Análise: Um Dia de Fúria (Falling Down)
Direção: Joel Schumacher
Elenco: Michael Douglas, Robert Duvall, Barbara Hershey, Rachel Ticotin, Michael Paul Chan, Lois Smith, Tuesday Weld e Frederic Forrest
Fazendo uma pequena análise, algo de positivo que o cinema pode trazer é o fato de uma obra se tornar um registro de uma época; e ainda mais importante é notar como as discussões acerca do filme se tornam contemporâneas ao revisitá-lo. Em contrapartida, muitos filmes – e diretores – ficam marcados injustamente por algum elemento pejorativo sem que o grande público reconheça a verdadeira face do artista de maneira exponencial e da obra em si.
Falo isso, primeiramente, pois Joel Schumacher (falecido em 2020) foi um diretor subestimado nos últimos anos, devido (quase que exclusivamente) à desastrosa decisão de colorir Gotham City no malfadado Batman Eternamente (1995) e na tragédia que se tornou Batman & Robin (1997); culminando em desculpas aos fãs do personagem e ao fato de sua carreira ter sido “jogada no lixo”- como o próprio já disse em entrevistas. O diretor de Garotos Perdidos (1987), O Cliente (1994), Tempo de Matar (1996), 8 mm (1999), Por um fio (2002) e outros, teve muito trabalho para recuperar sua carreira mesmo tendo dirigido um dos mais emblemáticos filmes dos anos 90, Um dia de Fúria (1993), estrelado por Michael Douglas e Robert Duvall.
Mais atual do que nunca
Quanto à imagem que o filme traz, ao revê-lo, é o fato de soar cada vez mais atual por apresentar uma análise comum diante de um aspecto peculiar de uma sociedade com violenta: o dito “cidadão de bem”, que é uma fachada para a pessoa expor sua raiva, preconceito, frustração ou psicopatia (elementos bem inerentes ao momento real em que vivemos). O diretor vai além e procura apresentar, mesmo que intrinsicamente, o que pode levar ao surgimento dessa “espécie”; entretanto, nem tudo é esse preto no branco. Assim, o filme se torna ainda mais expressivo ao expor um complexo sentimento da sociedade e seus diversos indivíduos (para o bem ou para o mal).
As metáforas narrativas e visuais
Com a narrativa se passando durante o período de um dia, os elogios para Schumacher já são merecidos logo na abertura. Ao começar com um plano fechado no protagonista e posteriormente percorrendo a câmera entre os carros parados em um pesado engarrafamento, a direção traz na abertura seu resumo social dos Estados Unidos. Elementos engrandecidos pela fotografia que exalta brilhantemente a atmosfera sufocante em suas palhetas com as cores quentes de um inferno social. Tal simbolismo é reforçado, claro, pela bandeira americana, mas principalmente pelo conjunto que compõe aquele cenário; seja através de um simples bicho de pelúcia com face raivosa colada no vidro de um carro (contrariando sua natureza pacífica), seja um executivo esbravejando em seu automóvel de luxo com acesso à celular, seja um plano de uma mulher se maquiando como um templo de luxúria ou seja com estudantes tediosos fazendo algazarra no ônibus escolar (como se vissem o próprio futuro comprometido diante daquele ambiente).
Agora imagine tudo isso misturado numa sociedade que prega o capitalismo sem controle e ao mesmo tempo fundamentalista? Portanto, os adesivos dos carros pregando “liberdade financeira” e “Ele morreu por nós” são pitadas para uma perigosa sopa de ingredientes, que mostra um sistema cruel que o filme faz questão de destacar, por exemplo, através de um homem negro protestando diante de um banco por não ser “economicamente viável” para a instituição financeira.
O protagonista
As motivações do personagem de Michael Douglas (nos créditos chamado apenas como D-Fens, em uma alusão clara a uma lógica governamental) vem principalmente de como o bom roteiro de Ebbe Roe Smith trabalha tais gatilhos como ponto forte da tal identificação com o protagonista; lembrando que identificação para com um personagem passa longe de concordarmos com suas ações, mas sim compreende o fato de entendermos suas motivações e também, às vezes, nos vermos ali representados. Dito isso, Michael Douglas tem uma das suas melhores atuações ao trazer momentos de empatia por se indignar furiosamente com as falhas da sociedade e ao mesmo tempo apresentar-se contraditoriamente amigável devido ao desejo de redenção junto à esposa e filha; repare, por exemplo, como no momento que mantém uma família como reféns (repetindo, reféns!) ele olha para a criança e pais como um modelo de idealização que ele próprio jamais terá – e talvez nem admita isso devido ao medo causado à esposa.
