Análise: O primeiro grande clássico do cinema

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A sétima arte tem diversas obras clássicas feitas em seus primórdios, como Metrópolis de Fritz Lang, O Encouraçado Potekim de Sergei Eisenstein, Tempos Modernos de Charlie Chaplin e …E o Vento Levou de Victor Fleming, sendo que este marcou uma era em “antes e depois” no cinema, estabelecendo o ponto máximo da primeira grande fase do cinema falado.

Mas e o primeiro grande clássico feito para as telonas, qual foi?

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NascimentoUmaNacaoCartaz-300x300 Análise: O primeiro grande clássico do cinemaSegundo os especialistas, essa honra cabe a O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation), de D. W. Griffith, lançado em 1915.

O filme marca o início do domínio de Hollywood no mercado estadunidense e mundial de cinema, e é a primeira grande obra da sétima arte a conseguir influenciar escolas de direção subseqüentes com seu estilo e técnicas, bem como foi o primeiro grande filme capaz de gerar controvérsia e polêmica desde seu lançamento, conseguindo a proeza até de ser banido em alguns países.

Essa gama de características, inclusive, já mostra a complexidade da obra em si, já que mesmo sendo notável do ponto de vista técnico, é eticamente condenável – pelo menos para a maioria esmagadora dos seus críticos e espectadores – em termos de ideologia e argumento.

O Nascimento de uma Nação é basicamente um romance passado durante a Guerra Civil americana, quando duas famílias se vêem separadas pelos conflitos da época, e o drama é potencializado pela paixão impossível nutrida por um integrante de cada uma das famílias – uma do sul e outra do norte, ou seja, “inimigas” por causa da guerra.

O problema do filme é que ele é assumidamente racista, atribuindo aos negros basicamente “todos os problemas dos EUA” durante a guerra e após o fim do conflito, chegando ao ponto de retratar a Ku Klux Klan como salvadora da nação. Já no início da obra, um letreiro abre o longa com os dizeres “A vinda dos africanos para a América plantou a primeira semente de desunião”.

Apesar da visão distorcida dos eventos da Guerra de Secessão, nas quais o exército nortista fora retratado basicamente como “vilão”, composto quase que em maioria por “negros maus”, enquanto que os “mocinhos” do sul – donos das fazendas de algodão – possuíam os negros bonzinhos, que jamais questionavam seus donos, Griffith conseguiu fazer uma obra fantástica e inovadora em termos técnicos.

O Nascimento de uma Nação é o grande responsável pela introdução das modernas noções de cinematografia que passaram a ser adotadas como padrão desde então – e que foram celebradas em Cidadão Kane, de Orson Welles, anos depois. A montagem, os planos, a edição mais ágil e compatível com o gênero e até com as sequências mostradas, o uso da trilha sonora de forma orgânica e atrelada às cenas (e não mais apenas uma música acompanhando o filme) são algumas dessas técnicas que Griffith ou implementou ou modernizou com o longa.

Marcelo Ribeiro, do Incinerrante, dá mais detalhes sobre algumas das novidades técnicas do filme:

A narrativa está longe de depender dos letreiros e não se deixa reduzir ao chamado ‘teatro filmado’. A montagem costura as cenas em que se pode dividir a trama, intercalando imagens e letreiros, sempre ao som da música original, definindo a linearidade da narrativa, com o auxílio das informações escritas dos letreiros e das informações sonoras da música. A trama da montagem linear orienta o espectador com as informações importantes para a construção da fábula e mascara a descontinuidade generalizada que define o processo de produção de um filme.

Além disso, a montagem divide internamente as cenas. Em vez de mostrar um plano geral em que toda a ação se desenrola, Griffith opera o que se costuma chamar de decupagem da ação, configurando a montagem analítica.

A estrutura clássica de cada sequência de planos – o equivalente cinematográfico da cena teatral como conjunto integrado de unidades dramáticas – pode ser descrita como um esquema que (1) começa pela apresentação do espaço da ação em um plano geral, (2) passa a uma série variável de planos intermediários mais aproximados (incluindo closes dramáticos que Griffith maneja com eficácia) e (3) volta ao plano geral sempre que há alguma alteração significativa na disposição dos personagens, por exemplo, até (4) o encerramento da sequência, seja num plano geral que condensa elementos significativos da ação transcorrida, seja num plano aproximado que enfatiza um ou outro aspecto mais relevante para o andamento da narrativa. Griffith utiliza a montagem para dispor em sequência na tela ações que acontecem simultaneamente e em espaços diferentes na narrativa. A montagem alternada ou paralela permite representar, de forma articulada, eventos que ocorrem dentro e fora de uma casa ou em cidades e locais diferentes, configurando, no cinema, um equivalente do “enquanto isso” da linguagem verbal.

