Na Mesa: jogos de tabuleiro (board games) ancestrais

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Jogo Real de Ur

Os jogos, tanto aqueles de tabuleiro quanto aqueles de qualquer outra natureza, fazem parte da história humana praticamente desde o alvorecer da civilização. E isso se eles não forem ainda mais antigos.

Esse texto abrange os jogos que tiveram origem na antiguidade, e que por isso estão datados até o final do século V, quando se iniciou a Idade Média.

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Além disso, é preciso esclarecer dois aspectos, que nem sempre são tão evidentes quando se tratam de jogos. O primeiro é que as regras são um componente indissociável dos jogos, tanto quanto seus outros elementos físicos. Um tabuleiro de xadrez com as peças, mas sem a explicação das regras não adiantaria absolutamente nada, para uma pessoa que nunca ouviu falar do jogo. O segundo aspecto, ao qual nem sempre se dá conta, é o quanto a palavra escrita, difundida em larga escala é recente na história da civilização.

 

Imprensa e board games: Tudo a ver

A palavra manuscrita é muito antiga, mas somente após a invenção da prensa móvel é que os documentos começaram a circular em maior quantidade, e se tornaram mais acessíveis.

Por volta de 1040 d.C., o artesão chinês Bi Cheng inventou a primeira prensa com tipos móveis. Somente em 1493, quase 450 anos depois, Gutenberg criou essa mesma invenção na Alemanha. Assim sendo, mesmo a invenção chinesa sendo mais antiga, em quase meio século, normalmente a invenção da imprensa é atribuída apenas a Gutenberg, obviamente de um ponto de vista ocidental (e eurocêntrico).

Isso ocorre, em primeiro lugar, porque as nações ocidentais partem de um ponto de vista ocidental, por razões óbvias. Em segundo lugar, porque a prensa móvel de Gutenberg era absurdamente mais simples de manusear e mais prática, por estar baseada em pouco mais de vinte caracteres. Isso facilitava, sobremaneira, a produção de textos no ocidente. Por outro lado, a invenção de Bi Cheng utilizava em média algo em torno de 3.000 caracteres diferentes. Isso tornava a prensa chinesa muito menos prática e a produção de textos muito mais complicada.

Essa total disparidade entre a quantidade de caracteres em chinês e em alemão, ou nos idiomas latinos, demonstra claramente a enorme diferença no grau de dificuldade, para se produzir textos em larga escala, de um cenário para o outro. Ainda é preciso levar em conta que, mesmo a imprensa sendo difundida no ocidente no final do século XV, ainda demorou mais alguns séculos até que essa invenção se aplicasse a documentos tão prosaicos como regras de jogos de tabuleiro. Inicialmente, apenas os livros e documentos mais importantes eram publicados.

As variantes decorrentes da transmissão oral

Desde o início da civilização, praticamente todos os aspectos mundanos da vida cotidiana, o que inclui os jogos de tabuleiro, eram transmitidos pela tradição oral. Isso fez com que muitos jogos se perdessem com o passar das eras, e que, apenas pouquíssimos deles chegassem até os dias atuais, de forma mais ou menos intacta.

Outro fator a se considerar é que a transmissão oral das regras deu origem a uma série de variantes, em torno de um mesmo jogo. Isso ocorria da seguinte forma: um mercador viajava de navio até um porto distante, e levava consigo um jogo de tabuleiro. Ao chegar ao seu destino, ele ensinava esse jogo a um mercador local e deixava suas peças e o tabuleiro, como um presente. Esse jogo era passado para o filho do mercador local, que por sua vez também o passava para seu próprio filho e assim por diante. Algumas poucas gerações depois, ninguém mais sabia com certeza, de onde aquele jogo havia surgido, e nem quais eram as suas regras corretas. Isso levava a uma adaptação e depois a outra, e assim sucessivamente.

Apesar disso, nem todos os jogos ancestrais se perderam ao longo dos séculos e alguns deles conseguiram passar no teste do tempo. Isso aconteceu especialmente com os jogos favoritos da alta sociedade e da realeza. Na Antiguidade, só os mais abastados tinham tempo disponível para jogar, e podiam se “dar ao luxo” de possuir as peças dos jogos.