Soando indiferente com o próximo (como visto na cena do tiroteio, quando ele caminha insensivelmente entre os feridos), D-Fens (leia-se governo) vê o imigrante como inimigo; ok, alguns irão dizer que esses mesmos imigrantes tentaram assaltá-lo e sua resposta – como justiceiro – é “justificável”. Mas será que essas mesmas pessoas concordarão que o mesmo personagem destrua uma loja de outro imigrante e ainda o rebaixe dizendo ser uma escória do mundo ajudado pelos EUA? Inclusive, é interessante que o protagonista, ao ser questionado sobre o que seria essa ajuda, ele simplesmente não sabe dizer; seria como se questionássemos atualmente alguém (um negacionista, por exemplo) que não possui provas sobre seus argumentos – normalmente tendo como fonte as fake news.
A violência que “condenamos, mas apoiamos”
Ou seja, é bem vindo que o filme manipule tais questões ao trazer o personagem como alguém aparentemente inconformado, mas ao mesmo tempo jogando certo fascismo na cara de todos e o público concordando com isso; muitas vezes sem darem conta, nesse espelho em que o filme se torna, em algo parecido com o que Michael Haneke fez em Violência Gratuita. Claro que nos revoltamos com um fila de um banco com caixas vazios e pessoas desempregadas, obras públicas que nunca acabam, preços abusivos e espaços públicos mal aproveitados; todavia, há uma diferença enorme entre você se irritar com isso e você pegar um lança míssil e destruir tudo o que encontrar pela frente.
Mas antes que possa ser acusado de concordar minimamente com as ações do personagem principal, é importante citar que D-Fens é o típico indivíduo que permeia a sociedade ocidental: homem branco, pai de família violento, racista e que usa “meios patrióticos” para justificar sua violência ao mesmo tempo em que culpa o sistema com teorias conspiratórias sobre… o comunismo – não sou eu que estou inventando, está no filme! Paralelos com nossa sociedade atual não são coincidências. Uma sociedade que exalta duelos e violência através e um inimigo invisível com base em teorias absurdas e sem se dar conta da sua própria negação patológica (não duvido absolutamente nada que aquele personagem, hoje, apoiasse o grupo que invadiu o capitólio americano defendendo as ideias de Trump, por exemplo).
O antagonista
À contrapartida, mas servindo quase como outro lado da mesma face, Robert Duvall compõe seu Detetive Prendergast de maneira melancolicamente doce entre um policial honesto prestes a se aposentar com o peso de não ser mais útil, mas cuja vida jamais trouxe algum tipo recompensa pelo seu esforço ou dor. Se D-Fens jamais consegue controlar seus impulsos sociopatas, Prendergast traz certa aura noir por servir como um para-raios ao seu redor e ponto de equilíbrio fundamental na narrativa; principalmente pela sua perda no passado culminado na saúde mental debilitada da mulher (vivida pela veterana Tuesday West).
Os dois pontos-chave
Portanto, e retornando à ideia do primeiro parágrafo, são duas sequências que marcam o filme de maneira quase singular diante do imaginário do público e denotam a psicopatia do protagonista de maneira óbvia. A primeira, claro, é a que se passa em uma lanchonete, cuja refeição negada devido ao horário, se torna estopim para a ameaça a outros clientes. E a segunda se passa em uma loja de armas (mais explícito, impossível) em que o proprietário (interpretado por Frederic Forrest) é um nazifascista que acaba sentindo afinidade pelo protagonista; mas claro que inicialmente esse reconhecimento é negado, e há um estado de não aceitação em reconhecer sua maneira de agir e a personalidade que tende sempre em assumir. Tanto que tal cena é um batismo para o personagem abandonar quaisquer resquícios de civilidade, de forma irreversível, para seguir na sua “caçada” (não sendo à toa que é o ultimo momento em que visualizamos o personagem vestido de camisa e gravata para assumir um uniforme militar e completar sua transição).
Conclusão
Finalizando de maneira mais complexa que possa parecer, com pitadas de faroeste, onde a fotografia cria um ambiente de contraste com a sequência inicial (sai o ambiente infernal e sufocante e entra o mar com “redenção”), D-Fens não é apenas uma personificação de um sentimento perigoso (como disse anteriormente, jogado na face do público, canalizado através dos personagens do cotidiano), mas também simboliza um estado político e social. Até porque ao vê-lo dizer “Eu tenho muitas armas” ou “Fiz tudo que eles mandaram”, nos damos conta da onipresença da ideologia que descarta indivíduos como ele para, no dia seguinte, “usar” outros parecidos e continuar sua “cruzada”.
