tales de Fevereiro de 1928, primeira publicação de O Chamado de Cthulhu
A primeira sutileza que chama a atenção é que o conto possui um narrador oculto, que pode ser qualquer um, de qualquer lugar. Isso faz com que o leitor tenha uma identificação automática com a história, na medida em que ele mesmo poderia ser o narrador.
Mas não é apenas a utilização de um narrador que torna a história magistral. Outra sutileza é que o narrador não presenciou nenhum dos fatos descritos no conto. Tudo é conhecido de segunda mão, ou através da narrativa de outra pessoa, que testemunhou os fatos ocorridos. Isso é muito mais impactante, considerando que o conto explora justamente o medo do desconhecido, que se torna ainda mais assustador e desconhecido, porque o narrador também não presenciou os fatos. As imagens da cidade de Ryleh e de Cthulhu são apenas imaginadas, tanto pelos leitores, quanto pelo próprio narrador, baseadas no relato do marinheiro norueguês.
Também vale destacar a sutileza da falta de informações e de explicações, potencializando a aura de mistério e de horror da história. Tudo nela é oculto, e as poucas pessoas que sabem alguma coisa ou estão loucas demais para dizer algo coerente, ou se recusam a falar. O pouco que se sabe é que os antigos são entidades alienígenas, tanto em relação ao nosso planeta, quanto ao próprio universo ou dimensão.
Outro elemento que aumenta o horror e o medo é o fato da figura de Cthulhu ser quase onipresente. Seu culto proibido e profano, e seus praticantes estão em todas as partes do globo, seja na Louisiana, na China, na Escandinávia ou na Polinésia. Essa onipresença do “mal”, que está sempre à espreita, e prestes a despertar, também se verifica no Sauron de Tolkien, em “O Senhor dos Anéis”.
Imagem Google: H. P. Lovecraft
Aliado a essa onipresença, e quase onipotência, há a questão do fatalismo e inevitabilidade do destino, porque quando as estrelas se alinharem os Antigos despertarão. Quanto a isso não há muito que os reles mortais possam fazer a respeito. Mas aí entra outra sutileza, porque esse destino literalmente “escrito nas estrelas” não é tão inevitável quanto se é levado a crer pela narrativa. O próprio texto estabelece que a mesma força cósmica desconhecida que mantém os Antigos vivos, mas adormecidos, também os impede de despertarem por si mesmos.
Dessa maneira, a participação do homem se torna fundamental, no universo lovecraftiano, porque o despertar dos Antigos depende da execução dos rituais apropriados. Somente os homens podem realizar adequadamente tais rituais. Sem eles os Antigos deverão aguardar quase que por uma eternidade, até que as estrelas se alinhem novamente, e outra oportunidade surja. É no mínimo irônico que entidades colossais, de poderes incomensuráveis, ainda assim dependam da ação humana, pobres criaturas, para saírem de seu sono ancestral.
Esse é inclusive o mote por trás de diversos filmes, livros e jogos envolvendo o sobrenatural, especialmente aqueles baseados na obra de Lovecraft. Nessas obras sempre há um grupo de heróis ou anti-heróis, protagonistas das histórias, tentando impedir que os cultistas completem seus rituais sacrílegos, despertando os Antigos.
O estilo de escrita de Lovecraft também merece um destaque especial, principalmente pela forma como ele constrói a narrativa. O suspense é trabalhado com raro sucesso e maestria, não apenas em “O Chamado de Cthulhu”, mas na obra do autor como um todo. As poucas informações são dadas a conta-gotas, na medida em que a trama se desenrola.
Imagem Google: Cthulhu
Outro fator de destaque é que os textos são amplamente descritivos, nas cores e formas mais carregadas possíveis. Lovecraft parece, a todo o momento, tentar descrever o indescritível, nos mínimos e mais aterrorizantes detalhes, de modo a causar o máximo impacto.
Do mesmo modo, chama a atenção o estilo rebuscado a linguagem arcaica e o vocabulário sofisticado usados nos contos. Isso provavelmente é uma herança da criação aristocrática do jovem Lovecraft. Porém, isso também cai como uma luva no estilo do autor. Quando Lovecraft se expressa de maneira tão antiquada e um pouco inacessível ele consegue duas coisa importantes.
