Crítica: Anatomia de Uma Queda
Diretora: Justine Triet
Elenco: Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado Graner,Antoine Reinartz, Jehnny Beth, Saadia Bentaïeb, Anne Rotger e Sophie Fillières
“Às vezes um casal é uma espécie de caos e todo mundo está perdido”
É possível analisar Anatomia de uma Queda por várias vertentes. Esse mérito da diretora e roteirista Justine Triet é justamente não permitir uma resposta simples sem antes analisarmos uma série de elementos de um relacionamento, doses de sexismo e a percepção do outro dentro de um ambiente internamente desgastante.
Funcionando habilmente como uma obra que transita entre um filme de tribunal e um drama, como visto, por exemplo, em Historia de um Casamento, tais elementos são mais acentuados ainda pela narrativa assertiva de Tried. Embalsamados numa obra de julgamento moral de manipulação da verdade exposta desse microcosmo de sentimentos e dualidade diante de um possível crime; onde há um elemento de tentativa de controle narrativo dos seus agentes sobre uma culpabilidade velada (ou não) da mulher pela condição do filho com deficiência visual, do casamento em si ou até de uma vítima de misoginia do marido por esse não suportar a frustração profissional – descontando, assim, na esposa escritora de pensamento livre e o fato da mudança de cidade afetar suas rotinas (algo, inclusive, que ele decidiu pela troca).
Seria mesmo Sandra Voyter (Huller) responsável pela morte do marido Samuel (Theis) ou ele se suicidou devido à culpa pelo acidente do filho Daniel (Graner)? Há uma dissimulação vinda da própria esposa para esconder a verdade?
Como mulher, não sofreria uma espécie de preconceito imaginário em premeditar seus atos através dos livros que escreve (acho que vale notar certo paralelo como que foi visto em Instinto Selvagem mesmo que tenhamos duas narrativas completamente diferentes, mas contendo uma figura feminina central suspeita de assassinato). No entanto, isso é apenas um ponto do complexo cenário inicialmente visto como prosaico de pontas soltas exposto a todos em que o público é obrigado a remontar; sem a direção realmente apontar um caminho definitivo.
E é aí que a narrativa se torna eficaz!
Seria fácil para a diretora apostar em convenções de um crime ocorrido em algum local isolado pela neve e com um clímax ao descobrir o assassino como pode sugerir o trailer do filme (para a decepção de alguns que esperavam algo nesse sentido), mas isso é descartado imediatamente. Aqui não há suspeitos ocultos surgindo, os poucos envolvidos estão claramente definidos; o que muda é como a obra vai inserido e trabalhando nossa percepção diante dos fatos usando uma narrativa sutil e a presença de seus personagens.
Criando instabilidade através de planos e movimentos de câmeras, a diretora vai sempre impondo dúvidas através de pequenas decisões ainda eficientes. O fato de Sandra dominar praticamente três idiomas, e ir alternando-os em momentos de pressão (optar pelo inglês e não francês), indica ao mesmo tempo um conflito interno e um possível contrassinal de sua inocência; algo ainda mais elogiável pela capacidade da atriz emular algo dúbio de sentir-se inocente sendo acusada de assassinato.
Sandra Huller conduz o espectador à sua maneira quando a personagem emana uma sensação de confiança de sua não participação, mas constantemente sendo julgada pelos seus atos ou até mesmo pela sua bissexualidade. Inclusive, essa dubiedade psicológica também pode ser vista em outros detalhes como um plano bem fechado nos lábios dela como se o filme brincasse com a veracidade daquelas palavras que saem de sua boca.
Outro exemplo é justamente na reação um pouco cínica na entrevista dela para a jornalista que, devido ao desconforto pelo alto som da canção P.I.M.P. do rapper 50 Cent, tocada pelo marido e cujos versos (“Não sei o que você ouviu sobre mim, mas vadia nenhuma tira dinheiro de mim… eu sou um filho da puta cafetão”), denotando uma dinâmica instável e agressiva vinda do marido (até então oculto, o que aumenta ainda mais a possível ameaça).
Inclusive, Justine Triet usa o elemento fílmico do som realmente de maneira intensa e servindo bem a narrativa. Se a música citada varia tanto como algo diegético (faz parte daquele universo) ao mesmo tempo como algo que domina a cena em outros momentos personificando a presença não exatamente física do marido, o mesmo é feito quando Daniel extravasa sua confusão mental sobre o incidente através das notas do piando igualmente repetidas pontuando uma virada no filme. Aliás, o jovem ator é merecedor de vários elogios por construir no seu personagem amadurecimento extremo e entendimento da vida e morte ao lidar com a perda do pai e compreender que a justiça para a mãe passa pelo sua decisão de passar à policia o que ocorreu; digo decisão por recontar uma versão diferente daquela inicial e ele entende que, caso sua mãe seja condenada, a solidão de um mundo reforçada pela sua condição aumentará.
Ou fato de usar movimento de câmera de um lado para o outro quando o mesmo Daniel esta no tribunal ouvindo duramente as versões da defesa e acusação, e devido às suas ações no terceiro ato, torna tudo ainda mais surpreendente (e sim, é possível também ficar com ódio do jovem pela cena com o simpático cão da família).
Isso sem contar o momento crucial do longa durante a surgimento de uma gravação em que a diretora corta exatamente no momento final da discussão para ouvirmos somente os barulhos de algo quebrando. Uma decisão simples, mas absolutamente necessária, pois caso mostrassem exatamente o que ocorreu, toda a narrativa, nossa condição de entender aquele contexto contado até ali seria destruído.
A questão maior desse Anatomia de uma Queda é sobre o relacionamento falido quando um crime simboliza o quanto é difícil achar um culpado dentro de uma zona cinzenta de um relacionamento. Há um aspecto que cada um irá interpretar a sua maneira sobre essa polarização quem é a vítima ou não? E mesmo assim não será algo definitivo.
Rodrigo Rodrigues
Latest posts by Rodrigo Rodrigues (see all)
- Crítica: Coringa – Delírio a Dois - 11/10/2024
- Crítica: Os Fantasmas Ainda se Divertem – Beetlejuice Beetlejuice - 13/09/2024
- Crítica: Alien – Romulus - 24/08/2024
- Crítica: Caça-Fantasmas (Ghostbusters) - 18/06/2024
- Crítica: Furiosa: Uma Saga Mad Max - 11/06/2024
filme lentissimo, calcado apenas em dialogos, nao é muito acessivel, mas bem firme e estruturado de maneira que da pra vc seguir ate o fim, pq a qualidade nao cai… bem interessante, recomendo
pretendo ver, estou curiosa desde que foi anunciado