Nos últimos textos, falamos sobre a crise e censura dos quadrinhos (acesse o link), e de como a indústria dos quadrinhos estadunidenses se reinventou e ressurgiu com o gênero dos super-heróis (acesse o link), tudo isso entre as décadas de 1950 e 1960. No texto de hoje, nosso objetivo é falar brevemente sobre alguns exemplos dos movimentos de contracultura que resistiram e questionaram a censura, e inovaram os quadrinhos não só enquanto arte, mas também politicamente.

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EC Comics, anos 50

Durante a crise dos quadrinhos, as categorias que anteriormente levaram os quadrinhos à sua Era de Ouro, principalmente os super-heróis, deixaram de ser interessantes para o público, devido ao desgaste de sua fórmula narrativa, e isso abriu espaço no mercado para outros gêneros, como os quadrinhos de crime, terror e horror.

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No começo dos anos 50′, período notório pelo conservadorismo paranoico, uma das maiores preocupações da sociedade, era a delinquência juvenil, promovida por uma juventude do pós-guerra, embalada pelo som de uma novidade chamada Rock’n’Roll. A fim de encontrar culpados pelo desvio comportamental, não só o rock, mas os quadrinhos, tornaram-se alvo de críticas. As reclamações de pais, professores, clérigos, e todos aqueles que viam nos quadrinhos algo que deturparia a educação dos jovens e das crianças, foram embasadas por um psiquiatra, Dr. Fredric Wertham, em seu mais famoso livro, Sedução dos Inocentes, de 1954.

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Primeira edição da MAD

O debate assumiu tamanha proporção, que após calorosas discussões na Subcomissão de Delinquência Juvenil do Senado dos Estados Unidos, as principais empresas do meio criaram a Associação Americana de Revistas em Quadrinhos, responsável por criar o Código dos Quadrinhos, um órgão censor com o objetivo de garantir o conteúdo veiculado pelas HQs e com poder de apagar e alterar ilustrações, opinar sobre o enredo, e todo tipo de transgressão da liberdade criativa dos autores.

Nos primeiros anos da censura, o principal alvo do Comics Code Authority, órgão responsável pela censura, era a EC Comics, editora famosa pelos contos de horror e terror de títulos como Tales of Crypt. Em resposta a crise gerada pelos constantes ataques da censura contra os títulos da EC Comics, Bill Gaines, dono da EC, resolveu apostar suas fichas na revista MAD, título humorístico criado por Harvey Kurtzman, no ano de 1952. Para burlar a cesura, na edição 24 da MAD, o formato foi alterado para 21,5 X 28 cm, formato de revistas e não de quadrinhos, dessa forma o conteúdo não precisaria mais ser submetido ao Código dos Quadrinhos. Com “carta branca” dos editores para que a MAD satirizasse todas as outras revistas, quadrinhos e quaisquer ícones da cultura pop, a revista MAD se tornou um grande sucesso ao longo da década de 50, criando um legado no humor que influenciou muitas séries como os “Simpsons” e “Uma Família da Pesada” (Family Guy).

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No final dos anos 1960, uma confluência de diversos fatores resultou no surgimento de um novo movimento, os quadrinhos Underground, ou Comix. No documentário The Comic Book Confidential (1988), Robert Crumb, um dos artistas mais conhecidos do movimento, relata sua frustração após tentar entrar nas principais editoras enviando seus cartões com desenhos e ser recusado, pois segundo ele, naquele tempo os quadrinhos mainstream estavam muito fechados no que estavam fazendo e não havia espaço para novas propostas. Sem perspectiva de se inserir no principal mercado dos quadrinhos de Nova Iorque, Crumb se mudou para São Francisco, onde junto de outros artistas que viviam na região no período, em Haight-Ashbury, começaram a produzir seus próprios quadrinhos. O documentário traz cenas de artistas como Crumb, S. Clay Wilson, Vitor Moscoso, Spain, Gilbert Shelton, entre outros que se juntavam para “confraternizar” e produzir tirinhas e quadrinhos em festas que podiam durar dias.

A primeira publicação independente solo de Robert Crumb, foi a Zap Comix, que em sua primeira edição, em 1968, conseguiu bastante sucesso, incentivando outros artistas a publicarem seus trabalhos de forma independente nas feiras e encontros de quadrinistas.

O movimento underground não foi algo homogêneo, ou seja, os artistas eram muito distintos entre si. Podemos dizer que em geral o intuito era produzir quadrinhos com plena liberdade criativa e contestar as bases morais da sociedade. Alguns artistas, como o caso de Crumb, tinham o objetivo de quebrar os tabus e chocar fazendo piadas que incomodassem o maior número de pessoas possível, enquanto outros artistas se engajavam nos movimentos que criticavam o militarismo e a intervenção estadunidense em outros países, como no Vietnã, e quadrinhos que questionavam a luta de classes, como o caso do quadrinho Trashman, criado pelo Spain em 1968, que é um guerrilheiro das classes trabalhadoras situado num futuro onde a polícia fascista controla a sociedade com “punhos de ferro”.

