Batman vs Superman Parte I – Frank Miller subverte o Batman e muda seu status
Para começarmos nossa análise, temos que primeiro entender porque existem pessoas que acham possível um humano “normal” como o Bruce Wayne derrotar o personagem não-entidade mais poderoso da DC em uma luta corporal… algo que a lógica deveria refutar imediatamente. Afinal, como alguém que é nada mais que uma pessoa sem poderes, com uma fantasia de morcego, (ainda que muito inteligente e cheio de equipamentos) pode derrotar um oponente veloz como o Flash, mais forte que o Hulk ou o Thor, invulnerável como a Mulher-Maravilha e que ainda conta com a visão de calor e também audição, visão e outras habilidades em escalas super-humanas?
O maior responsável (mas não o único) por muita gente acreditar que o Batman pode derrotar o Superman em uma luta é o roteirista Frank Miller, autor de grandes obras dos comics, como Batman – Ano Um, 300 de Esparta, Demolidor – A Queda de Murdock e Sin City.
Além destas, Miller também foi o autor daquela que se tornou a história “definitiva” do Batman, e que é a que nos importa nesta análise: O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight Returns – 1986 – DC Comics), a narrativa que, podemos dizer, o definiu como personagem desde então e até os dias atuais, e o transformou no super-herói mais popular da editora.
A história O Cavaleiro das Trevas, também conhecida pela sigla “DK”, é considerada por muitos, ao lado de Watchmen (Watchmen – 1986/1987 – DC Comics) e V de Vingança (V for Vendetta – 1982/1988 – Quality Comics e DC Comics), ambas de Allan Moore, como o tripé da mudança do conceito geral que se tem das histórias em quadrinhos, antes consideradas “coisas de criança”, mas que, a partir do sucesso de público e crítica destas graphic novels, passaram a ser respeitadas como literatura de verdade (alguns críticos e estudiosos colocam Maus, de Art Spiegelman, no lugar de V de Vingança, como integrante deste tripé).
Em DK (que foi uma elseworld, uma história que não é considerada na cronologia oficial, como se ocorresse em um universo paralelo) vemos um Batman envelhecido e então aposentado, voltando à ativa em um mundo diferente daquele em que nos habituamos como leitores, com os heróis todos inativos por força de lei, com exceção do Superman, que passou a atuar ao lado do governo dos Estados Unidos.
Nesse cenário, um Bruce Wayne amargurado e carente de ação e emoção volta a vestir seu uniforme para combater a alta criminalidade em Gothan. A volta do Cavaleiro das Trevas (alcunha do super-herói que dá título à obra) traz também de volta antigos vilões e mexe com o imaginário da população dos EUA.
Por infringir a legislação que extinguiu a atividade dos super-heróis, Batman passa a ser considerado um fora-da-lei, e no fim da história a Casa Branca manda o Superman para tirar o Homem-Morcego das ruas, de modo que os dois acabam confrontando-se violentamente, com o Batman saindo “vitorioso” (na visão dos seus fãs), usando kryptonita e uma armadura feita especialmente para o embate.
Como foi essa luta que estabeleceu a idéia geral do resultado de um confronto entre os dois personagens, então é necessário entendermos a maneira como Frank Miller pensa e escreve, para podermos analisar sua narrativa da batalha, já que foi sua visão que moldou o conceito que desde então a maioria das pessoas têm para enxergar o Batman e sua maneira de lidar com o Superman – e o “vencer” – em uma luta.
A primeira coisa importante de se citar é que nosso querido Frank Miller mostrou, anos depois, ao se manifestar sobre o movimento Occupy Wal Street, que tem uma visão política radical quase extremista. O escritor é, na verdade, um libertarian, ou seja, não é exatamente direitista, mas tem uma ideologia sociopolítica que é altamente contrária ao sistema, ao governo estabelecido, contrária ao que julga um excesso de leis e regulamentações, altamente anti-comunista/socialista (no sentido de coletividade de direitos e de supervisão estatal).
(lembrando que as definições de direita e esquerda nos EUA não são exatamente iguais às do Brasil, por exemplo, da mesma maneira como a ideologia libertarian não é igual ao “liberalismo” brasileiro, para o qual sequer há uma definição aceita por todas as ideologias políticas do país, assim como por todos os cientistas políticos).
A ideologia do libertarianismo americano prega principalmente o fortalecimento das liberdades individuais dos cidadãos e o combate à regulamentação estatal, e aceita o uso da força, quando necessário, para que se atinjam esses objetivos. Muitos de seus militantes acabam pregando também conceitos que se aproximam de xenofobia, intolerância e discriminação. Os libertarians, claro, são politicamente muito ligados aos republicanos e são bastante influentes junto a estes, além de serem basicamente antípodos dos democratas.
