Jogos Narrativos e IAs Avançadas, Uma Mistura Interessante

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Nenhum outro jogo foi tão revolucionário e influente quanto o RPG, e num nível tão abrangente (jogos, videogames, HQ, música, literatura, cinema, TV, etc). O fato das pessoas não precisarem mais assistir passivamente a história, mas poderem contribuir ativamente, é um conceito poderosíssimo, e sem precedentes. Mas o conceito participativo do RPG já transcendeu o universo dos jogos anos atrás, então ele não conta, exclusivamente enquanto jogo.

 

No caso dos board games ninguém duvida que o Catan foi um jogo verdadeiramente revolucionário, e num nível até hoje não alcançado, excluindo o RPG. Claro que de 1995 (início da Era dos Jogos Modernos) para cá, muitos jogos igualmente incríveis e muito influentes surgiram, mas nada como o Catan. Quando se diz que o Catan iniciou a Era dos Board Games Modernos, nem sempre as pessoas se dão conta do impacto e da extensão disso.

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Qualquer pessoa um pouco familiarizada com o hobby dos jogos modernos sabe que nos anos 90, pouco se ligava para jogos de tabuleiro. Também é de “sabença geral” que o Catan foi o jogo que mudou drasticamente esse cenário tanto para o público quanto para empresas do setor. O conceito de jogos “euros”, baseados na vitória pela gestão mais estratégica e eficiente, ao invés do confronto direto era algo, muito novo e atraente. Isso não apenas, mas principalmente, para o público norte-americano, tanto quanto para os europeus.

 

Mas a Era dos Jogos Modernos foi algo muito além da mera renovação do interesse por jogos de tabuleiro, principalmente os estratégicos. Os jogos de tabuleiro, no formato concebido atualmente (excluídos jogos ancestrais como Xadrez, Gamão, GO, etc) existem desde o século XIX. Em termos mais precisos, eles existem desde 1822 nos EUA (Traveller’s Tour Through the United States), e desde 1836 na Europa (A Voyage of Discovery).

 

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Imagem BGG: Traveller’s e Voyage

 

E por todo o século XX, juntamente com os jogos ancestrais, os jogos de tabuleiro, foram uma das principais diversões de crianças, jovens e famílias. Vale lembrar que jogos de cartas, e dados eram reservados para homens adultos e restritos a “casas de má fama”. O máximo aceitável em casas de respeito era talvez um bridge ou buraco para adultos, e jogos infantis para crianças (“mico preto”, “rouba monte”). Não se pode esquecer que, somente a partir das duas últimas décadas do século XX é que surgiram (e se popularizaram), computadores, videogames e Internet. Antes disso, se jogava jogos de tabuleiros.

 

Mesmo trazendo para o final do século XX, o início da Era dos Jogos Modernos, não foi como se não houvesse nada e de repente o Catan fez a luz. A indústria dos jogos, especialmente na Alemanha já caminhava nesse sentido, e prova inequívoca disso é o El Grande, lançado no mesmo ano do Catan. Além disso, verdadeiros colossos dos board games como Sid Sackson, Andreas Seyfarth, Kramer, e Teuber, criador do Catan, já lançavam jogos bons antes de 1995. Todos os quatro inclusive já possuíam no currículo premiação no Spiel des Jahres (os Oscar dos Board Games) antes do lançamento do Catan. Mas mesmo não sendo a única causa, dessa “revolução lúdica” não se pode esquecer que o Catan foi o estopim de todo esse processo. Seu pioneirismo e prestígio, nesse sentido são incontestáveis.

 

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Imagem Ludopedia: El Grande

 

E o início da Era dos Jogos Modernos não se restringiu apenas ao lançamento de jogos euro, mais estratégicos e focados na gestão de recursos. Evidentemente antes de 1995 as pessoas já discutiam os jogos inclusive academicamente, e já publicavam livros sobre o assunto. Basta citar Gamut of Games (Sid Sackson 1969), Great Board Game Book (Brian Love 1979), e Discovery Old Board Games (R. C. Bell 1980). É bem verdade que esses livros até discutiam algo em torno de design, mas o foco principal era listar os jogos e falar de regras.

 

Cursos universitários de Economia já usavam o Management nos anos 60, e academias militares prussianas usavam wargames (kriegsspiel), para treinamento, desde o século XVIII. Isso sem falar que os russos ensinam Xadrez nas escolas e universidades desde sempre.

 

Mas na disso se compara com a enorme aceitação de board games nas escolas, nem com a avassaladora publicação de livros sobre jogos, após 1995. Quase que de uma hora para outra, jogos de tabuleiro, que eram coisas de criança (excluindo wargames e 18XX), se tornaram assunto de gente grande. As pessoas começaram a estudar, a teorizar, a escrever, a enumerar mecânicas e a criar categorias para os jogos. Basta comparar os livros citados acima com o Building Blocks of Tabletop Game Design ou o Kobold Guide to Board Game Design.

 

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Imagem Amazon: Livros de Board Games

 

Atualmente, no geral, os jogos podem ser divididos em 5 categorias: Abstratos, Party Games, Familiares, Euros e Ameritrash. Existem outras subcategorias (4x, CIV, wargames, vaza, 18XX, carteado). Mas esse termo “subcategoria” não é muito feliz, por dar uma ideia de inferioridade, em relação às categorias maiores, quando elas são apenas mais específicas. Dito isso, essas categorias podem ser definidas em termos simples, da seguinte forma:

 

– Jogos Abstratos são jogos com poucas regras, que utilizam normalmente sólidos geométricos como peças, e não têm nenhum tema discernível.