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Imagem da tumba da Rainha Nefertari retratando o Senet

Desse modo, era muito comum que os jogos preferidos das classes dominantes fossem retratados em pedra (alto relevo), inclusive com as suas regras, como é o caso do Senet. Outra possibilidade de perpetuação de um jogo ocorria quando ele era tão popular, e acessível, que se tornava praticamente onipresente, na vida dos diversos segmentos daquela sociedade, com foi o caso do Mancala.

Assim sendo, existem alguns jogos de tabuleiro ancestrais mais famosos, e que são sempre citados quando se trata desse assunto. São jogos como o Mancala, Senet, Jogo Real de Ur, Cães e Chacais, e os mais modernos como Xadrez, GO, Damas e Gamão. Como existem diversos livros e documentos a respeito desses jogos, inclusive disponíveis na Internet, nesse texto serão tratados jogos ancestrais menos conhecidos, organizados com base nos registros mais antigos conhecidos.

 

Mehen
entre 3.100 e 2.300 a.C.

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Imagem: The Fitizwilliam Museum – University of Cambridge

O Mehen ou Mehenet é quase tão antigo quanto os outros jogos ancestrais famosos, originários do Egito. Os estudos apontam que ele foi jogado entre 3.100 e 2.300 a.C., quando aos poucos foi perdendo popularidade e sendo substituído por outros jogos. Ele não é tão conhecido quanto o Jogo Real de Ur e o Senet, certamente devido a essa perda de popularidade, em um período tão antigo. Provavelmente esse foi o motivo para suas regras não terem chegado até os dias atuais.

Uma coisa interessante é que o termo “mehen” pode se referir tanto ao jogo, cujo tabuleiro tem a forma de uma serpente enrolada ao redor de si mesma, quanto a uma divindade, do estilo “deus-serpente”. Dessa maneira, não é possível precisar se foi o jogo que deu nome à divindade, ou se o nome jogo, e o formato de seu tabuleiro, são uma representação dessa divindade.

Apesar da total ausência de fontes de informação, a respeito das regras do Mehen, os pesquisadores não têm dúvida de que o tabuleiro encontrado era realmente parte de um jogo. Com base em pesquisas arqueológicas, a respeito de como os jogos funcionavam no Egito antigo, em tempos modernos, foram estabelecidas algumas prováveis regras para o Mehen.

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Image: British Museum

O formato do tabuleiro do Mehen é outra característica digna de interesse, pois parece ser uma referência a outro símbolo antigo, que é o “ouroboros”. Esse é o símbolo da serpente que engole a própria cauda, em uma representação do ciclo infinito de morte e renascimento. É possível até mesmo que o Mehen tenha sido uma das inspirações originais para o símbolo.

No entanto, essa possível relação deve ser analisada com cautela. Isso porque uma das primeiras aparições do ouroboros, reconhecida e aceita pelos estudiosos, é a do texto funerário “Livro Enigmático do Mundo Inferior” encontrado na tumba do faraó Tutancâmon, que morreu em 1323 a.C. Isso ocorreu, aproximadamente, mil anos após o Mehen ter perdido a sua popularidade. Se o ouroboros já existisse na época em que o Mehen ainda era um jogo popular, seria pouco provável que transcorresse um período tão longo, sem que se encontrasse alguma outra referência, clara e segura, da existência do símbolo.

 

Marel
(aproximadamente 1.400 a.C.)

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Imagem: Museu de Jogos de Figueres – Catalunha, Espanha

Outro jogo egípcio muito antigo é o Marel, que é o provável ancestral do jogo moderno conhecido como Trilha ou Moinho (Nine Man’s Morris). O exemplar mais antigo desse jogo, datado de 1.400 a.C., foi encontrado no Egito, em um templo da cidade de Qurna. Porém, outras variantes do mesmo jogo também foram encontradas no Sri Lanka em 10 a.C. O jogo era amplamente jogado durante o Império Romano, e acredita-se que o seu próprio nome (que chegou até os tempos modernos) seja uma corruptela da palavra latina “merellus”, que, entre outros, significa “peça de jogo”.

Além disso, um exemplar foi descoberto nos destroços do navio viking Gokstad datado de 900 d.C. e tabuleiros do Marel também foram esculpidos em assentos de algumas das principais catedrais britânicas medievais, tais como Westminster, Canterbury, Gloucester, Salisbury e Norwich. Do mesmo modo, também foram encontrados vestígios do jogo na Basílica de São João em Selçuk, na Turquia, durante o Império Bizantino.

