Noite das Bruxas, representatividade equivocada e o dilema das adaptações literárias

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A literatura sempre foi uma das principais fontes do cinema, desde o seu início, mais de um século atrás, até os dias de hoje. Só que, em alguns casos, isso pode levar ao chamado “dilema das adaptações cinematográficas”. Há quem diga que existem tantos livros bons que nunca foram adaptados, que essa seria uma solução para a aparente crise de criatividade no cinema atual. Não seria preciso escrever novas histórias, apenas procurar por aquelas que valem a pena adaptar para a telona.

Obviamente, literatura e cinema são duas formas de arte distintas, com características distintas, limitações distintas e formas de ser distintas. Por isso, quando uma é criada a partir da outra, há que se fazer uma adaptação. Um filme que quisesse adaptar um livro com 400 páginas, incluindo cada palavra escrita teria uma duração absurda e totalmente inviável artística e economicamente. Justamente por conta disso é que se faz uma adaptação, ou seja, uma adequação de uma forma de arte para a outra.

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O problema é que muitas vezes as adaptações cinematográficas, de obras consagradas, tomam um caminho muito questionável. Isso ocorre por uma série de fatores, como atender a agenda política dos produtores, atender a demanda do mercado, atender o ego do diretor, etc.

Existem formas e formas de adaptar um livro para um filme, algumas mais fiéis e mais próximas e outras mais distantes. Quando um estúdio lança uma versão cinematográfica de um livro (que não seja apenas baseada) espera-se que ela seja a mais fiel possível. Assim, se a Warner anuncia uma versão do livro Harry Potter, o mínimo que se espera é que o protagonista seja um menino inglês, que viva em um mundo onde a magia existe, e que estude em um castelo na Inglaterra.

 

Harry-Potter-Poster-201x300 Noite das Bruxas, representatividade equivocada e o dilema das adaptações literárias

Imagem Google: Harry Potter da Warner

 

Mas existem obras cinematográficas cuja proposta não é fazer uma versão cinematográfica do livro, mas sim um filme baseado naquele livro. E é aí que mora o perigo, porque esse termo “baseado” dá margem tanto a ideias inovadoras quanto a verdadeiras deturpações.

Desse modo, alguns estúdios lançam o filme do livro XYZ, mas para atender esse ou aquele interesse, eles fazem mudanças tais, que a própria ideia da adaptação perde o sentido. Um exemplo claro disso é uma adaptação da “Branca de Neve e dos 7 anões”, em que a protagonista não seja branca e o filme não tenha anões. Se a questão é dar maior representatividade e não reforçar estereótipos negativos de quem sofre de nanismo, então obviamente a melhor escolha é considerar o clássico da Disney um filme com baixa representatividade e politicamente incorreto e não adaptar a obra de jeito nenhum. Nesse caso, que se escreva uma nova história, representativa e que não ofenda ninguém, e que se filme essa história.

Só que aí vem o outro lado da moeda, que é justamente o apelo que obras clássicas têm junto ao seu público cativo, especialmente os desenhos da Disney. Mesmo não sendo representativos, e nem politicamente corretos, além de objetificarem a mulher, o fato é que os filmes da Disney embalaram gerações de fãs no mundo inteiro. È possível dizer que esses filmes são racistas, que refletem valores de uma época ultrapassada e que são incompatíveis com os novos paradigmas sociais. Isso tudo está correto. Mas o que não se pode negar é que milhões de pessoas amam esses filmes e estão dispostas a assistir adaptações dessas histórias. E mesmo o cinema podendo gerar milhões de dólares, ele também é uma forma de arte muito cara, e põe cara nisso.

 

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Imagem Google: Branca de Neve de 1937

Por isso, é natural que os produtores procurem atrair a atenção, e o dinheiro, desses milhões de fãs das obras consagradas. Por outro lado, não há dúvida de que, atualmente, a Internet é o principal veículo de divulgação do que quer que seja. E a Internet propicia que algumas pessoas tenham um alcance totalmente desproporcional ao que elas realmente representam, tanto para um lado quanto para outro.

Recentemente, Brasil e EUA tiveram eleições vencidas por grupos de ultradireita, que chegaram ao poder baseados, principalmente, na força da Internet. Indo para o outro extremo, nós temos uma cultura woke, que é uma minoria, mas que faz muito barulho na Internet. Esse time da “lacração”, para os quais representatividade é praticamente uma religião (e está acima de tudo), tem uma influência desproporcional ao seu tamanho.

Na teoria, um “influenciador digital” apenas com um notebook e uma câmera, pode ser mais influente que todo um jornal de médio porte. Basta que esse influenciar digital tenha um número de seguidores significativo nas redes sociais. Claro que isso só ocorre na teoria, porque ninguém é ingênuo de achar que aquele influenciador digital, com milhões de seguidores é só ele, e não há toda uma equipe de profissionais por trás. Nem que tudo o que ele fala não segue um roteiro muito bem escrito e azeitadinho. Mas descontando isso, dá para entender o raciocínio a respeito da desproporcionalidade de influência na Internet.

Nesse cenário, muitos estúdios de cinema têm de procurar um equilíbrio entre agradar os fãs e ao mesmo tempo atender as reinvindicação da “galera antenada”. Como se não bastasse isso, os estúdios de cinema ainda precisam atender algumas demandas de mercado, para garantir o sucesso financeiro do filme.  O resultado é que muitas adaptações são verdadeiras bizarrices em que nada casa com nada.