Sob essa ótica, portanto, fica mais fácil ver como o intolerante Miller caracterizou seus personagens conforme suas visões ideológicas e político-partidárias: Batman é o próprio Miller… é contra o sistema, é revolucionário e individualista e seus macro-objetivos visam diminuir o controle do Estado sobre os cidadãos. Batman é libertarian… Já Superman, na visão do escritor, é um democrata convicto, amigo do sistema, guardião do american way of life no sentido mais institucional (porém menos patriótico e capitalista) que este pode ter, mais regulamentado e menos individualizado. É o “escoteiro”, como o personagem é descrito por quem o acha certinho demais. É, portanto, o nêmezis ideológico do Homem-Morcego e do próprio roteirista.
Não se trata aqui, faz-se necessário dizer, de um caso de um ataque ad hominem, com o objetivo de desmoralizar o escritor para, assim, mostrar que aquilo que ele pensa é “errado”, e que, por conseguinte, sua visão das coisas são “erradas”, mas sim mostrar que suas ideologias políticas tiveram clara e total influência na história por ele criada.
Assim, fica mais fácil entender que, em uma batalha narrada por Frank Miller, com os personagens trazendo toda uma carga metafórica de ideologias políticas, o vencedor será aquele que representa o próprio escritor, de modo que ele usará os argumentos que forem necessários para que o Batman vença, não importa o quão (pouco) verossímeis sejam esses argumentos. Afinal, o roteirista tem o poder de escrever uma história como ele prefere que ela se desenrole.
Além da personificação política que o escritor imputou aos personagens, é muito bom lembrar que há também o componente tendencioso influenciando o roteiro: Frank Miller odeia o Superman. Não, isso não é uma suposição, o próprio autor já fez essa afirmação várias vezes. A última foi durante uma entrevista ao DC All Access, onde ele disse:
“Quem não odiaria um cara que pode voar… que é amado por todos… que pode ter todas as coisas. Claro que eu iria preferir o mais ‘fraco’.”
Ou seja, além de ver no Batman uma representatividade de ideologia política que lhe atrai mais, o escritor ainda tem problemas com a virtuosidade do Superman, um comportamento psicológico recorrente e muito comum (veja aqui o motivo).
E agora vamos ver como o renomado Miller fez para que seu Cruzado Encapuzado passasse a ter a imagem de que o Morcego desfruta até os dias atuais, apesar de não ter sido o libertarian quem transformou de fato o Batman no que ele é hoje, já que Denny O’Neil foi quem primeiro passou a retratar, ainda nos anos 1970, o alter ego de Bruce Wayne como alguém mais implacável e sombrio, em uma resposta (editorialmente necessária) à infantilização que o Homem-Morcego havia sofrido com sua lamentável série de TV estrelada por Adam West.
Miller apenas adotou o conceito iniciado por O´Neil, o reforçou e contou com uma época em que as HQs eram muito mais mainstream do que duas décadas antes, de modo que o alcance de sua obra foi muito maior, assim como a repercussão foi surpreendente para uma revista de história em quadrinhos, para os padrões de então.
O que Frank de fato fez por si só foi transformar o Batman em algo muito maior do que ele é ou do que ele pode ser, como mero humano, ainda que seja um “super-herói”. Em DK, o ex-aposentado Bruce Wayne, mesmo velho e recém retornado ao combate ao crime, é capaz de façanhas musculares e acrobáticas dignas de um atleta olímpico no auge de sua forma, mesmo repetindo para si próprio o quanto está velho.
E para quem acha que a comparação feita acima, ou seja, com escalas do mundo real, não é válida, cito essa matéria onde Stan “The Man” Lee, o maior nome dos quadrinhos de heróis em todos os tempos (não necessariamente o melhor), não só concorda com essa comparação como a endossa. Lee sabe que toda a base de comparação de um leitor é sempre o mundo real, e sabe também que as situações fantásticas precisam da “suspensão da descrença” para serem aceitas, o que não ocorre com essa situação de O Cavaleiro das Trevas.
Essa dimensão exagerada do Batman não existia na DC antes desta obra, e foi bastante atenuada depois, nas revistas de linha, de modo que o Bruce Wayne extremamente “poderoso” que vemos na história de Miller é uma caracterização que pode ser considerada exagerada, mesmo para os padrões do Homem-Morcego, e mesmo considerando-se suas fases na Liga da Justiça dos anos 90 para a frente.