A primeira é que o leitor realmente precisa prestar atenção ao que está lendo, e se dedicar à leitura, aumentando muito a imersão na história. Se o leitor não fizer, ou não estiver disposto a fazer, isso, ele certamente não entenderá, nem conseguirá absorver plenamente toda riqueza do texto. Definitivamente, Lovecraft não é um autor para se ler descompromissadamente, como mero passatempo ou de forma leviana.
A segunda coisa é que Lovecraft consegue ao escrever de forma arcaica e com vocabulário rebuscado tem a ver com a noção temporal. Esse jeito de escrever parece ao leitor moderno muito antiquado, dando a forte impressão de que os textos são muito mais antigos do que são. Essa linguagem que parece tão remota, casa muito bem com o assunto dos textos de Lovecraft. Em outras palavras uma escrita antiquada tratando de seres ancestrais e de cultos antigos, oriundos do alvorecer da humanidade.
Imagem Google: Call of Cthulhu – um dos melhores RPGs de todos os tempos, que foi o primeiro contato de muita gente com Lovecraft
O interessante é que hoje “O Chamado de Cthulhu” é sinônimo de Lovecraft, mas na época do lançamento a história não sobressaiu nem um pouco. A própria obra do autor não sobressaía na época. O sucesso de Lovecraft foi póstumo, e, em vida, ele era apenas mais um entre tantos autores de terror em revistas populares do gênero. Basta dizer que “O Chamado de Cthulhu” quase não foi publicado por desinteresse das revistas da época. O editor da Weird Tales só aceitou publicá-lo porque Donald Wandrei, amigo de Lovecraft, lhe mentiu, dizendo que outra revista recorrente iria publicar o conto. Inicialmente apenas alguns outros escritores de horror e fantasia como Robert E. Howard (Conan), e um jovem August Derleth, reconheceram o grande valor da história.
Com o passar dos anos, em especial após a morte de Lovecraft em 1937, o autor foi ganhando cada vez mais adeptos e fãs. Isso garante a ele o epíteto, para lá de gasto, de “autor à frente de seu tempo”, e com toda a justiça. Certamente se tivesse vivido nos anos 40 ou 50 certamente Lovecraft seria ainda maior do que já é. Nesse período já não havia tanto preconceito, nem tanto estranhamento em relação ao gênero horror, como ocorria nos anos 1920 e 1930. O horror já não era apenas literatura barata, publicada em revistas baratas, para leitores baratos. Isso se deve especialmente ao cinema, que na sua ”época de ouro” produzia grades filmes de horror, tornando-se imediatamente sucessos de bilheteria, popularizando o gênero.
Assim sendo, não é sem razão que décadas após o lançamento de “O Chamado de Cthulhu” a obra de Lovecraft se tornou tão influente. Atualmente se vê essa influência na literatura, no cinema, nas séries, nas HQ, nos jogos, e até na música, especialmente o heavy metal.
Um filme…
Em se tratando dos board games de horror, absolutamente nenhum outro autor foi tão influente quanto H.P. Lovecraft. O camarada não tem apenas um jogo, mas toda uma linha de jogos referente ao universo que criou a Arkham Files. E fora os jogos dessa linha, existem ainda diversos outros board games que também exploram os Mitos de Cthulhu. Na literatura
Assim sendo, nada mais natural que o documentário Lovecraft: Medo do Desconhecido seja o filme escolhido para esse artigo. Esse documentário de 2008 é um verdadeiro mergulho na vida e obra de Lovecraft. Ele conta com depoimentos de especialistas e nomes de peso do cinema e literatura contando como Lovecraft os influenciou. São diretores do peso de como Guillermo Del Toro, John Carpenter, e escritores do nível de Neil Gaiman, entre muitos outros. Todos são unânimes em dizer que Lovecraft foi uma forte influência, e fonte de inspiração, em suas respectivas trajetórias.
Uma coisa interessante e muito válida sobre esse documentário é que ele não procura endeusar Lovecraft, por conta de sua importância. Muito pelo contrário, o documentário mostra o autor em todas as suas facetas, sua xenofobia, seu racismo, sua misantropia e demais idiossincrasias. Obviamente, Lovecraft não era um santo, e tinha defeitos (alguns muitos graves), como todo o ser humano. Sua sensação de estranheza em relação ao mundo, e sua solidão sem dúvida ajudou a moldar sua arte. Assim, é até natural que um autor de contos de horror, que desde cedo, sempre sentiu alienígena em relação ao mundo e a humanidade, criasse monstros cósmicos. Igualmente alienígenas.