 

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Imagem Google: “nova” Branca de Neve de 2024

Uma adaptação de um conto medieval de uma princesa germânica, em que a protagonista seja negra, ou não branca, atende o time da lacração, mas contraria a base de fãs. Se essa mesma adaptação mantiver uma protagonista branca, atende a base de fãs, mas chovem acusações de racismo, dos wokes. Além disso, qualquer das duas opções podem não agradar o mercado chinês e indiano, que concentram mais de um terço da população mundial. Atualmente, se o filme não fizer sucesso na China, dificilmente ele tem uma bilheteria como os estúdios esperam. Um exemplo disso foi o último Indiana Jones, que passou em brancas nuvens na China, e teve uma bilheteria muito abaixo do esperado.

Outro grande exemplo disso são as adaptações dos livros de Agatha Christie, feitas pelo ator/diretor irlandês Kenneth Branagh. Qualquer pessoa que já tenha lido algum livro da escritora inglesa, com seu principal personagem, Poirot, sabe descrever o famoso detetive belga. Ele é um dândi afetado, amante do conforto, com gosto refinado para roupas e culinária, ego gigantesco, que resolve seus casos exclusivamente através do raciocínio. Além disso, Hercule Poirot é baixo, calvo, obeso, e dono de um bigode formidável, e discretíssimo em assuntos pessoais.

Ocorre que em seus filmes, o Hercule Poirot de Kenneth Branagh é quase que diametralmente oposto a isso. Nessas adaptações, o Poirot é alto, magro, com vasta cabeleira, dado a verdadeiras proezas físicas, sem nenhuma finesse, nem apreço pelo bem estar. Para coroar ele ostenta um bigode tão ridiculamente exagerado que mal deixa espaço para se prestar atenção ao trabalho do ator.

Curiosamente as duas adaptações de Kennet Branagh são da 20th Century Fox, uma subsidiária da Disney, que nos últimos anos foi muito criticada pelo revisionismo de suas obras clássicas, apenas para atender a cultura woke.

 

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Imagem Google: Comparativos de Bigodes das personificações de Poirot

 

Até agora, o Poirot de Branagh já saiu no sopapo, andou no teto de um trem, deu tiros para o alto para chamar a atenção, correu atrás de criminosos em um barco e pelas ruas de Jerusalém, flertou descaradamente com uma suspeita e ainda sujou deliberadamente um sapato de bosta de cavalo só para combinar com outro pé. Absolutamente nada disso combina com uma frase que seja sobre o personagem, nos livros.

Mesmo a explicação sem pé nem cabeça para o tamanho do bigode não faz sentido. Isso porque, o incidente que alegadamente levou Poirot a deixar crescer o bigode, de um ponto de vista anatômico, seria justamente o que o impediria de ter um bigode, ainda mais um daquele tamanho. Isso para não falar que essa explicação é não apenas desnecessária, como também não consta em nenhum dos livros.

Outro equívoco fundamental é que o Poirot de Agatha Christie tem uma figura que as pessoas nem sempre levam a sério. Isso se deve principalmente ao seu físico que não impressiona ninguém à primeira vista. Só depois que as investigações começam é que as pessoas percebem o verdadeiro colosso que é Poirot. Isso está presente em diversos livros, a começar pela confusão que os ingleses fazem, achando que ele é francês e não belga. Na contramão disso, Branagh cria um Poirot intimidador e imponente desde o primeiro momento.

A caracterização de Poirot também peca em um aspecto fundamental, presente em todos os bons livros de Agatha Christie. Em todos eles, principalmente Assassinato no Expresso do Oriente e Morte no Nilo, as pistas são dadas de bandeja para o leitor. No clímax final, Poirot reúne os suspeitos e vai encaixando essas pistas uma a uma, o que deixa as pessoas surpresas de como elas não repararam naquilo.

 

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Imagem Google: Assassinato no Expresso do Oriente

 

Portanto, as deduções são construídas milimetricamente, passo a passo. Só que isso depende de muita conversa, de muito diálogo, e o público atual de cinema está mais interessado em ação. Com isso, essas novas adaptações sacrificam a narrativa para encaixar a ação, o que faz com que as deduções surjam do nada, perdendo um dos principais atrativos das obras de Agatha Christie.

No caso da representatividade forçada, as adaptações de Kenneth Branagh também não fazem sentido algum. Seguindo uma cartilha muito em voga atualmente no cinema, qualquer filme com mais de quatro personagens tem de ser racialmente representativo, mesmo quando isso é um total contrassenso.

Em “Assassinato no Expresso do Oriente”, o secretário da vítima que originalmente era italiano se tornou latino e o mesmo ocorreu com a personagem sueca. Na versão de 1974 esse papel foi interpretado, magistralmente, por Ingrid Bergman que recebeu o Oscar de Melhor Atriz pela atuação. Na nova versão a personagem passou a ser a espanhola Pilar Estravados, abrindo espaço para Penélope Cruz. Curiosamente essa personagem Pilar é de outro livro “O Natal de Poirot”.

