A Industrialização Tardia e o Mercado Nacional de Jogos

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Banco Imobiliário 1980 - Caixa

Qualquer brasileiro conhece os jogos de tabuleiro tradicionais lançados no Brasil, mesmo que nasceu décadas após o seu lançamento. A imensa maioria das populações das grandes cidades conhece Banco Imobiliário, Detetive e WAR, mesmo sem jogar esses board games. Isso não é para menos. Os dois primeiros são da Estrela, maior empresa de brinquedos da América Latina, e o terceiro é o carro-chefe da Grow, outra gigante do setor.

 

Além disso, é preciso considerar que estas empresas estão atuando há décadas, e por muito tempo foram as principais empresas de jogos de tabuleiro. Só para dar uma ideia, o Banco Imobiliário lançado em 1944, é o “brinquedo brasileiro mais vendido de todos os tempos”. Os outros dois são bem mais recentes, mas mesmo assim também venderam milhões de cópias. O WAR da Grow, cujo título original era 1914, é de 1972 e o lançamento nacional do Detetive da Estrela ocorreu em 1977.

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Só para esclarecer o Banco Imobiliário e o Detetive da Estrela são versões nacionais respectivamente do Monopoly e do Clue. Do mesmo modo, o WAR é praticamente uma versão do Risk, apesar de possuir algumas inovações. Portanto as datas acima se referem ao lançamento dessas versões nacionais e não dos jogos originais, ocorrido alguns anos antes.

 

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Imagem Google: Jogos de Tabuleiro Clássicos do Brasil

 

Acresce ainda que nos anos de 1970 e 1980, a chamada época de ouro dos jogos de tabuleiros no Brasil, não havia tanta opção de jogos como hoje em dia. Isso para não falar que nessa época a informação do que acontecia no exterior não era tão rápida e acessível. Só depois da Internet é que a grande maioria das pessoas realmente se deu conta de que Banco Imobiliário e Detetive não são originalmente nacionais.

 

Assim sendo, nessa época Estrela e Grow dominavam praticamente sozinhas o mercado nacional de jogos de tabuleiro. A Grow lançou WAR, Diplomacia, Scotland Yard, Interpol, Supremacia, Imagem & Ação, Master, Perfil, Top Secret e Contatos Cósmicos. Já a Estrela lançou Banco Imobiliário, Detetive, Jogo da Vida, Heroquest, Combate, Cilada, Genius, Quina, Cara a Cara, e Blefe de Mestre. E todos esses jogos são da década de 1970 ou 1980 (lançamento nacional).

 

Por esse motivo os anos 1970/1980 são com toda a justiça a época de ouro dos jogos de tabuleiro. Antes dos anos 1970 ainda não havia tantos jogos. Depois de meados dos anos 1980, os vídeos games, jogos de computador e a internet, posteriormente, diminuíram a relevância dos jogos de tabuleiro.

 

Nessa mesma época (anos 1970) aparentemente a Estrela começou a pagar royalties para as editoras internacionais de seus jogos. Já a Grow, mais uma vez aparentemente, continuou a lançar os jogos internacionais como se fossem seus apenas mudando o nome. Isso ocorreu com o WAR (Risk), Scotland Yard (218B Baker Street), Interpol (Scotland Yard), Top Secret (Heimlich & Co.), Imagem & Ação (Pictionary). Em alguns casos, se acrescentava apenas algumas mudanças cosméticas aos jogos, ou uma ou outra e regra. Em outros casos, nem isso acontecia, como foi o caso do Contados Cósmicos e do Supremacia, lançados aqui, inclusive, com o mesmo nome original.

 

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Imagem Google: Scotland Yard e Interpol os jogos que dividem o mesmo nome original

 

Outro fator que está diretamente ligado jogos de tabuleiro, foi o processo de industrialização brasileira. Para tratar disso é preciso recuar alguns séculos na História. Durante o período colonial, Portugal impediu a industrialização de sua maior e principal colônia, para evitar qualquer concorrência aos produtos da metrópole. A situação mudou totalmente quando Corte Portuguesa veio para o Brasil, em 1808 fugindo de Napoleão. Logo de início houve a abertura dos portos do Brasil ao comércio com as demais nações, sem ter de passar antes pela alfândega portuguesa.