Além de dar ao personagem uma força conceitual que ele não tinha e não poderia ter, Miller ainda o deixou com características psicológicas – amparadas por um roteiro amplamente favorável – que fazem do Morcego um personagem muito atraente para nós, seu público alvo. O roteirista empregou inclusive algumas técnicas narrativas para trazer o leitor para o seu lado, dentre as quais manipulando a forma como a imprensa retratava os feitos do herói e a maneira como as decisões governamentais eram tomadas após determinados acontecimentos.
Nos momentos mais fascistas do personagem em DK, Miller ainda emprega recursos narrativos subliminares para justificar os atos brutais e psicóticos do Cruzado Encapuzado, mantendo o leitor ao seu lado, principalmente quando ele começa a destroçar impiedosamente – e literalmente – os criminosos que combate, e também para, posteriormente na história, assegurar a torcida do leitor pelo Morcego quanto este enfrentar o Superman.
Ao mostrar como o Azulão não consegue impedir um ato de guerra soviético, por exemplo, Miller passa um recado simples e direto de que o governo, o Estado, o establishment, não é capaz de manter a segurança da população, o que legitimaria as ações violentas do Batman (que está garantindo a segurança dos inocentes onde o governo não consegue fazê-lo). O escritor está mostrando ao leitor que seu herói soturno não só pode agir de forma implacável, como deve fazê-lo. A justiça oficial não funciona, então a justiça com as próprias mãos está avalizada.
Assim, notamos porque o leitor, o cidadão comum, identifica-se tanto com o Homem-Morcego nessa história, já que vê nele sua própria vontade de ir contra o governo, contra as leis que considera exageradas, contra o sistema que não o provém como deveria. É o cidadão que, cansado e revoltado com as mazelas dos seus governantes e a impunidade dos criminosos, apóia a pena de morte ou até – melhor ainda – a justiça informal, o linchamento do ladrão pego pela população e espancado até a morte. É a justiça inapelável, sem direito a recursos, regressão de regime e indultos, permitindo a vingança contra tudo o que aquele criminoso representa.
A mensagem é clara: “Nada de cobrar melhoras do Estado… vamos todos nós impor nossa visão particular de lei e justiça nas ruas, na prática, contra os que consideramos ‘errados’ da história”.
O estrago causado pela obra de Miller perpetuou-se no imaginário coletivo dos fãs do Homem-Morcego, que até hoje vêem na concepção do escritor a verdadeira faceta do Batman, mesmo com o personagem tendo sido humanizado novamente pela DC desde que O Cavaleiro das Trevas foi publicado e mesmo que essas características psicóticas e violentas não tenham sido incorporadas na linha regular de revistas do personagem, nem mesmo na época do lançamento de DK (que, lembremos, foi um elseworld).
Desde a publicação desta história, portanto, que – continuamente e cada vez com mais força – os leitores enxergam no Batman alguém identificável e familiar, alguém que eles “seriam” caso pudessem adotar uma identidade secreta de super-herói.
Pra que ser sempre tão correto, seguir as leis e os limites comumente aceitos pela ordem geral quando nos deparamos com crimes, se podemos suplantar as ações cerceadas pelos regulamentos, fazendo justiça com as próprias mãos e impondo a nossa visão de verdade e justiça acima da visão coletiva, quando esta não nos agrada?
É muito mais legal… não? É muito mais libertarian, pelo menos.
Confira nos links abaixo os demais capítulos deste estudo:
Parte I – Frank Miller subverte o Batman e muda seu status (lendo este)
Parte II – Liga da Justiça de Grant Morrison perpetua a distorção
Parte III – A DC diminui o Superman e aumenta o Batman
Parte IV – Por que a maioria gosta mais do Homem-Morcego
Parte V – Analisando a famosa batalha usada como modelo
Parte VI – Exemplos de lutas contra um Homem-de-Aço verossímil
Parte VII – O veredito é: essa luta tem uma vitória fácil e lógica
Ralph Luiz Solera
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Parabéns pelo seu trabalho nessa série de estudos, o “meio” precisa de mais abordagens desse gênero. Esse trabalho merece virar um livro. abraço!
Obrigado Isaías! Estamos pensando em transformar algumas coisas em livro… 🙂 Abraço!
Sempre gostei dessa historia e sempre achei mesmo a luta em DK meio forcada… agora finalmente entendi os motivos! Parabens pelo trabalho de pesquisa e estudo sobre o tema, nunca vi outro nem mesmo parecido. É dificil alguem analisar esses aspectos tao profundos em uma historia em quadrinhos… nem o UHQ fez algo assim. Estou impressionado. Nao conhecia esse site mas vire fã.