E a coisa não para por aí, afinal de contas Kenneth Branagh quer fazer crer que seria permitido a um negro, viajar na primeira classe de um dos trens mais aristocráticos da Europa dos anos 30. Isso não é representatividade, isso é simplesmente ignorar por completo o quão racista era a Europa nessa época. A possibilidade de um negro conseguir se formar em medicina na Inglaterra dos anos 30, era ínfima, e partilhar um vagão de trem com brancos é praticamente nula. Imaginar que ele ainda teria um caso com uma mulher branca, então nem se fala. Se isso hoje em dia ainda é visto com reservas, dá para imaginar com eram as coisas quase 100 anos atrás.

 

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Imagem Google: Morte no Nilo

 

O mesmo acontece em “Morte no Nilo”. Como não havia modo de incluir personagens negras na trama, Kenneth Branagh inclui uma superstar da música e sua filha. Desnecessário dizer que essas personagens foram inventadas, pois não existem no livro. O resultado é que a inclusão das duas personagens ficou ainda mais forçada que o médico negro de “Assassinato no Expresso do Oriente”. Mais forçada ainda, foi a explicação de que a sobrinha da música havia estudado junto com a herdeira riquíssima, no mesmo colégio interno. Quando se fala de racismo, normalmente se fala nos EUA. O que não se fala, porém, é que as potências coloniais europeias (Reino Unido, França, Espanha, Alemanha, Bélgica, Holanda) eram muito mais racistas, e continuam extremamente racistas até hoje. Basta ver o que sofrem, hoje em dia, os jogadores negros de futebol, nos times europeus.

Na Inglaterra do início do século XX era quase impossível um “não branco”, até mesmo imigrar para lá. Basta citar os decretos Aliens Order de 1920 e o decreto Special Restritcion Order de 1925, que na pratica sancionavam o racismo. Mesmo o Education Act de 1944, que reformou a educação britânica considerava os “não brancos” intelectualmente inferiores e por isso estabeleciam uma “educação especial” leia-se segregada para eles.  A Inglaterra só veio a ter leis efetivamente proibindo a segregação em 1965. Assim sendo, no início do século XX, uma negra não seria aceita, nem mesmo como faxineira em uma escola de elite, muito menos como aluna.

No caso da personagem da mãe ainda é mais forçado o seu envolvimento romântico com Poirot, com forma de tentar arrumar espaço para ela na história. Poirot sempre foi um personagem discretíssimo em questões pessoais, e até onde se sabe, nada é dito sobre seus eventuais romances, nos livros.

 

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Imagem Google: Ingrid Bergman, Assassinato no Expresso do Oriente de 1974

 

Mas na visão de Kenneth Branagh, Poirot é um galanteador, capaz de flertar inclusive com uma suspeita de um crime. A impressão que fica é que Kenneth Branagh tem de deixar muito claro e provar a todos que Poirot é não apenas inquestionavelmente heterossexual, como também um “garanhão”.

Isso inclusive não combina com a representatividade e o progressismo defendidos com unhas e dentes nas duas adaptações. De um lado há uma preocupação de que o elenco não fique “branco demais”, mesmo que nos livros sejam assim. Mas do outro lado, o Poirot que é um personagem no mínimo “afetado”, nos livros, nas adaptações tem de adotar uma postura “macho alfa”. Isso é outra coisa que não faz sentido algum.

Para evitar uma eventual acusação infundada de “racismo disfarçado” neste artigo, é importante esclarecer alguns pontos. Não é a presença de personagens negros que incomoda. O que incomoda é que eles são incluídos nos dois filmes de forma totalmente artificial. As pessoas pensam que isso é representatividade só porque os elencos têm pessoas “não brancas”, mas isso é uma ilusão.

Se os filmes não vão ser fiéis aos livros, e tomarão certas “liberdades criativas”, cabem algumas perguntas interessantes, referentes à representatividade. Porque motivo não é Letitia Wright, ao invés de Gal Gadot, que faz o papel principal da herdeira Linnet Ridgeway, em “Morte no Nilo”? Se era preciso um rosto conhecido poderiam ter escalado Lupita Nyong’o, muito melhor atriz que Gal Gadot diga-se de passagem.

 

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Imagem Google: Sophie Okonedo, Letitia Wright e Gal Gadot

 

No mesmo sentido porque os personagens “Simon Doyle” ou “Jaqueline de Bellefort”  não são interpretados por artistas negros, ou asiáticos? Porque o personagem de Johnny Deep não foi feito por Idris Elba? Indo além, porque o próprio Poirot não é negro? Se não é para respeitar a etnia dos demais personagens, não há motivo para respeitar a etnia do Poirot. Só que aí é claro, Kennet Branagh não poderia fazer o papel.

Por isso, o que alguns enxergam como representatividade, na verdade são apenas papéis secundários, uma espécie de “cala-boca”, para a militância negra não reclamar (olha lá, nós temos atores negros!!!). Isso ainda tem o problema de revisionar e relativizar o passado, ao tentar convencer o público que a sociedade europeia do início do século XX não era tão racista assim, quando na verdade ela não só era, como ainda é, muito racista. Portanto, essa pretensa “representatividade”, na prática não passa de uma ilusão, que não contribui em nada, na busca por um cinema mais representativo de verdade.