It_Aint_Me_Babe_comic_first_printing-300x300 Contracultura nos QuadrinhosOutro movimento importante que surgiu nesse período nos quadrinhos, foi a contestação das mulheres que não possuíam espaço na indústria dos quadrinhos, que era dominada pelos homens, e que além disso produziam quadrinhos voltados às mulheres com um conteúdo extremamente ideologizador onde os autores projetavam seus ideais do papel das mulheres na sociedade. Um dos principais nomes do período a contestar a visão dos homens em relação às mulheres nos quadrinhos, é Trina Robbins, artista e pesquisadora das mulheres nos quadrinhos que fez parte da idealização e produção da primeira revista em quadrinhos feita somente por mulheres, a “It ain’t me, babe”, em 1970, que questionou a representatividade das personagens femininas de quadrinhos famosos. Robbins participou também da coletânea Wimmen’s Comix, em 1972, além de seus trabalhos solos, como Girls Fight, e trabalhos em editoras como Marvel e DC, como Misty, na Marvel, e ilustrações da Mulher Maravilha, para a DC. Para saber mais sobre o trabalho e a importância de Trina Robbins para as HQs, leiam a matéria e entrevista com a artista, realizada em 2015 pela pesquisadora Dani Marino, quando Trina Robbins esteve no Brasil para a 3ª Jornada Internacional dos Quadrinhos na ECA-USP, no link.

raw4-300x300 Contracultura nos QuadrinhosA contracultura nos quadrinhos foi um movimento fundamental para o empoderamento dos jovens, negros, latinos, mulheres e todos que não possuíam espaço e oportunidades na indústria dos quadrinhos. A liberdade criativa propiciada pela marginalidade do movimento garantiu experimentações visuais e narrativas únicas e inovadoras, além de fazer do quadrinho uma ferramenta de união, de troca de ideias, sentimentos, informações, e etc. Os quadrinhos underground influenciaram diversos artistas e movimentos, como a revista Raw (1980-1986), idealizada por Françoise Mouly e Art Spiegelman, a revista se tornou um espaço de experimentações estéticas para diversos artistas, como Sue Coe, Lynda Barry, Chales Burns, Bill Griffith, e uma longa lista de artistas que contribuíram na revista.

Além dos comix underground, a contracultura se expressou também nos quadrinhos mainstream. No documentário, Secret Origins: Story of DC Comics, Len Wein define a nova geração de artistas da DC dos anos 1970′, como “(…) hippies.. pessoas cujos cabelos eram mais compridos que suas carreiras”, e na época era justamente de pessoas assim que a DC estava precisando. Com a ascensão da Era Marvel, que citamos no artigo passado, a DC precisava se reformular e criar histórias que os jovens se identificassem mais. Com essas ideias em mente, Julius Schwartz deu “carta branca” para que o ilustrador Neal Adams e o roteirista Dennis O’Neil utilizassem os super-heróis como uma plataforma para se expressarem artisticamente e politicamente, então Adams e O’Neil lançaram a parceria entre o Lanterna Verde e o Arqueiro Verde, em 1970.

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Lanterna Verde e Arqueiro Verde, de Neal Adams e Dennis O’Neil

Os autores utilizaram o Lanterna Verde, Hal Jordan, para representar o “policial” da galáxia, uma autoridade responsável por manter a ordem em seu setor do espaço, e em contrapartida o Arqueiro Verde representando o justiceiro dos menos favorecidos, o rebelde que luta contra o sistema, dessa maneira a temática central das histórias eram os conflitos e tensões entre os dois heróis. Adams e O’Neil aproveitaram o quadrinho para debaterem diversas questões que ebuliam nas ruas. No documentário citado da DC, Neal Adams frisa, “lembrem-se dos anos 60′, grandes mudanças na América”, e essas grandes mudanças estavam em suas histórias. Os quadrinhos abordaram luta de classes, racismo, corrupção, pobreza extrema, drogas, entre outros temas considerados tabus e veementemente condenados pela censura.

No primeiro quadrinho dessa parceria, o Lanterna Verde tenta impedir um jovem que havia empurrado um homem de terno e gravata, quando o herói prende o jovem, o povo se revolta e atira pedras no Lanterna. O Arqueiro que acompanhou tudo à distância, explica ao desorientado paladino da justiça os motivos da revolta do povo contra a atitude de prender o jovem. O Arqueiro Verde conta que o sujeito que o Lanterna havia prendido era a única fonte de sustento de sua avó idosa, além do mais, o homem “engravatado” se tratava do proprietário do cortiço que estava despejando seus moradores para construir um supermercado. Em meio à confusão, um senhor de idade negro diz ao Lanterna Verde que já o viu realizar inúmeras proezas pelo universo para povos de peles roxas, mas o indaga perguntando o que ele já havia feito pelo povo de pele negra.Green_Lantern_Civil_Rights_01-300x300 Contracultura nos Quadrinhos

O constrangimento que o Lanterna Verde sentiu expressava o constrangimento de toda a sociedade estadunidense que por décadas guerreou mundo à fora dizendo levar a democracia e a liberdade para onde a tirania reinava, enquanto, em seu próprio solo, seu próprio povo era segregado por uma parcela de sua sociedade e seus cidadãos não possuíam igualdade de direitos e oportunidades. Foi nesta mesma parceria entre O’Neil e Adams que surgiu o personagem John Stewart, o Lanterna Verde negro que não se esconde atrás de máscaras.