É justamente esse foco na pessoa de Lovecraft que faz dessa obra o destaque desse artigo.
Imagem IMDB: Lovecraft: Medo do Desconhecido (2005)
Além de influenciar a literatura de horror, Lovecraft também influenciou e muito o cinema. Muitos filmes dos anos 60 e 70 adaptaram contos do autor, ou se inspiraram em sua obra. Nos anos 80, quando o “cinema gore” estava em alta (sangue tripas e ultraviolência explícita), surgiu primeiro o “Enigma do Outro Mundo” de John Carpenter. Esse não é uma adaptação da obra de Lovecraft, mas a influência é claríssima como já reconheceu o próprio Carpenter. Em seguida veio o filme “Reanimator” de 1985, esse sim uma adaptação direta de um conto de Lovecraft. Curiosamente, na ficha do filme IMDB ele consta como roteirista, apesar de falecido quase 30 anos antes.
Em 1986 um ano depois foi a vez de “Do Além”, também fortemente focado na obra de Lovecraft. E exatamente um ano depois (1987), “A Maldição” que é a adaptação do conto “A Cor Que Caiu do Espaço”. Além desses, existem literalmente centenas de trabalhos conectados diretamente a Lovecraft, e só no IMDB são quase 292 entradas diretas. Se forem incluídos os trabalhos fortemente baseado no universo lovecraftiano a lista fica muito maior. Nos anos 90, merece destaque o filme À Beira da Loucura de John Carpenter. Mesmo esse filme de Carpenter não sendo uma adaptação direta, só para da uma ideia da influência seu título original é “In The Mouth of Madness”, o mesmo de um dos contos mais famosos de Lovecraft. Da mesma época também há o filme Necronomicon, de 1993, uma coletânea de contos do autor.
O interessante é que o Livro dos Mortos ou Necronomicon, também é uma criação de Lovecraft, só que ela praticamente criou vida própria. Inúmeros filmes de horror giram em torno do livro, em especial a famosa série trash Evil Dead de Sam Raimi.
Imagem UniversoRPG.com: Necronomicon (imagem fictícia)
Na verdade, nunca houve um Necronomicon real, que é simplesmente uma invenção de Lovecraft, ou seja, um grimório com imagens perturbadoras dos Grandes Antigos, e instruções para os rituais de como trazê-los de volta. O Necronomicon aparece pela primeira vez em 1922 no conto “O Cão de Caça”, em diversos outros, com especial destaque para “Na Montanha da Loucura”.
Segundo Lovecraft a origem do Necronomicon remonta à cidade de Damasco em 730 d.C., e seu autor, um poeta árabe louco chamado Abdul Alhazred. Tudo absolutamente criação de Lovecraft, que para dar mais verossimilhança criou uma verdadeira saga para o livro. Assim, o Necronomicon foi banido pelo Papa Gregório IX em 1232, e suas cópias queimadas. As duas únicas cópias que sobreviveram estariam, uma no Museu Britânico, e a outra na Biblioteca de Paris. Apesar das inúmeras declarações de Lovecraft, explicando que o livro é inteiramente fictício, muitas pessoas acreditam seriamente que ele é real. Na internet é possível inclusive comprar uma cópia.
Talvez os fãs de séries estejam se perguntando a respeito da falta de uma menção a Lovecraft Country. Na verdade, apesar do nome, essa série não trata exatamente do universo lovecraftiano, pelo menos não da mesma forma que os outros filmes citados. Lovecraft Country utiliza o horror cósmico de Lovecraft, acima de tudo como uma metáfora para o racismo do sul dos EUA na década de 1930. Parece que o tema Lovecraft só entrou na série como uma forma de mostrar que o próprio homem pode ser tão cruel, e aterrorizante, quanto qualquer criação lovecraftiana.
Além disso, vale destacar que a série mesmo com uma abordagem interessante falhou miseravelmente em sua execução. Depois dos dois ou três primeiros episódios a série se perdeu completamente, apesar do seu início muito promissor.