Outra menção antiga sobre o Marel se encontra no famoso livro “Ars Amatoria” (A Arte do Amor), do poeta Ovídio, escrito em 2 d.C. Ele também aparece no “Libro de los Juegos”, uma compilação de textos, traduzidos do árabe, que envolvem diversos jogos como Xadrez, Damas e Gamão. Esse livro é datado do século XIII d.C., e foi escrito por ordem do Rei Alfonso X. Do mesmo modo, o jogo também é citado na famosa peça teatral de William Shakespeare “Sonho de Uma Noite de Verão”, do século XVI d.C.

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Imagem: Wikipedia – Libro de los Juegos

O Marel faz parte da mesma família de jogos do Jogo da Velha (outro jogo também muito antigo), onde o objetivo é colocar três peças alinhadas. A diferença principal entre o Jogo da Velha e o Marel é que no primeiro as peças ficam fixas, enquanto que no segundo há a possibilidade de movimentar as peças, após elas serem posicionadas no tabuleiro. Essa é uma enorme diferença em termos de possibilidades estratégicas, profundidade e nível de dificuldade.

Outra diferença é que o Marel apresenta variações quanto ao número de componentes, com três, seis e nove peças, nas versões mais comuns. Também existem variações de tabuleiro, mais adequadas a uma maior quantidade de peças. Nessas versões, as pontas dos três quadrados que formam o tabuleiro são ligadas entre si. Essa característica oferece novas possibilidades, para se alinhar a três peças, eliminar as peças do oponente, e assim ganhar o jogo.

 

Pachisi
(entre 1100 e 800 a.C.)

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Imagem: Wikipedia

Um jogo igualmente ancestral é o Pachisi, originário da Índia. Uma descrição dele aparece no clássico indiano Mahabaratha, mas com o nome Pasha. No entanto, existe muita discussão e debate, entre os estudiosos, a esse respeito.

O Pachisi é o provável ancestral do tradicionalíssimo jogo de Ludo, e o tabuleiro de ambos se parece bastante. Vestígios do jogo, encontrados em escavações em Mathura e Noh, foram datados entre 1100 e 800 a.C.. Além desses, existem registros mais recentes, datados de 200 a 100 a.C, em relevos de Chandraketugarh.

O termo “Pachisi”, que deriva da palavra “paccis”, em hindi significa “vinte e cinco”. Essa é a maior pontuação que pode ser feita por jogada, nas versões mais tradicionais do jogo. Ele utiliza um tabuleiro em formato de cruz, e seis ou sete conchas (búzios) que são lançadas para determinar a quantidade de casas, que o jogador pode andar. Porém, algumas variações utilizam dados ao invés de conchas. Ganha o jogador, cujas peças completarem primeiro o circuito do tabuleiro.

 

Xiangqi
(aproximadamente 200 a.C.)

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Imagem: Boardgamegeek.com

O Xiangqi, o “Xadrez Chinês”, é um jogo muito antigo que, segundo alguns estudos, originou diversas outras versões asiáticas de Xadrez primitivo. Entre essas variantes existem o Shogi japonês e o Janggi coreano. Além dessas regiões, o Xiangqi também migrou para a Birmânia (atual Myanmar), Laos, Vietnã, Camboja, Tailândia, Malásia e Indonésia.

Em 1000 a.C. o termo Xiangqi se aplicava a uma infinidade de jogos de tabuleiro, sem nenhuma semelhança entre si. Porém, segundo o estudioso Samuel Howard Sloan, em 204-203 a.C., Han Xin, um líder militar criou o jogo Xiangqi. Existem ainda duas outras referências ao Xiangqi na antiga literatura chinesa. A primeira menção aparece no Chu Chi, uma coleção de poemas produzidos durante a Dinastia Chou (1046 – 255 a.C.). A segunda menção aparece no famoso livro Shuo Yuan.

As semelhanças entre o Xiangqi e o Xadrez moderno são muito grandes. Por isso, alguns estudiosos defendem que o Xiangqi seria o verdadeiro ancestral do Xadrez moderno, e não o Chaturanga indiano, criado 700 anos depois, no século V, como se acredita no ocidente. No entanto, essa tese não é aceita por diversos outros estudiosos ocidentais.