 

Alguns anos depois por volta de 1815, Napoleão já estava derrotado e exilado em Elba, e também ocorreu o Congresso de Viena (1814/1885). Essa foi uma das conferências mais importantes da história europeia, que decidiu entre outras coisas, restaurar as Casas Reais, depostas por Napoleão. Isso causou um grande constrangimento diplomático para D. João VI que era o único monarca europeu que reinava, mas exilado em uma colônia.

 

Para piorar a situação, em Portugal crescia o descontentamento com a permanência da Corte Portuguesa no Brasil, pois já não havia mais a ameaça de Napoleão. Para tentar remediar a situação, D. João VI elevou o status do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves, em 1815, situação que perdurou até a independência em 1822. Essa elevação do status de colônia para reino, juntamente com a Abertura dos Portos, feita ainda em 1808, melhorou bastante a situação econômica brasileira. Coisas que antes eram proibidas como o livre comércio e a instalação de pequenas manufaturas, mais para oficinas do que para fábricas, foram incentivadas.

 

Infelizmente a influência e dominação inglesa, que já era muito forte no período colonial, perduraram por todo o período imperial. Isso dificultou sobremaneira a industrialização brasileira, que só começou a ocorrer de verdade, mais de um século depois, durante a república.

 

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Imagem Wikipedia: Chegada da Corte Portuguesa ao Brasil

 

Somente ao final da década de 1930 já caminhando para o terço final da Ditadura Vargas é que surgiram as primeiras empresas brasileiras. A CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) surgiu em 1941, e A Companhia Vale do Rio Doce em 1942. Na década de 1950 foi a vez da Petrobrás (1953) e o Governo de Juscelino Kubitschek trouxe as primeiras montadoras automobilísticas para o Brasil.

 

Só para dar uma ideia, reza a lenda, que a construção do Estádio de Futebol de São Januário do clube de futebol carioca Vasco da Gama, inaugurado em 1927, utilizou cimento trazido em navios, de Portugal. Na década de 1920 a diminuta produção nacional de cimento era toda voltada para as obras estatais. No mesmo sentido, só depois do início da produção nacional de plástico em 1949, a Estrela pôde lançar a Pupi, sua primeira boneca de plástico.

 

Antes de 1950, as bonecas tinham a cabeça e membros feitos de um material chamado “massa de composição” e o corpo de tecido. A pesquisadora e colecionadora Ana Caldatto tem um trabalho muito interessante sobre bonecas e brinquedos mais antigos, especialmente da década de 1940. Seu trabalho pode ser visto no seu excelente canal no Youtube e em seu blog. Quem se interessar pelo assunto vale dar uma olhada.

 

Uma curiosidade é que nessa época as bonecas da Estrela vinham com o nome da empresa escrito com dois “L” (Estrella). Com o início da década de 1950 as bonecas passaram a utilizar o plástico no corpo inteiro e ganharam articulações na cabeça e membros.

 

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Imagem Blog Ana Caldatto: Bonecas de Massa de Composição

 

Esse dado histórico, sobre o início da produção nacional de plástico, diz muita coisa sobre o nível da industrialização brasileira da época. Isso porque o plástico é um produto muito mais moderno, cuja produção demandava uma industrialização muito maior, do que papel, madeira, metal ou tecido. Hoje o plástico é um material muito mais barato para se produzir, e mais fácil de trabalhar, tanto que quase tudo é de plástico atualmente. Porém, 80 anos atrás, a história era muito diferente.

 

O início tardio da produção nacional de plástico impactou diretamente na produção nacional de jogos de tabuleiro, porque parte das peças era de plástico. Assim, somente na metade dos anos 1950 é que a produção, e lançamento, dos jogos de tabuleiro no Brasil, ganhou força. Duas décadas depois, nos anos 1970, com a indústria nacional de plástico, e de outros setores, já bem estabelecidas, os jogos de tabuleiro deslancharam.

 

Obviamente essa tese da relação entre a industrialização tardia brasileira e a produção de board games pode ser contestada. Mas seria no mínimo muita coincidência mão haver quase nenhum jogo de tabuleiro produzido no Brasil na década de 1940 e um grande quantidade a partir da década de 1950, quando iniciou a produção nacional de plástico.

 

Outro argumento contrário é que poucos componentes usavam plástico, e primeiros jogos de tabuleiro eram basicamente feitos de papelão. Desse modo, em tese, a falta de plástico não impactaria, pelo menos em tese, a produção de jogos de tabuleiro. O problema com esse argumento é que os primeiros jogos de tabuleiro eram fortemente baseados na mecânica “role e mova”. Em outras palavras os primeiros board games funcionavam na base do “role o dado e ande tantas casas”.