Por fim, a montagem permite a realização de inserções das mais diversas informações que a escala convencional de planos não permite mostrar aos espectadores, como cartas e jornais lidos pelos personagens, ou representações de lembranças e recapitulações de acontecimentos do passado (flashbacks).”

O resultado foi controverso justamente pela mescla de conceitos inerentes à obra. De um lado o apuro e a inovação técnica e a genialidade de Griffith como cineasta – tido como “pai do cinema” por gênios da sétima arte do calibre de Charlie Chaplin, Sergei Eisenstein e o próprio Orson Welles, servindo ainda de inspiração para diversos outros grandes diretores das décadas seguintes. Do outro lado, no entanto, a visão discriminatória, racista e preconceituosa da história – que chega a ser extremamente caricata na exposição dos estereótipos dos personagens e dos povos.

Os dois lados dessa moeda em uma época efervescente em termos culturais e sociais fez do filme o maior sucesso de bilheteria do cinema até então e mudou o pólo do domínio cinematográfico da Europa para Hollywood, em um caminho nunca mais revertido.

O próprio público-alvo do cinema mudou com O Nascimento de uma Nação: antes da obra, os espectadores das salas de projeção eram em sua maioria imigrantes pobres e operários, e a partir dele passou a contar também com a classe média e os burgueses, pois o “patamar dos filmes havia se elevado”, deixando de ser apenas uma obra áudio-visual exibida em meio a outras atrações nas casas de espetáculo para ser uma autêntica “obra de arte”, protagonista principal das casas de exibição.

Outro fator que marcou o filme foi a influência em segmentos da sociedade americana – e, consequentemente, mundial – sob aspectos raciais e sociais mostrados no longa. Depois do filme, a Ku Klux Klan voltou a ganhar força em grupos racistas nos EUA e, em contrapartida, movimentos que lutavam por igualdades civis foram fundados ou cresceram como nunca antes, como a famosa NAACP (maior e mais antiga organização desse tipo), que chegou inclusive a conseguir que autoridades impedissem a exibição do filme em várias cidades importantes dos Estados Unidos.

O título do filme, inclusive, faz alusão ao nascimento dos EUA como nação do modo como a conhecemos hoje, inclusive com o sentimento segregacionista – que já foi bem maior e mais explícito. Para muitos, a Guerra Civil é o marco inicial dos Estados Unidos como nação moderna e também como noção de que o país é o lar de seres bons e brancos (uma visão que imperou por muitos anos).

O reconhecimento do valor técnico do filme – a despeito da crítica pela visão racista – colocou o nome de Griffith como um dos maiores do cinema no Século XX. Aliás, até 2000, ele estava no Hall da Fama da Directors Guild of America’s National Board, tendo sido retirado justamente pela conotação preconceituosa da obra (uma decisão bastante controversa, como o filme em si).

Por todos esses fatores, portanto, O Nascimento de uma Nação é o primeiro grande clássico do cinema moderno. Suas inovações técnicas influenciaram a sétima arte de modo que basicamente até os dias de hoje se utilizam os métodos de edição e principalmente montagem implementados pelo diretor D. W. Griffith. Trata-se da primeira grande polêmica envolvendo um filme no mundo todo e do primeiro grande sucesso comercial do cinema, que ali teve seu status alterado para uma arte comercial rentável e dirigida à todas as classes sociais. Por fim, o filme é considerado a “pedra fundamental” do cinema dos EUA e, principalmente, de Hollywood.

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Ralph Luiz Solera

Escritor e quadrinhista, pai de uma linda padawan, aprecia tanto Marvel quanto DC, tanto Star Wars quanto Star Trek, tanto o Coyote quanto o Papaléguas. Tem fé na escrita, pois a considera a maior invenção do Homem... depois do hot roll e do Van Halen, claro.

2 thoughts on “Análise: O primeiro grande clássico do cinema

  1. parabens pelo trabalho, trata-se de uma obra por poucos conhecida pelo caracter racista, mas ha que ser louvada pelos aspectos tecnicos que vc citou

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