Outro fator que reforça a tese do Xiangqi como ancestral do Xadrez moderno é que ele é apenas para dois jogadores. O Chaturanga, por sua vez, contava com quatro conjuntos de peças, e até quatro jogadores poderiam jogar. Além disso, o Xiangqi também possui uma torre, um rei e um bispo, e peões. Essas peças ocupam as posições inicias no tabuleiro e têm movimentos praticamente iguais às peças do Xadrez moderno.

 

Ludus Lantruculorum
(aproximadamente 100 a.C.)

05-Ludus-Lantroculorum-300x224 Na Mesa: jogos de tabuleiro (board games) ancestrais

Imagem: Historic England Archive

Um dos jogos mais populares do antigo Império Romano, por volta de 100 a.C., foi o Ludus Lantruculorum. Acredita-se que um jogo grego, muito mais antigo, chamado Petteia foi a base ou fonte de inspiração para o Ludus Lantruculorum. No jogo romano dois jogadores se enfrentavam tentando eliminar todas as peças do adversário, colocando uma de suas peças de cada lado da peça do outro jogador.

Homero cita o jogo grego Petteia, na Ilíada, mas outros autores atribuam sua autoria ao príncipe mitológico Palamedes. Outros estudos defendem que o Petteia é originário do antigo Egito ou da Pérsia. Independente disso, não há dúvida de que o Ludus Lantruculorum surgiu na Roma antiga. Ele era muito popular entre as legiões romanas, que o difundiram por várias partes do mundo, durante as campanhas de conquista do Império Romano.

Não há nenhuma discussão sobre a origem do jogo, mas os arqueólogos, historiadores e demais estudiosos debatem intensamente seus outros aspectos. Assim sendo, a quantidade das peças e o tamanho do tabuleiro, entre outros elementos, são objetos de intensa discussão. A versão mais comumente aceita do Ludus Lantruculorum, ou Lantruculi, consiste em 1, 2 ou 3 fileiras de peças opostas (o número difere), em um tabuleiro dividido em quadrados de uma única cor. Eles estão dispostos em uma grade de 8×8, 10×10, 12×8 ou suas variações.

O jogo se difundiu por uma região geográfica muito grande, levado pelas legiões romanas, o que deu origem a diversas variantes. Entre elas existe uma versão recentemente descoberta em Colchester (a capital romana da Inglaterra, Camulodonum), que inclui uma peça ‘rei’ ou ‘padrão’. Alguns estudos apontam o Ludus Lantruculorum como um provável ancestral dos jogos da família Hnefatafl.

 

Yut Nori
(entre 50 a.C. e 670 d.C.)

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Imagem: Wikipedia

Na Coréia existe o Yut Nori cuja origem pode ser datada entre 50 a.C. e 670 d.C., segundo alguns estudos. Vários outros nomes também se aplicam ao Yut Nori,  tais como Yunnori, Nyout, Yoot, Cheok-sa e Sa-hee. A época próxima ao ano novo coreano é quando mais se joga o Yut Nori.

O Yut Nori é um jogo de origem rural, que representa uma aposta entre cinco aldeões. Cada um deles tenta criar um tipo diferente de animal (porcos, cães, ovelhas, vacas e cavalos). O tabuleiro normalmente é costurado em tecido, sendo composto de um quadrado com as quatro pontas ligadas por duas diagonais. O jogo utiliza quatro fichas de marcação para cada jogador, e cinco varetas, com marcações nas pontas e no meio. O lançamento dessas varetas determina quantos pontos ou estações, cada ficha pode avançar.

Uma particularidade do Yut Nori é que duas pessoas, ou dois times de pessoas, podem jogar o jogo. Isso permite que uma quantidade grande de pessoas, participe de uma única partida. O objetivo do jogo é fazer com que todas as suas fichas percorram todo o circuito e retornem primeiro ao ponto de partida.

 

Ludus Duodecim Scriptorum
(entre 1 a.C. e 8 d.C.)

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Imagem: Ephesus Museum, Selçuk, Turquia

Outro jogo muito popular na época do Império Romano foi o Ludus Duodecim Scriptorum, jogado por duas pessoas. A tradução mais próxima do nome do jogo seria “jogo das doze marcações”. Isso provavelmente deriva do formato do tabuleiro, que consiste de três linhas, cada uma com doze espaços.