 

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Imagem Wikipedia: CSN, uma das Primeiras Grandes Indústrias de Base Brasileira

 

E é justamente aí que entra a dependência do plástico porque os dados são feitos basicamente desse material, e isso até hoje. O início da produção nacional barateou o plástico e tornou esse material mais acessível, mais ou menos como aconteceu com as bonecas. Isso tornou possível lançar jogos de tabuleiro, onde basicamente havia trilha, em que a movimentação das peças dependia do resultado dos dados.

 

Essa falta de jogos de tabuleiro na década de 1940 também explica o motivo do Banco Imobiliário ser o brinquedo mais vendido de todos os tempos no Brasil. Lançado em 1944, o Banco Imobiliário praticamente não tinha concorrente, o que só veio a acontecer décadas depois. Conforme dito antes, as décadas 1970/1980 foram a “Era de Ouro” dos jogos de tabuleiro no país. Só que a comparação dessas duas décadas traz dados interessantes. Sem sombra de dúvida entre os grandes títulos, a década de 1980 teve uma quantidade maior de lançamentos. Alguns parágrafos atrás aprece as lista daqueles que provavelmente foram os 10 principais jogos de tabuleiro tanto da Grow, quanto da Estrela.

 

A divisão desses 20 jogos pela data de lançamento revela que a década de 1970 teve muito menos jogos lançados, que a década de 1980. Os jogos da década de 1970 são: Combate (1970), WAR (1972), Diplomacia (1974), Scotland Yard (1975), Contatos Cósmicos (1977), Detetive (1977).

 

Já os jogos da década de 1980 são: Quina (1980), Genius (1980), Cilada (1981), Master (1982), Interpol (1983), Supremacia (1984), Top Secret (1984), Imagem & Ação (1986), Jogo da Vida (1986), Cara a Cara (1986), Perfil (1988), Blefe de Mestre (1989), Heroquest (1989). O Banco Imobiliário ficou de fora dessa seleção porque é de 1944.

 

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Imagem Google: Banco Imobiliário Primeira Edição de 1944

 

A questão é que quanto menor a opção de jogos, maior é a procura por essas poucas opções, o que leva a uma maior produção desses títulos. Assim, como a década de 1980 teve mais jogos lançados, individualmente eles venderam menos, porque a opção era maior. Na década de 1970 ocorreu o oposto, menor opção, maior produção e maior sucesso de vendas. Agora, se na década de 1970 já havia poucas opções de jogos de tabuleiro, dá para imaginar o quanto esse tipo de produto era restrito nos anos 1940.

 

Também é preciso considerar que nos anos 1980 surgiu no Brasil o Atari, o vídeo game que definiu a década em termos de diversão eletrônica. Inicialmente o Ataria era um produto muito caro, mas seu enorme sucesso aumentou drasticamente a produção. Isso diminuiu o preço do Atari, que ficou mais acessível para classe média.

 

Combinado a isso também ocorreu o lançamento dos computadores pessoais brasileiros de uso doméstico, com destaque para alinha CP da Prológica. Um dos principais usos para esses computadores pessoais foram justamente os “jogos para computador”. Desse modo, na década de 1980, os jogos de tabuleiro perderam muito espaço e mercado para os novos jogos eletrônicos.

 

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Imagem Google: Atari 2600 e Apple II

 

Outro fator a se considerar é que quando um produto faz sucesso ao longo dos anos, ele costuma consolidar uma posição no mercado, que só faz aumentar com o passar do tempo, desde que ele continue relevante. Desse modo, quando surgiram WAR, Detetive e Scotland Yard, talvez os jogos que mais se aproximem do Banco imobiliário em termos de vendas, esse já tinha mais de 30 anos de lançado. E isso quando quase não havia jogos de tabuleiro para de comprar e se jogar no país.

 

Por isso, mesmo que atualmente o Banco Imobiliário não seja mais o mesmo colosso de outrora, todo o sucesso conquistado ao longo de décadas o coloca em uma posição muito confortável, como jogo de tabuleiro nº1 do Brasil, pelo menos em termos de unidades vendidas.

 

Indo além, e considerando a magnitude e tamanho da Estrela e da Grow, não é de se estranhar que todos os brasileiros conheçam seus jogos e brinquedos. Essas são as duas maiores empresas nacionais do setor, que praticamente monopolizaram o mercado de brinquedos durante décadas. Os jogos Estrela/Grow já fazem parte do imaginário coletivo e afetivo do brasileiro e moldaram o conceito de “jogo de tabuleiro” no país. Isso todo mundo sabe e não é nenhuma novidade.