Assim, aqui funciona o mesmo que com os desenhos clássicos da Disney. Em outras palavras, se para agradar ao público moderno é preciso desvirtuar o personagem, e transformá-lo em um “Jason Bourne” dos anos 30, então o melhor seria procurar alguma outra história para adaptar e deixar o Poirot quietinho nos livros dele, onde ele fica muito bem, por sinal.

Ainda em relação ao elenco, “Morte no Nilo” faz um verdadeiro salseiro com os personagens originais. Um personagem é misturado com outro para criar um terceiro que não existe no livro, e criar relações com a herdeira que também não existem. Essa mudança que deveria deixar a trama mais simples tem o efeito oposto e tudo fica muito confuso e sem sentido.

 

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Imagem Google: Poirot “Bourne” de arma em punho

 

A impressão que fica é que todos precisavam de uma desculpa para estarem no barco, o que leva a explicações muito inverossímeis. A trama original é muito melhor nesse sentido e seria melhor mantê-la inalterada, como ocorreu na versão de 1978.

Para piorar, a primeira parte do filme é muito arrastada e desnecessariamente longa. A culpa disso é o bigode monstruoso que Kenneth Branagh usa na composição do Poirot. Em Assassinato no Expresso do Oriente o bigode ficou tão exagerado que inclusive virou motivo de chacota, e deu ao filme um tom quase caricato. Para resolver o problema, ao invés de diminuir o bigode para o segundo filme, o que seria mais simples e eficaz, Kenneth Branagh cria uma narrativa sem pé nem cabeça, para justificar o exagero. Isso prolonga a primeira parte de Morte No Nilo, que já era grande demais e arrastada demais.

Outro problema foi a escalação de Gal Gadot, que sendo um rosto mais conhecido que os demais, precisa ter mais tempo de tela, para justificar sua presença e o alto salário pago. Juntando esses dois problemas, a parte da investigação que é o que interessa, só começa quase na metade do filme, e acaba prejudicada e corrida por conta disso. O resultado é que Morte no Nilo demora a deslanchar e quando deslancha tudo acontece rápido demais.

E isso nem é uma questão de opinião pessoal, porque muitos críticos na internet dizem exatamente a mesma coisa. As adaptações de Kenneth Branagh têm notas bem medianas, em alguns dos principais sites de filmes. Assassinato no Expresso do Oriente obteve notas 6,5, 61% e 52, nos sites IMDB, Rotten Tomatoes e Metacritic. Já no caso do “Morte no Nilo”, as notas foram 6,3, 62% e 52, nos mesmos sites.

 

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Imagem Google: Noite das Bruxas 2023

 

Agora chegou a mais nova peripécia de Kenneth Branagh (disponível nos cinemas brasileiros em 14/09/2023), um filme apenas inspirado no livro “Noite das Bruxas”. Nesse caso, a trama, que originalmente se passa em uma comemoração de halloween na Inglaterra, é transportada para Veneza. Para piorar, tomando como base o trailer, o enredo envolve uma sessão espírita que dá errado, dando ao filme toques de terror barato. Todo tipo de clichê está lá (médium com voz infantil, criança aparecendo no espelho depois sumindo, personagem perguntando com quem o outro está falando, cadeira girando sozinha, porta batendo, etc). Esses elementos são totalmente incompatíveis com o material original.

Isso seria algo como transformar a série Sexta-Feira 13 em uma comédia romântica, com um Jason pacifista. Imagina um cineasta resolver fazer um filme inspirado no romance “ O Poderoso Chefão” de Mario Puzzo. Só que como filme de mafioso italiano já não está tão na moda, o diretor resolve mudar o gênero e fazer um filme de ação. Não contente, ele ainda muda o cenário para o leste Europeu, e ao invés do chefe de uma família mafiosa italiana, o “novo” chefão é o líder de uma gang que explora o tráfico internacional de armas. Assim, “Don Corleonov” se envolve em perseguições de carro, muitas explosões, e munido de fuzil junto com seus amigos sai distribuindo tiro para todo lado. Pode até ficar legal, mas obviamente isso não tem nada a ver com o material original que serviu de inspiração, fracassando totalmente, nesse aspecto.

Vamos torcer para que essa cena do espiritismo seja apenas um recorte, preferencialmente pequeno, da adaptação. Porém, levando em conta o retrospecto das duas outras adaptações dos livros da Agatha Christie, não será de espantar, se esse novo “Noite das Bruxas” for mais uma série de equívocos e escolhas lamentáveis.

 

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Imagem Google: Jiló com Morango

 

Não é uma questão de ser contra novas abordagens, mas mesmo as inovações e experimentações têm de ter um mínimo de coerência. Ninguém cogita seriamente, ter sucesso fazendo um suco misturando jiló com morango, só porque é algo inédito e ninguém nunca fez. Alguém pode até tentar essa mistura esdrúxula, mas a chance disso funcionar é mínima, dada a incompatibilidade dos ingredientes.

Também é possível dizer que esse novo filme, diferente dos anteriores, não é uma adaptação do livro, mas apenas inspirado nele. Basta dizer que o título original do filme é “A Haunting in Venice”, e do livro “Hallowen’s Party”. Só que isso deve causar ainda mais medo aos fãs de Agatha Christie. Se Kenneth Branagh faz alternações inúmeras e profundas em adaptações, que em tese deveriam ser fiéis ao material original, só Deus sabe o que ele não fará, em um filme apenas inspirado.