Obrigado, Jackson! Fico feliz quando gostam não apenas do texto em si, mas também do que está por trás dele. 🙂
Amigo, você é esquizofrênico? só esquizofrênicos confundem ficção com realidade. Naõ existe as verdadeiras capacidades do batman, por que o batman não existe. É impossível você querer limitar o que um personagem de ficção pode ou não fazer. A armadura que o batman usou em Cavaleiro das trevas é poderosa o suficiente pra equipara-lo com o Superman simples assim, por que é tão difícil entender isso, Batman usou um metal magico que lhe conferiu poder o suficiente pra enfrentar o Super. Ponto. Isso não é uma falha de roteiro, isso é apenas a FICÇÃO se manifestante, tanto Batman como Superman são SUPER-herois e suas capacidades são limitadas somente pela necessidade do roteiro. Outra coisa vá ler Cavaleiro das trevas pois o final não tem nada a ver com linchamento ou justiça com as próprias mãos, tem a ver com as pessoas se libertando do leviatã e percebendo que podem tomar as rédias da própria vida.
Interessante a maneira como você vê as coisas, Mateus. Quem pensa diferente de você então é ‘esquizofrênico’? As coisas não são assim, de verdade, sabia? Quanto a análise da HQ, caso você não saiba, desde que o mundo é mundo as pessoas analisam os personagens fictícios com base no lastro com a realidade. Pois é. Os autores das HQs também fazem isso, vide o Stan Lee. 🙂 A armadura não é mágica. Miller errou. Ponto. Outros tempos, outras preocupações com fidedignidade… normal. Pesquise um pouco sobre suspensão de descrença, plausibilidade no sci-fi e os assuntos pertinentes, e aí você talvez entenda do que estamos falando aqui (e em todos os sites do mundo que abordam esses assuntos), quando fazemos esse tipo de análise. E, Mateus, na boa, achar que depois disso tudo eu não teria lido DK chega a ser demais… rs… ah, pra finalizar, o Miller já declarou diversas vezes (Googla aí) que sim, ele usou preceitos políticos, libertarians e afins na HQ. 🙂
plin plin plin… #FanboyDetected… Mateus, apaga isso que ficou feiooooo
Mateus, vc sabe o que é esquizofrenia? kakakakakakakakaka primeiro descubra isso, depois vai chamar alguém de esquizofrênico!
Artigo bem interessante, mas engraçado é que vim parar neste blog atraves de um comentario de alguem num site, onde estava uma briga feia sobre este mesmo assunto, o artigo que me indicaram é o 5 achei tão interessante, pois assim como Frank Miller fez os leitores se sentirem representado no Batman, eu me sinto representado nestes artigos, por isso acho que terei uma tarde de leitura agradavel.
sempre opinei que o Frank Miller não consegue escrever o superman, com alguma qualidade, pois sempre que lia alguma historia dele escrita por ele, sempre deixa a desejar, e no DK e que mais me encomoda, o personagem é totalmente incoerente a si mesmo nesta representação, um Superman que chaga a cortar o braço do Oliver pra parar suas atividades, de maneira nenhuma lutaria da forma absurda que lutou, mostrando que ele era capaz de uma ação daquela pra fazer o que ele acha certo, mesmo contra um amigo de longa data, torna aquela luta final pelo menos a parte do superman uma inconsistencia enorme com o que o proprio autor nos mostrou que ele é capaz. passou toda luta advertindo o adversarioe com mais preocupação com o bem estar do adversario do que com a sua missão, mesmo ele tendo deixado bem claro ao presidente que Batman nunca se renderia
David, vc praticamente reproduziu partes da postagem que trata especificamente da luta em DK rs… como vc viu lá na parte 5, tudo que vc falou consta no texto. De fato, não faz sentido… mas foi proposital, o Miller dirigiu tudo para ter esse resultado, pois como mostrei, a história é nada mais que uma propaganda política, uma propaganda libertarian.
Batman sola… o resto eh mimimi
Gostei da análise. Por uma questão de concepção do que é ideologia é entendo que ela está em toda parte. Posso afirmar então que o que o autor (qualquer autor, de qualquer produção) coloca na sua produção está sempre embebido de ideologia. A diferença do Miller é que ele faz isso deliberadamente, sabe o que faz. Ele tem sua concepção de política bem identificável para que se prestar a analisar, como no caso aqui.
parabéns pela reflexão… vou ler o resto quando puder.
De fato, Davenir, é complicado pra um escritor se despir de suas preferências ideológicas, religiosas, políticas, etc, na hora de escrever algo tão autoral. Em alguns casos, nem há tentativa de separar as coisas… o Miller é um militante político ferrenho nos EUA, bastante intolerante e radical até… em DK, fez um verdadeiro manifesto libertarian. Isso não é necessariamente um problema, mas explica muitas coisas…