 

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Imagem Google: Coluna, Glasslite, NIG e Gulliver

 

Por outro lado, o que nem todos sabem é que Estrela e Grow, mesmo sendo de longe as maiores e mais importantes empresas nacionais de jogos, ainda assim não foram as únicas. Outras empresas também deixaram sua marca no mercado nacional dos board games, algumas esquecidas, outras pouco lembradas. Algumas dessas empresas faliram, mas outras estão aí até hoje. São empresas como A Coluna Jogos e Brinquedos do Paraná, a Glasslite dos jogos baseados nos seriados norte americanos, a NIG Brinquedos e a Gulliver. Mesmo sem a mesma relevância e impacto de Estrela ou Grow, ainda assim essas empresas também contribuíram e muito para o mercado nacional de jogos. Elas também fazem parte da história dos jogos de tabuleiro nesse país, e por isso também merecem todos os aplausos.

 

Com a chegada da década de 1990, aconteceu no Brasil, o mesmo que já acontecia no resto do mundo. Em outras palavras os jogos de tabuleiro perderam muito espaço, como entretenimento, principalmente por conta da Internet e dos jogos eletrônicos. Essa situação perdurou quase duas décadas após o início da Era dos Jogos Modernos, com o lançamento do Catan em 1995. Assim sendo, somente em 2013/2104 os board games internacionais, e de grande relevância, realmente começaram a ter lançamento nacional. E mesmo assim, apesar do lançamento ser de uma empresa nacional, na quase totalidade dos casos a produção é feita na China.

 

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Imagem BGG: Catan

 

Naturalmente se pode argumentar que isso decorre do fato dos jogos internacionais terem tiragens mundiais. Nesse caso, nenhum outro país do mundo consegue igualar os preços das fábricas chinesas, de modo que é natural produzir os jogos lá. A questão é que esses custos de produção imbatíveis, das fábricas chinesas dependem de uma produção gigantesca, na casa de centenas de milhares de unidades. Isso deixa claro que só compensa produzir na China os jogos de nível mundial, lançados em diversos mercados inclusive o brasileiro.

 

Por outo lado, os jogos nacionais, com uma expectativa de venda basicamente doméstica, e tiragem muito menor, não se encaixam nesses parâmetros chineses. Mesmo assim, durante anos, mesmo os jogos originalmente nacionais foram produzidos na China, simplesmente porque o nosso parque fabril não era adequado. Até hoje, muitas editoras reclamam, por exemplo, da dificuldade em conseguir um fornecedor adequado para as caixas dos jogos.

 

Isso leva a um círculo vicioso que afetam profundamente o mercado nacional de jogos. As editoras não produzem os jogos aqui, porque as gráficas não tem maquinário adequado, e as gráficas não investem em maquinário adequado, porque não há demanda por parte das editoras. Felizmente, na contramão disso, algumas editoras já contam com a produção nacional, talvez não de todos os componentes, mas parte deles. Isso já é alguma coisa, e quem sabe no futuro talvez a nacionalização da produção leve ao fortalecimento desse mercado, ao aumento das tiragens e consequentemente a redução dos preços.

 

Quem viver verá!

 

Um forte abraço e boas jogatinas!

 

Iuri Buscácio

 

P.S. Quem porventura tiver interesse em textos no mesmo estilo pode encontrá-los acessando o canal iuribuscacio no Ludopedia ou a seção de Jogos de Tabuleiro no portal maxiverso.com.

 

https://ludopedia.com.br/canal/iuribuscacio

https://maxiverso.com.br/blog/category/nerdgeek/jogostabuleiro/

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Iuri Buscácio

Leitor voraz de filosofia, teatro, literatura brasileira e estrangeira, suspense, e de romances históricos, de fantasia e ficção científica, além de ser fã de quadrinhos americanos e europeus, desde os tempos da saudosa Ebal, amante do cinema e das séries, e também um grande entusiasta e pesquisador dos jogos de tabuleiro, tanto clássicos quanto modernos, cuja trilha sonora é o bom samba, a MPB de qualidade, black music e música pop dos anos 70 e 80.

1 thought on “A Industrialização Tardia e o Mercado Nacional de Jogos

  1. que historia legal essa do inicio dos jogos no Brasil ate a questao do cimento foi interessante de ler

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