Não dá para fazer um filme adaptado/inspirado em “Don Quixote”, sendo ele o escudeiro e Sancho Pança o cavaleiro. Também não dá para fazer um filme adaptado/inspirado em “Romeu e Julieta” e terminar com os dois tendo um final feliz. Nem tampouco dá para fazer um filme adaptado/inspirado em “Os Três Mosqueteiros”, colocando Athos, Porthos, Aramis, Dartagnan e mais dois mosquereiros.

Se a ideia é ficar distante do livro, mudando até seu gênero, não faz sentido aproveitar o personagem Poirot, em uma história tão distinta. Só que aí o filme não fica tão atraente do ponto de vista comercial. Provavelmente a enorme legião de fãs de Agatha Christie não quer ver um filme de terror com Poirot, como parece ser o caso. O que se espera é uma história de mistério (não levar sustos um atrás do outro), com um “plot twist” fantástico, no final. Exatamente como acontece nos livros.

 

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Imagem Google: Livros que poderiam ser adaptados para o cinema

 

E isso para não falar da quantidade de bons livros de Agatha Christie que nunca tiveram adaptações à altura, ou cujas adaptações foram ruins. Em se tratando de Agatha Christie não é preciso inventar, nem reescrever nada, e material original é o que não falta. São livros do naipe de “Cartas na Mesa”, “Morte na Mesopotâmia”, “Tragédia em Três Atos”, “Porque não Pediram a Evans?”, “Elefantes não Esquecem” e “Os Cinco Porquinhos”. Alguns desses livros até foram adaptados(de forma séria e mais fiel), na série Poirot da BBC, com David Suchet em performance fenomenal.

Entretanto tais adaptações apesar de muito boas, são produções para a TV, dos anos 90 e 2000, muito antes do esquema “Netflix de cinema”. Portanto, elas nem de longe contavam com os recursos financeiros e tecnológicos do cinema atual. Porém, a série tinha uma equipe comprometida a fazer uma adaptação de boa qualidade e, principalmente, fiel aos livros, de modo a agradar aos fãs. Por isso, guardadas as devidas proporções, os episódios de maior porte (90 a 120 minutos) são superiores aos filmes de Kenneth Branagh.

Por uma questão de honestidade e transparência é preciso considerar que essa análise se baseia naquilo que aparece no trailer. Porém, além da crítica ser mais à abordagem de Kenneth Branagh do que especificamente ao “A Hauting in Venice”, como dito anteriormente, o retrospecto do diretor e o trailer do filme indicam fortemente que o material original será muito desvirtuado.

Pelo menos do ponto de vista técnico, aparentemente Kenneth Branagh parece que recobrou algum juízo. “Assassinato no Expresso do Oriente” é um filme belíssimo, tem uma direção de arte sensacional, e o cenáro e tomadas aéreas são excelentes. Tudo isso se perdeu em “Morte no Nilo”, que abusa do CGI e boa parte foi filmado em estúdio.

 

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Imagem Google: Locações reais de “Morte Sobre o Nilo” de 1978

 

A versão de “Morte no Nilo” de 1978, filmada em locações no Egito, mesmo com toda a limitação da época é muito superior nesse aspecto e parece mais autêntica. Nesse aspecto dá para dar algum desconto por conta da pandemia. Mas só nisso porque a pandemia não interferiu na escalação dos atores e nos furos do roteiro. O “A Hauting in Venice” voltou a ter principalmente locações reais, o que é um ponto positivo. Assim é só rezar para que esse não seja o único.

Outra coisa positiva que se pode dizer sobre os filmes, é que, eles renovaram o interesse das novas gerações pela obra de Agatha Christie, inquestionavelmente. Isso é muito importante, apesar dos inúmeros e profundos equívocos. Só é uma desilusão, quando o sujeito sai empolgado do cinema, pega os livros para ler, ou resolve assistir os filmes dos anos 70, ou a série Poirot e vê que elas são muito melhores. Sem os filmes atuais, certamente muitas pessoas, principalmente as mais jovens, talvez nunca se interessassem pela “Rainha do Crime”, o que seria uma pena. Desse modo, mesmo muito inferiores, os filmes de Kenneth Branagh cumprem o seu papel, apesar da sua forma canhestra e questionável.

O material original é um dos motivos das pessoas que ainda não conheciam nem os livros nem os filmes anteriores, gostarem tanto dessas novas adaptações. Não são os filmes de Kennet Branagh que são bons, são os livros de Agatha Christie que são fenomenais. Assassinato no Expresso do Oriente e Morte no Nilo estão entre os melhores livros da autora e, pelo conjunto da obra, isso diz muita coisa.

Por isso, mesmo com falhas evidentes, e fugindo da matéria prima, as adaptações com um mínimo de qualidade acabam agradando, mesmo com essas ressalvas.