O mais grave de tudo é que em 2021 esses indivíduos estão mais numerosos e confiantes que nunca!
Rodrigo Rodrigues
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Excelente crítica, encontrei o site buscando uma critica bem estruturada desse filme, e encontrei. Acho um filme muito atual mesmo sendo + de 30 anos atrás, e demonstra como esses cidadões são criados na sociedade, ao mesmo tempo que todo mundo é bem caricato e ele é como um monstro a solta na cidade.
Um cara desses la no Planalto ia fazer um bem pra humanidade que mal da pra descrever. Mas ele podia ter ido em 2022 tb hahaha
vontade de surtar la em Brasilia rs…
Estamos vivendo isso aí hj em dia no Brasil. Bolsonaristas e petistas já estão começando a se matar e vai piorar na época da eleição.
ja imaginou se todo mundo que estiver frustrado com a vida resolver metralhar as pessoas???
Nao entendo pq esses sujeitos que fazem atentados descontam a raiva nos inocentes e não nos politicos, eu abriria fogo numa camara municipal ao inves de na rua ou em um parque
queria eu um dia fazer isso que ele fez, mas ao invés de descontar em inocentes, eu miraria nos militantes petistas e bolsonaristas, que transformaram o país no que ele é hj
cada vez mais a gente se identifica com esse personagem hahahahahaha
Bem vinda Rafaela
Sim, tem muitos. Até mais que pensávamos!
Abraço
Apesar do público de identificar muito mais com “D-FENS” do que com Prendergast, o policial é claramente o protagonista. Não apenas por que o policial é moralmente justificável, bom, mas principalmente por que é o único personagem que passa por uma real transformação ao longo do filme. A passividade de Prendergast é um problema a ser superado, e seu confronto a um dia da aposentadoria com um angry white male em Um dia de fúria faz com que o policial tenha que rever seus conceitos, em especial no relacionamento com sua esposa.
E é aí que o filme revela seu lado mais perigoso. Se o público não consegue justificar o extremismo de “D-FENS”, ele comemora quando Prendergast “se liberta” agindo também como um angry white male. Se há uma mensagem de que o fim não justificam os meios furiosos, há também uma mensagem que a fúria é legítima, necessária e benéfica. É uma dubiedade moral similar ao que se pode ver nas reações ao excelente Tropa de Elite, onde parte do público vê o filme como crítica ao excesso policial, e parte como retrato de heroísmo policial. As vezes a linha entre denúncia e glorificação se torna muito tênue.
Qd uma análise angloba outros fatores alem dos cinematograficos, me ganha facinho. Parabens!
gosto desse filme
mais uma boa analise de vcs parabens maxiverso adoro esses artigos que vcs dissecam um filme em vários aspectos
Thais
Bem vinda
Obrigado pelo elogio ao nosso trabalho. Isso é recompensador!
Abraço
Joel Schumacher é bom diretor, grande cineasta, que se perdeu com os blockbusters do homem morcego, o que é ironico, pois mesmo os filmes do Batman sendo ridiculos, foram sucessos de bilheteria
Shadow
bem vinda
Realmente, prova maior que bilheteria alta não é sinônimo de qualidade.
Uma pena que ele tenha se afundado nesses filmes.
Obrigado pelo comentário e por ter lido o texto.
Abraço
Eu jamais enquadraria ele como “grande cineasta”… pelos seus melhores filmes, dentre os quais esse Dia de Fúria, se vê que ele foi bom/médio. Mas nunca chegou na prateleira de cima dos grandes cineastas, na minha opinião, e respeito quem discorda. Ele foi bom/médio e fez alguns filmes bons/medianos. Dia de Fúria é um dos bons, mas não são muitos. Nenhum filme que ele fez pode ser classificado como excelente, maravilhoso, etc.
de fato, esse filme e mais atual do que nunca… e engraçado como enquadra o estereotipo do “cidadao de bem” perfeitamente
Jamiroquai
Bem vindo
A arte “imitando” a vida. Atual sempre.
Obrigado pelo comentário
Abraço
imagina liberar o porte de arma no Brasil… cada discussao de transito vai virar um tiroteio
Lourdes
Bem vinda
Sem dúvida. Tem gente que apoia justamente por isso, infelizmente.
Abraço e obrigado pelo comentário.
Com certeza estes tipos igual ao personagem Michael Douglas estão cada vez mais comuns na América, já teve três tiroteios de inocentes este ano.