Os estudiosos estimam que o jogo tenha surgido entre 1 a.C. e 8 d. C., no início do Império Romano, durante, mais ou menos, a metade do período de imperador Otávio Augusto. A menção mais antiga ao jogo aparece no clássico de Ovídio Ars Amatoria (A arte do Amor). Outros estudos apontam também que o Ludus Duodecim Scriptorum teria sido um ancestral do Tabula, surgido algumas décadas depois, e que teria, por sua vez, originado o Gamão moderno.

Muito pouco se sabe a respeito das regras e especificidades do jogo, e poucas informações chegaram até os tempos modernos. Além disso, existe uma teoria, muito contestada, de que o Ludus Duodecim Sriptorum seria uma versão romana do jogo egípcio Senet. O motivo da contestação dessa tese se deve principalmente a dois fatores. Em primeiro lugar porque existe uma enorme distância temporal entre os dois jogos. E em segundo lugar porque não existem fontes fidedignas suficientes, capazes de corroborar essa teoria.

 

Tabula
(aproximadamente 50 d.C.)

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Imagem: Boardgamegeek.com

Algumas décadas depois do Ludus Duodecim Scriptorum,  surgiu também na Roma Antiga, em 50 d.C., um jogo chamado “Tabula”. Conforme  a lenda, a fonte de inspiração para o Tabula foi outro jogo grego, o “Alea”, jogado durante a Guerra de Tróia, segundo a lenda. O Tabula, diferentemente do Ludus Duodecim Scriptorum, foi muito popular, entre os romanos e suas regras chegaram até os tempos atuais.

Outro fator interessante é que os estudiosos consideram o Tabula como o provável ancestral do Gamão. Em ambos, o movimento das peças depende do lançamento de dados. Porém, diferentemente do Gamão, o Tabula utilizava três dados ao invés de apenas dois. Por outro lado o Tabula, e o Gamão, apresentam a similaridade dos jogadores começarem com todas as 15 peças no tabuleiro. Outra semelhança é que os dois jogos possuem tabuleiros divididos em 24 espaços. Conforme o lançamento dos dados, os jogadores devem deslocar suas peças, em uma determinada direção. Após isso, o jogador pode retirar suas peças do tabuleiro. Ganha a partida, o primeiro jogador que conseguir retirar todas as suas peças do tabuleiro.

Outra curiosidade sobre o Tabula, é que o Imperador Cláudio, aparentemente, era um grande apreciador do jogo, e sempre o levava em suas viagens e campanhas. Entretanto, alguns estudos contestam essa afirmação, porque o surgimento estimado do Tabula (50 d.C.) está muito próximo da data da morte do Imperador Claudio, que ocorreu  em 54 d.C.

 

Hnefatafl / Tafl
(aproximadamente 400 d.C.)

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Imagem: Boardgamegeek.com

Entre os povos escandinavos existe o Tafl ou Hnefatafl, também conhecido como “Xadrez Viking”, datado de 400 d.C.. Nesse jogo, um jogador representa os atacantes que começam na borda do tabuleiro e devem cercar o Rei. O outro jogador deve jogar com o Rei, e seus defensores, e deve conseguir chegar a um dos cantos do tabuleiro. Muito provavelmente o Ludus Lantruculorum influenciou o Tafl/Hnefatafl, ou pelo menos serviu como fonte de inspiração. Como as legiões romanas apreciavam muito o Ludus Lantruculorum, esses soldados levaram o jogo até o norte da Europa, influenciando a criação dos jogos dessa região.

Diversas sagas nórdicas citam o Tafl/Hnefatafl, o que é uma prova da sua popularidade. Ele foi o jogo mais popular entre os povos do norte europeu e da Escandinávia, especialmente durante o chamado “período viking”, durante os séculos VIII e XI. Com a expansão viking, o jogo também chegou às ilhas britânicas, onde também gozou de certa popularidade. Mais tarde, no século XII o Tafl/Hnefatafl foi perdendo popularidade, sendo gradativamente substituído pelo Xadrez. No entanto, o povo Sami (originário de uma região localizada no norte da Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia) manteve uma versão do jogo até o século XVIII.

Apesar da popularidade, existe grande discussão a respeito das regras originais do Tafl/Hnefatafl, em relação ao uso de dados, e quanto ao tamanho da grade do tabuleiro. Em 1732 o naturalista sueco Carl Linnaeus escreveu um tratado compilando as mais prováveis regras do Tafl/Hnefatafl. Posteriormente, em 1811, surgiu uma tradução desse tratado, que serviu como a principal base para as modernas regras do jogo.