 

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Imagem Google: Poirot de David Suchet

 

 

Para quem conheceu Agatha Christie agora, recomenda-se obviamente a leitura dos livros, em primeiro lugar. E para quem prefere cinema, existem adaptações que são excelentes. Entre as boas adaptações merecem destaque “Testemunha de Acusação” de 1957, Tem Little Indians de 1965, “Assassinato no Expresso do Oriente” de 1974, “Morte no Nilo” de 1978, “A Maldição do Espelho” de 1980 “Assassinato num Dia de Sol” de 1982, “Encontro Marcado com a Morte” de 1988, e “A Casa Torta” de 2017.

Existe também a excelente série “Poirot” com David Suchet, para muitos a melhor personificação de Poirot ( https://www.imdb.com/title/tt0094525/?ref_=nv_sr_srsg_0_tt_7_nm_1_q_poirot). Outro destaque sãos as mini-séries Miss Marple com Joan Hickison, e a série Agatha Christie’s Miss Marple, com Geraldine McEwan e Julia McKenzie. Ambas variam bastante na qualidade, tendo momentos bons e outros nem tanto, mas no geral vale a pena. Fora esses, existem diversas outras adaptações, principalmente filmes direto para a TV e produções de outros países em especial a Alemanha, com os mais variados resultados.

Por outro lado existem adaptações muito ruins, que se deve evitar a todo custo, como “Punição para a Inocência” de 1984, “Treze à Mesa” de 1985, “Dead Man’s Folly” de 1986, “Assassinato em Três Atos” de 1986, “O Caso dos 10 Negrinhos” de 1989, e “Assassinato no Expresso do Oriente” de 2001.

Por fim, o elenco estelar de Assassinato no Expresso do Oriente de 2017 (Judy Dench, Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz, Willem Dafoe, Johnny Deep) acabou servindo apenas como meros “enfeites” para que a estrela maior Kenneth Branagh (naturalmente) pudesse brilhar. Os elencos de “Morte no Nilo” e “A Hauting in Venice” são bem menos “estelares”. Isso só demonstra que pelo menos uma coisa o “novo” Hercule Poirot e Kenneth Branagh têm igualmente superlativo: o ego.

 

Um forte abraço e boas jogatinas!

 

Iuri Buscácio

 

P.S. Impressões após assistir o filme

 

Depois de muita insistência de amigos, acabei assistindo o filme, e só posso dizer que o resultado é, no mínimo lamentável. Dessa vez Kenneth Branagh resolveu se afastar mais do material original, e fez um filme, que os créditos indicam ser baseado no livro Noite das Bruxas. Sinceramente nem sei porque ele se deu ao trabalho porque a história não tem absolutamente nada a ver com o livro. As únicas coisas em comum são a presença de Poirot, naturalmente, da personagem Ariadne Oliver (alter ego de Agatha Christie), e o fato da trama ocorrer no Halloween. E é só isso. Todo o resto é diferente, salvo talvez um breve referência à brincadeira de pegar a maçã no balde com os dentes, que tem destaque no livro.

 

O resultado é que o filme ficou “meio barro, meio tijolo”. Ele nem funciona como filme de terror, apesar de tentar com força. nem funciona como filme de mistério, muito menos um filme de Poirot. O filme é um amontoado de clichês, do mais baixo nível, e situações tão absurdas que são risíveis. Nisso o destaque vai para a médium repetindo exaustivamente “ouvindo, ouvindo”, e a explicação, de cair o queixo, sobre a máquina de escrever.

 

Mais uma vez Branagh deixa a sua marca registrada de ignorar quase que por completo o material original, principalmente na composição dos personagens. Dessa vez Poirot usa os serviços de um capanga, como guarda-costas, algo que nunca foi visto na extensa obra de Agatha Christie até esse filme. Do mesmo modo, a Ariadne Oliver de Tina Fey é diametralmente o oposto do que se vê nos livros. A escritora meio amalucada que é uma personagem leve e que serve até como certo alívio cômico, nos livros passou a ser uma pessoa inescrupulosa, manipuladora e absurdamente mais sombria.

 

Poirot-Yeoh-Fey-e-Branagh-Haunting-in-Venice-300x200 Noite das Bruxas, representatividade equivocada e o dilema das adaptações literárias

Imagem Google: Michelle Yeoh, Tina Fey, Kenneth Branagh e o bigode que deve ter até CPF próprio

 

Michelle Yeoh é outra que parece não saber o que está fazendo ali, de tão mal dirigida. Na mesma toada dos outros filmes, os demais personagens são totalmente modificados para criar relacionamentos com a vítima totalmente artificiais, sem sentido e forçados. Na resolução do caso, as conclusões surgem quase que do nada, e Poirot num passe de mágica passa de uma hora para outra a saber tudo. O filme até usa o recurso de mostrar flashbacks em preto em branco, para justificar conclusões absurdas. Só que uma análise mínima é suficiente para ver que isso não tem a mínima sustentação.

 

Desse modo, Kenneth Branagh literalmente destrói aquilo que as obras de Agatha Christie têm de melhor. Normalmente nos livros o enredo é bem amarrado e inteligente. Isso permite ao leitor, chegar ao final do livro e entender perfeitamente como Poirot chegou à solução. Ele enumera as pistas deixadas no decorrer da história, que os leitores normalmente ignoram,  e junta tudo em um todo coeso que faz sentido. Ao contrário disso Kenneth Branagh tira fatos e conclusões de dentro da cartola.