Green-Lantern-Green-Arrow-Social-Issues-300x300 Contracultura nos QuadrinhosNo epílogo da segunda história dos heróis, Hal Jordan se redime por sua insubordinação com os Guardiões do Universo, seres que lideram e comandam a Tropa dos Lanternas Verdes. Interrompendo o diálogo entre os seres celestiais e o “paladino esmeralda”, o Arqueiro Verde ridiculariza Jordan por se rebaixar e curvar diante das vontades de seus mestres. Não contente em apenas provocar o Lanterna Verde, o Arqueiro questiona os Guardiões e os acusa de petulância e ignorância, pois não conheciam as vicissitudes da mortalidade e de uma vida humilde para quererem julgar os destinos de todo o universo. Oliver Queen, o Arqueiro, exclama que o Lanterna deveria esquecer os problemas de outros mundos e olhar para os problemas dos EUA. O Arqueiro continua, dizendo que a América era uma terra boa, fértil, porém extremamente doente. Oliver cita os principais problemas sociais do período, e finaliza citando a morte de um bom homem negro nas ruas de Memphis, e que havia algo terrivelmente errado no país. Nesse momento os autores fazem uma referência direta ao assassinato de Martin Luther King, uma das figuras mais importantes da luta dos negros pela igualdade de direitos civis nos EUA, em 1968.

Sem-título-300x300 Contracultura nos QuadrinhosOutro assunto polêmico que foi abordado nas aventuras do Lanterna e do Arqueiro Verde foi a questão das drogas. Os autores criaram uma história onde Speedy, o pupilo do Arqueiro Verde, se vicia em heroína. O tema e o roteiro da história eram “pesados”, ou seja, infringiam todas as “regras” do que podia ou não falar em uma história de heróis, e ainda por cima, isso tudo era exposto na capa que traz no primeiro plano a figura do jovem ajudante do Arqueiro com todos os aparatos para injetar heroína, enquanto no plano de fundo o Arqueiro Verde flagra chocado a cena, e o Lanterna questiona o Arqueiro como ele poderia explicar isso, uma vez que ele sempre tinha respostas para tudo. Com mensagens na capa dizendo que a DC estaria naquela edição tratando de um dos maiores males que atingiam a juventude e que exporiam as verdades chocantes das drogas, a DC Comics conseguiu aprovação do Código dos Quadrinhos para lançar essa que se tornou uma das edições mais icônicas da história das histórias em quadrinhos de super-heróis.

Sejam nos embates de valores entre os super-heróis mainstream, ou na liberdade criativa marginal dos comix underground, os movimentos da juventude dos anos 1960′ e 1070′ se expressaram nas HQs e deixaram uma marca na história das histórias em quadrinhos. A contracultura influenciou diversos artistas a explorar a nona arte e suas possibilidades estéticas e linguísticas, além de seu potencial enquanto uma mídia acessível que permite a expressão do indivíduo ao mesmo tempo que é um meio coletivo, onde a comunicação pode unir grupos de pessoas em torno de um objetivo, como, por exemplo, contestar os rumos da sociedade!

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Homenagem aos 75 anos de histórias do Arqueiro Verde!
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Raul Cassoni

Professor, historiador e músico. Um hibrido de boêmio com nerd, caso a vida fosse um enorme RPG. Discípulo de Mestre Splinter, Mestre Kame, Senhor Miyagi, Tio Ben, Prof. Xavier, entre outros que me guiaram em meu juramento de pesquisar a Nona Arte "nos dias mais claros e nas noites mais escuras", sempre usando meus "grandes poderes", e conhecimento, com "grande responsabilidade".

5 thoughts on “Contracultura nos Quadrinhos

  1. a Contracultura foi mais um movimento bem intencionado que depois o homem vai la e corrompeu. O que era pra se libertar de amarras e exageros virou o oposto, uma zona, uma ode à p*taria, porcarias e afins, liber(tinagem) sexual, drogas e etc… esse lado ruim da contravultura acabou apagando o lado bom que foi a liberdade artistica obtida na epoca

  2. Fui em varios sites na internet para pesquisar sobre isso, li varios sites e nenhum
    se compara a esse aqui, seu Artigo e exelente, muito bem feito e explicativo, adorei.
    obrigado pelas informaçoes.

    1. Oi Marcos, acredito que sim. A contracultura se expressou de formas distintas em linguagens artísticas distintas, mas mesmo com suas especificidades, podemos notar características em comum, como o questionamento dos padrões da cultura hegemônica, dos esteriótipos sociais, das figuras de autoridade, do papel das mulheres na sociedade, da liberdade sexual, e etc.. É possível encontrar essas questões em diversas músicas, danças, pinturas, livros, e inclusive quadrinhos do período ^^

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