Imagem IMDB: Lovecraft Country
A impressão é que os produtores ficaram divididos entre fazer uma série de horror ou uma série de conflitos sociais, no caso o racismo. Com isso eles acabaram não fazendo uma série boa, nem sobre um assunto (Lovecraft), e nem sobre o outro (racismo).
Outro gol contra da série é algo que deveria ser um de seus maiores atrativos. A obra de Lovecraft tem uma verdadeira legião de fãs, e assim, praticamente qualquer produto com o nome do autor tem grande probabilidade de sucesso. Os board games do universo lovecraftiano estão aí, para não deixar qualquer dúvida a respeito. Mas todo esse sucesso praticamente garantido e automático tem um alto preço. Da mesma forma que essa legião de fãs apoia todos os produtos Lovecraft, eles também são extremamente exigentes. Por isso, colocar a “marca Lovecraft” em um produto e entregar algo meia boca, pode acabar sendo pior do que não usar essa “marca”. Algo bem similar acontece com os fãs de Tolkien, que rejeitaram fortemente os equívocos e inconsistências da série os Anéis de Poder. Desse modo, a série Lovecraft Country de modo algum pode ser indicada como uma boa amostra do universo lovecraftiano.
Retornando ao documentário “Lovecraft: Medo do Desconhecido”, vale destacar outra obra interessantíssima, que o fenomenal Call of Cthulhu de 2005. Esse é um filme mudo de 47 minutos, rodado em preto e branco para captar a essência do cinema dos anos 20, em que se passam quase todas as histórias, inclusive o clássico “O Chamado de Cthulhu”. Esse filme está disponível, ao menos por enquanto em uma página do Facebook (legendas em inglês), e também dá para baixar via torrente. Ambos o filme e o documentário, valem muito a pena, para se conhecer melhor a vida e obra desse autor fenomenal, H. P. Lovecraft.
Um jogo…
Antes de falar do jogo selecionado é fundamental tratar da influência de Lovecraft também nos board games. Como dito antes, Lovecraft não inspirou apenas alguns jogos, mas todo um estilo de jogo, inclusive diretamente. A linha Arkham Files trata justamente desses jogos do universo lovecraftiano, e esses são apenas alguns (Arkham Horror, Elder Sign, Eldritch Horror, Hora Final, etc). Diversos outros jogos não fazem parte desse selo, mas tratam do universo lovecraftiano (Cthulhu Death May Die, Cthulhu Wars, Cthulhu Sete Selos, etc). Também não se pode deixar de citar Call of Cthulhu, um RPG revolucionário, por mostrar que o estilo podia ir muito além da fantasia medieval.
O universo lovecraftiano é tão popular, e rentável, que até os designers de franquias de jogos de sucesso rapidamente trataram de lançar suas versões. Com isso, existe o Reino de Cthulhu (Pandemic), Cthulhu Realms (Star Realms) Munchkin Cthulhu (Munchkin), Lovecraft Letter (Love Letter), entre outros.
Dito isso, escolher um jogo dentre tantos, para destacar, principalmente entre tanta coisa boa é realmente uma tarefa ingrata. No entanto há um jogo que realmente se destaca dentro do universo lovecraftiano. Para começar esse jogo foge um pouco do lugar comum. Não há dúvida de que dentro das inúmeras criações de Lovecraft, nenhuma é tão popular quanto Cthulhu. O problema é que o universo Lovecraftiano é muito maior, e mais abrangente, do que seu “Antigo”, mais famoso, por mais famoso que Cthulhu seja.
Imagem Ludopedia: Selo Arkham Files
Aqui cabe inclusive um parêntese explicando que Cthulhu não é nem de longe o ser mais poderoso do universo Lovecraft. Na verdade, com dito antes Cthulhu é apenas a criação mais famosa de Lovecraft e seu conto o de maior sucesso do autor.
Entretanto, mesmo imenso, Cthulhu tem um corpo físico e em Call of Cthulhu, foi atingido por um navio, e afundou no mar. Não fica claro se sua retirada se deu devido a algo mais, ou simplesmente porque os humanos e o barco eram insignificantes demais para Cthulhu. Porém, esse contato quer dizer que mesmo enorme e mesmo poderosíssimo, Cthulhu ainda está dentro de uma escala concebível pelos humanos. Ele é talvez o principal dentre os Grandes Antigos, que mesmo adorados como deuses, ainda não chegam nem perto dos Outer Gods, esses sim inconcebíveis para a mente humana, e dos quais Cthulhu é apenas o Sumo Sacerdote, como descrito em Call of Cthulhu.