 

Por fim como não há nada que não possa piorar, o segundo plot twist, após a solução do caso, praticamente zomba da inteligência do público. Nem os mais crédulos e entusiasmados fãs de Branagh engoliriam aquilo. Com  isso tudo, não dá para entender como é que contando com um orçamento absurdamente maior, Kenneth Branagh não consegue fazer um adaptação que chegue aos pés do seriado da BBC Poirot, que dá de 10 a 0, em seus filmes custando muito menos.

 

Por fim, Faça um favor a si mesmo, e à sua carteira, evite mais essa bomba do Keneenth Branagh e se possível assista a adaptação do livro, do seriado Poirot com David Suchet. Ela está disponível no Youtube em https://www.youtube.com/watch?v=cjYGtFAWgZE.

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Imagem-Iuri-Buscacio-120x120 Noite das Bruxas, representatividade equivocada e o dilema das adaptações literárias

Iuri Buscácio

Leitor voraz de filosofia, teatro, literatura brasileira e estrangeira, suspense, e de romances históricos, de fantasia e ficção científica, além de ser fã de quadrinhos americanos e europeus, desde os tempos da saudosa Ebal, amante do cinema e das séries, e também um grande entusiasta e pesquisador dos jogos de tabuleiro, tanto clássicos quanto modernos, cuja trilha sonora é o bom samba, a MPB de qualidade, black music e música pop dos anos 70 e 80.

5 thoughts on “Noite das Bruxas, representatividade equivocada e o dilema das adaptações literárias

  1. Acho normal que nas adaptacoes modernas, tuso seja voltado para ação. É um público diferente, uma época diferente. Normal. Os filmes do Sherlock Holmes com o “Homem de Ferro” são assim tb: o Sherlock virou um personagem de ação. Até ai blz. Qt ao filme do Poirot em Veneza, assisti ontem e minha nossa que filmeco. Beeem fraco. Do nada, como num passe de mágica, o Poirot soluciona tudo, sem explicar como chegou naquelas conclusões. E é assim pq sim e pronto.

  2. Entendo pq trocam personagens brancos por negros e asiaticos. Qd essas obras foram escritas, nao se incluiam não brancos nao apenas pq eles nao estavam presentes na sociedade mas pq nao se gostavam deles, se discriminavam nao brancos. Assim, se formos adaptar literatura da epoca, jamais teremos negros e asiaticos nos filmes e series, pq simplesmente nao tem personagens nao brancos nas obras (pelo menos nao protagonistas). Como resolver isso? Nao sei. Se por um lado temos obrigacao de reparar esse absurdo e incluir nao brancos nos filmes e series, por outro temos o anacronismo de ve-los, quando incluidos, em situacoes que sabemos nao ser real. Mas se os filmes e series sao ficcao, e se 90% dos espectadores nao tem a minima ideia de que negros nao estudavam juntos de brancos em colegios ricos naquela epoca, entao nao vejo muito mal em cometer essa licença poética historica e incluir os nao brancos nas obras. Meu problema é qd vc inclui de forma absurdamente irreal, como o lance de fazer a Cleopatra negra. Aí dói.

    1. Caro Florencio

      É justamente aí que mora o “x” da questão da representatividade. Não como negar que, durante séculos, a produção cultural do ocidente sempre ocorreu a partir do ponto de vista de uma população branca. Agatha Christie não deve nem mesmo ter convivido com pessoas não brancas, então é muito natural que os seus personagens sejam etnicamente não representativos.

      E é aí que o meu raciocínio diverge da cultura woke e do povo da lacração. Todos nós concordamos que em uma mundo cada vez menos predominantemente branco, inclusive do ponto de vista cultural, não faz sentido , em termos gerais, fazer um filme com um elenco exclusivamente caucasiano. Mas do mesmo modo, não faz sentido algum fazer de conta que, no passado, o mundo era diferente daquilo que efetivamente era.

      No meu ponto de vista não adianta nada você estabelecer um esquema de cota de elenco para pessoas não brancas, principalmente quando isso implica em deturpar o material original em que se baseia o filme. Representatividade de verdade para mim é fazer uma obra que realmente representa as populações não brancas, com atores não brancos e histórias não brancas.

      Quando você precisa incluir personagens negros ou hispânicos em uma adaptação cinematográfica de um livro em que os personagens principais são todos brancos, a mensagem velada, e muito triste, que se passa é que os grandes estúdios acreditam que histórias de personagens não brancos não são suficientemente interessantes a ponto de merecerem uma adaptação. Isso é um absurdo que não tem tamanho. As culturas africanas são riquíssimas tanto acima quanto abaixo do Saara. Do oriente médio e da Ásia então, nem se fala. Se você for ficar só na China deve dar para fazer uma centena de filmes super legais e interessantes. Mas ao invés disso, o que as pessoas querem, em especial a militância, é que o próximo James Bond seja mulher e negra. O que é que isso muda em termos de representatividade? Praticamente quase nada, e ainda de quebra enfurece toda a enorme base da fá do personagem que gosta dele exatamente da forma como foi pensado por Ian Fleming.