 

Chaturanga
(aproximadamente 500 d.C.)

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Imagem: Wikipedia

Outro jogo antigo é o Chaturanga, que surgiu na Índia, aproximadamente em 500 d.C. Muitos estudiosos, especialmente ocidentais, defendem que o Chaturanga foi o jogo que deu origem ao Xadrez Moderno. Segundo esses estudiosos, Chaturanga também originou outras formas primitivas de Xadrez, como os jogos Shogi do Japão, o Makruk da Tailândia, o Sittuyin de Myanmar, e o Janggi da Coreia.

Entretanto,  alguns estudiosos, em destaque Samuel Howard Sloan, contestam essa afirmação. Eles alegam que o Xiangqi é o real ancestral tanto do Chaturanga, quanto do Xadrez moderno, e das demais variantes asiáticas. Isso porque a criação do Xiangqi está estimada em pelo menos 700 anos antes do Chaturanga. Considerando a proximidade das duas regiões e o fato do jogo chinês ser anterior ao jogo indiano, o primeiro poderia ser uma possível fonte de inspiração para o segundo.

É preciso considerar também que, nessa época, a China era uma sociedade muito mais fechada a influencias estrangeiras que a Índia. Isso torna mais provável que o jogo chinês tenha migrado para Índia e influenciado o jogo indiano, e não o contrário.

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Imagem: Wikipedia – Chaturaji

Além disso, se for considerado que o Chaturanga é o ancestral do Xadrez moderno, isso ocorreu de forma indireta. Segundo alguns estudos, uma variante chamada Xatranje, muito similar em regras e peças ao Chaturanga, surgiu na Pérsia no século VII. Essa variante é que teria chegado à Europa e originado o Xadrez moderno, ao invés do Chaturanga.

Outro fator que reforça a tese é que o Chaturanga, originalmente, era um jogo com quatro equipes. Por outro lado, o Xatranje já na sua forma original, se aproxima mais do Xadrez moderno, com apenas dois times, ocupando lados opostos do tabuleiro. Porém o mesmo pode ser dito do Xiangqi chinês.

 

Nardshir
(aproximadamente 500 d.C.)

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Imagem: AncientGames.Org (Manuscrito com Bozorgmehr Ensinando o Nardshir – 1300-1350 d.C.)

O Nardshir, ou Nard, é outro jogo antigo oriundo da antiga Pérsia, atual Irã. O registro mais antigo conhecido do jogo é um livreto do século VI d.C., do célebre político e nobre persa Bozorgmehr, a quem é atribuída a sua criação. O romance persa Chatrang-namak, escrito entre os séculos VII e IX d.C., também cita o Nardshir, assim como o poema épico persa Shannameh escrito no século X d.C.. Essas duas obras também atribuem a criação do Nardshir a Bozorgmehr, o que reforça ainda mais essa tese, sobre a autoria do jogo.

Apesar disso, uma lenda dá uma origem totalmente diferente e muito mais antiga ao jogo. Segundo essa lenda, o fundador da Dinastia Sassânida, Ardashir I, que viveu entre 180 e 242 d.C., foi quem criou o Nardashir, e o nome do jogo derivaria do nome de seu criador. Além disso, alguns estudiosos defendem que a primeira menção ao jogo estaria no Talmud judaico. Porém, outros estudos indicam que a referida passagem trata de outro jogo de origem grega, chamado Kubeia. Aparentemente o Talmude da Babilônia também cita essa variante.

O Nardashir tem alguma semelhança com o Gamão moderno, e em ambos, o lançamento de dados define o movimento das peças. Porém, é preciso considerar que o Tabula é muito mais antigo que o Nardshir, e que o jogo romano é mais semelhante ao Gamão do que o jogo persa. Por tais razões, o mais provável é que o Tabula tenha sido o ancestral tanto do Nardshir, quanto do Gamão.

Uma variante do Nardshir é especialmente popular na Rússia, com o nome de “nardy”, e na antiga república soviética da Geórgia, onde se chama “nard”. Um dos possíveis criadores dessa variante foi Artaxes I, da Dinastia Sassânida, aproximadamente em 500 a.C. mesma época do jogo original.