Dentre essas entidades verdadeiramente cósmicas, os Outer Gods, a maior de todas é Azathoth o Deus Cego Idiota, que vive em sono eterno. Ao seu redor existe uma verdadeira corte de entidades menores, mas ainda assim outros Outer Gods de grandeza igualmente inimaginável. A única razão de ser dessas outras entidades incomensuráveis é produzir eternamente uma música cósmica, caótica e incompreensível, totalmente além da capacidade da imaginação humana. Dessa forma os outros Outer Gods embalam o sono de Azathoth, impedindo-o de acordar, o que faz todo o sentido. Só para se ter uma ideia da sua grandiosidade, o universo e a própria realidade em si, são apenas um sonho de Azathoth. Caso essa entidade eventualmente desperte, o universo deixará de existir como conhecemos, e tudo será Azathoth.
Imagem Google: Azathoth
Retornando aos jogos, o universo lovecraftiano vai muito além de Cthulhu. Portanto, nada mais justo que escolher um jogo que envolva a criação de Lovecraft com um todo e não apenas parte dela. Desse modo, o representante do universo lovecraftiano não poderia ser outro que não o Mansions of Madness, que dispensa maiores comentários.
O Mansions of Madness 2nd Edition é um jogo lançado em 2016, com design de Nikki Valens. O jogo tem a arte de Cristi Balanescu, Yoann Boissonnet, Anders Finér, entre outros. Esse é um jogo para 1 a 5 jogadores, com tempo médio de partida de 120 a 180 minutos. Seu peso é 2.67 e sua posição no ranking geral do BGG é 52 e no Ludopedia 28. O jogo foi finalista dos prêmios Golden Geek e Meeples’ Choice ambos em 2016.
Esse é um board game narrativo cooperativo, onde os jogadores compõem uma equipe de investigadores do paranormal que devem desvendar um mistério envolvendo forças sobrenaturais do universo lovecraftiano. Cada personagem terá pontos fortes e fracos que se complementam. Eles vão percorrer a “mansão” do título para coletar pistas, solucionar enigmas, bem como enfrentar seres de outro mundo e o cultistas que os invocaram.
Mansions of Madness é um jogo estilo Dungeon Crawler (exploração de masmorras) muito destacado, e dentro de uma categoria com diversos outros jogos “peso pesados”. Gloomhaven, Jornadas da Terra Média, Zombicide, Descent, Star Wars Imperial Assault, Sword & Sorcery, são todos dungeon crawlers de imenso sucesso. Porém, esses são todos jogos de fantasia medieval genérica. A exceção fica por conta do Star Wars Imperial Assault, que não é um jogo de fantasia medieval por razões óbvias. Mas isso foi apenas para aproveitar a franquia Star Wars, e no geral ele se aproxima muito dos demais jogos de fantasia medieval.
Imagem BGG: Gloomhaven
Já o Mansions of Madness se passa em uma mansão vitoriana, algo muito mais próxima da realidade atual, que algum reino de fantasia fictício. Isso além de envolver o universo lovecraftiano o que é uma baita vantagem. Além disso, o mecanismo de revelar os cômodos da mansão, conforme a exploração avança, dá um toque todo especial ao Mansions of Madness. Nunca se sabe o que vem a seguir, mantendo constantes a tensão e o mistério. Isso não ocorre com os outros dungeon crawlers citados anteriormente, cujo tabuleiro se vê completamente desde o início.
Ainda em relação a esse mecanismo de revelação sequenciada do tabuleiro, o Mansions of Madness bebeu muito da fonte do Betrayal at House on the Hill, outro dungeon crawler de horror, que usa o mesmo mecanismo. Isso porque o Betrayal at House on the Hill é de 2004, enquanto a primeira edição do Mansions of Madness é de 2011. Nesse sentido, a originalidade do Betrayal at House on the Hill faria dele um concorrente de peso, pelo menos em tese. Mas existem outros aspectos a se considerar além da originalidade. Para início de conversa o Betrayal at House on the Hill também é um board game de horror, mas de um horror genérico, enquanto o Mansions of Madness é 100% Lovecraft.