      Recentemente aconteceu toda a polêmica da Pequena Sereia negra e ao que tudo indica a nova Branca de Neve, sem anões será outro furdunço. Em contrapartida um filme super importante que foi a Mulher Rei, com a quase sempre excelente Viola Davis, teve muito menos destaque do que deveria. Nós que nos preocupamos, e queremos filmes mais representativos, deveríamos estar falando desse filme até agora e questionando porque não se produzem mais filmes assim. Isso sim é representatividade. Ao invés disso, o que ocupa a pauta é uma caracterização sofrível da Cleópatra que conseguiu desagradar a quase todo mundo. Se a ideia é representar uma mulher negra forte e que realmente mudou a história, seria muito melhor, relevante e historicamente preciso, fazer uma série sobre Rosa Parks ou Angela Davis, do movimento negro norte-americano.

      Além disso, é imprescindível que tais obras, efetivamente representativas, tenham mais apoio por parte do público. Não adianta nada ficar escrevendo tese atrás de tese, e esbravejando na Internet que os filmes tenham de ser mais representativos, mesmo ao custo de se sacrificar um mínimo de coerência, e deixar de ir assistir filmes como Mulher Rei no cinema.

      Eu acho que significa muito pouco colocar o Idris Elba para fazer o papel de uma deidade nórdica, da mesma forma que eu acho uma besteira trocar o gênero do Thor tanto nos quadrinhos quanto nos filmes, e do John Constantine na série Sandman. A questão que eu acho que realmente deveria ser discutida é porque um personagem de grande sucesso de vendas de HQs, e que é originariamente negro, como o Spawn só teve um filmezinho prá lá de mequetrefe em 1997 (quase trinta anos atrás), e de lá pra cá mais nada. King Spawn #1 e Gunslinger Spawn foram sucessos estrondosos de vendas mas o filme que era para ter saído em 2017, não tem nenhuma notícia concreta até agora, apenas rumores de que talvez saia em 2025. Seguindo na mesma linha dava para fazer um senhor filme sobre a personagem Witchblade, muito melhor que aquela pocaria de 2000, ou sobre a personagem Orquídea Negra, por exemplo, ou até mesmo a Morte do Sandman.

      Da mesma forma, recentemente fizeram dois filmes sobre espionagem, Ava e Anna, com mulheres como protagonistas. Só que as duas eram brancas (Jessica Chastain e Sasha Luss). Faz muito mais sentido colocar atrizes negras, indianas ou asiáticas, para esses papéis, deslocando o cenário para os países apropriados, do que mudar a etnia e o gênero de James Bond. Da mesma forma, não faz o menor sentido colocarem negros, apenas para cumprir a cota, fazendo pontas em filmes dos livros da Agatha Christie, quando se poderia muito bem escalar um ator negro para ser o John Wick.

      Por isso, eu sou muito a favor de representatividade étnica, mas desde que isso seja feito de forma inteligente e adequada, sem forçar a barra, nem relativizar, nem esculhambar o material original ou fatos históricos.

      Um forte abraço e boas jogatinas!

      Iuri Buscácio

  3. oi Iuri, queria dizer que concordo com vc sobre os filmes do Branagh qt às modificações em relação ao material original, principalmente a história dos livros, e complementar as recomendações que vc fez no final, avisando aos incautos para jamais cogitarem assistir Os Crimes ABC de 2018 com o sensacional John Malcovich (que, como tudo na série, está péssimo no papel… aliás ele é ainda mais magro e alto que o Branagh). Para se ter uma ideia do quão terrível é a minissérie de 3 episódios, o Poirot dela nao usa uma única vez seu famoso raciocínio e a filtragem de informações obtidas através das conversas com os demais personagens. Isso mesmo: Poirot não usa de raciocínio para resolver (em termos… ele praticamente não resolve o caso, que se resolve sozinho) o mistério principal da série. Aliás a mesma muda até princípios fundamentais do filme que, qd escrito, pretendia apresentar “o maior caso” da carreira de Poirot… acabou não tendo esse reconhecimento, mas sempre foi uma história bacana do detetive belga. A série é um bisonho resultado de uma produção até digna, mas que sucumbiu a um roteiro absolutamente terrível, absurdamente ruim. Faz os filmes do Branagh parecerem excelentes!

    Por outro lado, recomendo fortemente a adaptação da BBC de 2015 da obra-prima da escritora, O Caso dos Dez Negrinhos, que foi lançada com o título novo do livro, E Não Sobrou Nenhum. Fiel ao livro, sem modificações de nenhuma ordem (com exceção daquelas inerentes ao título original e suas necessárias adaptações, que é algo que nas edições novas do livro também ocorre), com bons atores e direção sóbria e firme, a mini de 3 episódios se foca exclusivamente na trama, não se desviando em nada da história original e sequer se permitindo “melhorar” o ritmo da narrativa em prol dessa audiência moderna que quer tudo mais rápido e com mais ação. Vemos ali praticamente uma encenação literal do livro, o que é uma virtude espantosa, ainda mais para os dias atuais (ok, a série já tem quase 10 anos, mas ainda foi produzida no contexto moderno de televisão e cinema).

    1. Caro Ralph

      Você tem toda a razão. Esse Poirot do Malcovich ficou tão ruim, que eu às vezes até esqueço que uma monstruosidade dessas realmente existiu. Uma pena porque eu acho John Malcovich um ator sensacional e que não merecia estar associado a uma produção tão horrorosa.

      Um forte abraço e boas jogatinas!

      Iuri Buscácio

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