 

Outros jogos

Também merecem destaque outros jogos antigos, que surgiram a partir do ano 1.000 d.C, mesmo não sendo tão antigos quantos os demais jogos citados. Entre estes há o Bagh-Chal do Nepal, e o Vaikuntapaali, jogo indiano datado do século XV e que originou o “Serpentes e Escadas” jogo muito tradicional dos EUA. Existe também o Alea Evangelii, da Inglaterra Anglo-Saxã, que simula um tipo de batalha naval, e é datado entre 1100 d.C. e 1200 d.C.

Do mesmo modo, não se pode deixar de citar também os jogos da América Pré-Colombiana. Entre estes vale destacar o “Awithlaknannai” dos índios Zuni do Novo México e o “Puluc” de povos nativos de Belize e da Guatemala. Na mesma categoria há também o “Patoli” jogado pelos Astecas, e o brasileiro Jogo da Onça (mas com possível origem Inca), jogado pelos Bororos no Mato Grosso, pelos Manchineri, no Acre, e os Guaranis, em São Paulo. No caso desses jogos, uma datação precisa é muito difícil, por conta da falta de registros confiáveis. No entanto, existe um consenso entre os estudiosos de que eles não seriam anteriores aos séculos XIII e XIV.

 

Para terminar, espera-se que esse texto tenha sido bastante útil e elucidativo, para aqueles que tenham interesse nos jogos ancestrais, que deram origem a diversos jogos modernos, e normalmente não são citados, quando se trata dos primeiros jogos de tabuleiro, vindos diretamente do alvorecer da civilização.

Um forte abraço e boas jogatinas!

Iuri Buscácio

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Imagem-Iuri-Buscacio-120x120 Na Mesa: jogos de tabuleiro (board games) ancestrais

Iuri Buscácio

Leitor voraz de filosofia, teatro, literatura brasileira e estrangeira, suspense, e de romances históricos, de fantasia e ficção científica, além de ser fã de quadrinhos americanos e europeus, desde os tempos da saudosa Ebal, amante do cinema e das séries, e também um grande entusiasta e pesquisador dos jogos de tabuleiro, tanto clássicos quanto modernos, cuja trilha sonora é o bom samba, a MPB de qualidade, black music e música pop dos anos 70 e 80.

9 thoughts on “Na Mesa: jogos de tabuleiro (board games) ancestrais

  1. parabens ao autor muito interessante esse texto, eu ja tinha ouvido falar de alguns desses jogos mas nao tinha ideia de como eram os tabuleiros e nem sobre o que tratavam, agora que descobri fiquei maravilhado com alguns deles, e o xadrez viking parece que tem pra vender em alguns lugares

    1. Caro Ticio

      Muito obrigado. Quanto à questão da venda de jogos ancestrais, se você estiver interessado, eu te recomendo dar uma olhada no site da Mitra Editora (http://www.mitra.net.br/), porque, além do Xadrez Viking, ela também vende outros jogos ancestrais, bem como alguns outros jogos antigos, mas nem tanto.

      Um forte abraço e boas jogatinas!

      Iuri Buscácio

  2. muito interessante o topico ate pq aborda tb o contexto do jogo na historia e nao somente suas mecanicas e idade, meus parabens!

    1. Caro Diego Font

      Muito obrigado por prestigiar meu texto, e fico feliz que você tenha gostado.

      Um forte abraço e boas jogatinas!

      Iuri Buscácio

    1. Caro Melhem

      Muito obrigado e que bom que você gostou. Realmente seria muito bom se existisse ao menos um livro em português falando sobre board games modernos. Alguns anos atrás, eu até acalentei a ilusão de escrever um. O problema é que o público é muito restrito e aí a produção teria de ser toda independente, o que torna tudo muito caro. Mas quem sabe um dia…

      Um forte abraço e boas jogatinas!

      Iuri Buscácio

  3. não sei quanto aos demais mas eu estava semanalmente conferindo o site pra ver um novo texto do Iuri kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

    1. Caro Topu

      Fico muito agradecido e satisfeito que vocês esteja gostando dos meus escritos. Recentemente, por razões médicas, eu precisei dar um tempo nos textos, mas agora já está tudo bem. Com isso, pretendo continuar escrevendo e publicando aqui no Maxiverso com mais regularidade.

      Um forte abraço e boas jogatinas!

      Iuri Buscácio

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