Além disso, o Betrayal at House on the Hill tem a vantagem de ser um jogo semi-cooperativo. Em dado momento, um dos jogadores trairá o grupo e passará a jogar contra os demais jogadores, exercendo o papel do monstro inimigo. Isso a princípio seria uma vantagem, por ser algo incomum e inovador nos jogos de tabuleiro. Normalmente os jogos mantém a mesma natureza o tempo todo (competitivo, semi-cooperativo ou cooperativo). Um jogo começar como totalmente cooperativo e no meio se tornar semi-cooperativo é muito raro.
Imagem Ludopedia: Mansions of Madness (2ª Edição)
Só que nesse caso específico, essa originalidade, que sobressai em outros cenários, aqui não é tão boa.
No Betrayal at House on the Hill o “inimigo”, mesmo que poderoso ainda é uma monstro à altura dos personagens humanos, ainda que difícil de vencer. Isso foge do universo lovecraftiano, porque nele é impossível esperar lutar contra o Cthulhu e esperar vencer. A própria visão do Cthulhu é capaz de mergulhar um ser humano em uma loucura irreversível. Mesmo que os personagens combatam os asseclas e cultistas dos Grandes Antigos, ou divindades menores, até por que esses são os únicos dentro das possibilidades humana de enfrentamento, em última análise o inimigo principal ainda continua sendo um dos Grandes Antigos. Esse não é o caso dos monstros inimigos no Betrayal at House on the Hill.
Conta também a favor do Mansions of Madness o fato de seus cenários serem mais bem escritos, tornando-o superior também nesse quesito. Isso para não falar que após algumas partidas o “suspense” do Betrayal at House on the Hill acaba prejudicado. Os jogadores já sabem de antemão, que em algum momento da partida alguém mudará de lado e passará a lutar contra o grupo. Eles só não sabem qual dos jogadores será esse traidor, e exatamente quando isso ocorrerá.
Imagem BGG: Betrayal at House on the Hill (2nd Edition)
Outro motivo de destaque do Mansions of Madness é o seu uso muito inteligente e eficaz da tecnologia. De alguns anos para cá, os board games, em especial os dungeons crawlers cada vez mais utilizam aplicativos como ferramentas de apoio. O problema disso é que em muitos casos o aplicativo acaba tomando o protagonismo do jogo. Em alguns casos isso chega ao ponto de parecer que as pessoas jogam um videogame, com o apoio de alguns componentes físicos. Isso não ocorre no Mansions of Madness cujo aplicativo funciona na medida exata de apoiar, sem sobrepujar, nem tirar o protagonismo do jogo físico.
E não é apenas isso. O Mansions of Madness possui um exército de fãs, muito participativos na Internet. Esses fãs produzem e divulgam tem uma profusão de aventuras próprias, muitas com bastante qualidade, através da plataforma Valkyrie. Isso garante uma rejogabilidade absurda do jogo, sem que se tenha de pagara nada por isso. Essa é outra senhora vantagem do Mansions of Madness, especialmente considerando o alto preço dos materiais extras e expansões dos board games em geral.
Conclusão
O conto “Call of Cthulhu” o documentário “Lovecraft: Medo do Desconhecido” e o board game “Mansions of Madness” são grandes expoentes do universo Lovecraftiano. Claro que cada um deles a seu modo, e evidentemente dento dos parâmetros das formas de entretenimento que eles representam, com suas vantagens e limitações.
O fato é que tanto o conto, quanto o documentário e o jogo cumprem de forma excelente o seu papel. Por isso, todos os três são muito indicados. Isso não apenas aos fãs da obra de Lovecraft, como também a qualquer um que queira conhecer melhor esse universo apaixonante, apesar de tão assustador.
Um forte abraço e boas jogatinas!
Iuri Buscácio
P.S. Quem porventura tiver interesse em textos no mesmo estilo pode encontrá-los acessando o canal iuribuscacio no Ludopedia ou a seção de Jogos de Tabuleiro no portal maxiverso.com.
https://ludopedia.com.br/canal/iuribuscacio
https://maxiverso.com.br/blog/category/nerdgeek/jogostabuleiro/
Iuri Buscácio
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