 

– Party Games são jogos simples, normalmente contendo apenas cartas, rápidos, para muitos jogadores e que cabem no bolso ou em uma bolsa feminina pequena.

 

– Jogos familiares são jogos um pouco mais complexos, com caixas maiores difíceis de transportar, mais regras, mais componentes e acessíveis a quase todas as idades.

 

– Euros são jogos de maior complexidade, para menos jogadores, mais estratégicos, baseados em gestão de recursos, normalmente competitivos, sendo mais indicados para adultos.

 

– Ameritrash são jogos mais focados na narrativa, no combate e aventura, que usam miniaturas, normalmente cooperativos, com muita exploração de locais ou de cenários maiores.

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Imagem Google: Euros x Ameritrash

 

Na verdade essas duas últimas categorias (Euro e Ameritrash) foram as primeiras, e durante muito tempo as principais categorias que dividiam os board games. Os Euros representavam os jogos europeus, principalmente os jogos alemães, mais focados em gestão de recursos e administração. Já os Ameritrash representavam os jogos norte-americanos mais focados no combate, exploração e aventura. Elas representavam certa “disputa” entre as principais escolas de board games do início da Era dos Jogos Modernos.

 

Atualmente, cada vez mais essas duas distinções perdem o sentido. Nada impede que europeus produzam jogos de combate e exploração, e norte-americanos produzam jogos mais voltados para gestão de recursos, e exemplos disso não faltam.

 

O próprio BGG, o maior site de jogos do mundo, começou a usar outras nomenclaturas para esses gêneros, Temáticos para Ameritrash e Estratégicos para Euros. Mas até isso é discutível, porque Ameritrashs podem ser muito estratégicos, e Euros podem ter algum tema bem desenvolvido. Mas o que importa para a discussão desse texto é uma distinção bem mais geral, e muito mais fácil de delinear e reconhecer: jogos conclusivos e jogos narrativos.

 

Os jogos conclusivos são aqueles em que se joga uma partida, com início, meio e fim. Nesses jogos não há variação nas condições do jogo (o desenrolar e o vencedor, entretanto, podem variar), e tudo encerra ao final da partida. Quase todos os jogos se encaixam nesse padrão. Os jogos narrativos são jogos focados em aventuras únicas e específicas, e mesmo que a partida tenha início, meio e fim, os cenários são diferentes. Esses jogos são praticamente uma decorrência direta do RPG, e normalmente utilizam o sistema de campanhas, unindo as diversas aventuras.

 

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Imagem BGG: Arkham Horror CG (Narrativo) e Puerto Rico (conclusivo)

 

Pela sua própria natureza, os jogos narrativos têm a dificuldade de necessitar de novas histórias. Um exemplo disso são jogos como Sword & Sorcery e Mansions of Madness que a caixa base trás apenas algumas histórias. As soluções para esse problema foram três.

 

A primeira e mais óbvia foram as empresas começarem a produzir novas aventuras e vendê-las aos fãs como material extra. Mas essa é uma solução temporária, porque é impossível produzir aventuras extras em um ritmo que acompanhe o consumo pelos aficionados pelo jogo. Além disso, isso torna o jogo mais caro, e deixa uma sensação de incompletude em relação ao jogo base.

 

A segunda solução foi lançar jogos com uma quantidade absurda de campanhas já no jogo base, como foi o caso do Gloomhaven. Mas essa solução além de também deixar o jogo caro, espanta um pouco algumas pessoas por conta da enormidade da campanha. Como dificilmente elas conseguirão finalizar a campanha do jogo, afinal as pessoas gostam também de outros jogos, elas preferem nem começar.

 

A terceira solução que não partiu das empresas, mas da comunidade de entusiastas. São as aventura e cenários criados e disponibilizados pelos próprios fãs, como ocorre no caso do Mansions of Madness e o aplicativo Valkyrie. Essa é uma ótima solução, mais prática e mais barata, mas que também tem seus “poréms”. Além das aventuras dos fãs dependerem de que haja uma verdadeira legião deles dispostas a produzir material, nem sempre esse material é bom.

 

É justamente aí que entram em cena as IAs avançadas. Só para esclarecer, no decorrer do texto, o emprego das palavras “IA” e “máquina” terá o mesmo sentido. Isso para não precisar distinguir a todo o tempo, o que seria uma IA exclusivamente programa, e um robô com corpo físico e inteligência artificial.

 

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Imagem Google: IAs

 

Muito já se discutiu se IAs criam coisas, ou se isso é uma exclusividade da mente humana. Ainda não há um consenso, e essa discussão, além de enorme, foge totalmente ao escopo desse artigo. A discussão aqui é outra. Porém, independente de criar ou não, não se discute a enorme capacidade das IAs recombinarem elementos distintos. E isso é feito com uma facilidade e em um espaço de tempo tão curtos verdadeiramente assombrosos. A capacidade e velocidade de cálculo, mesmo dos microcomputadores pessoais primitivos dos anos 70, ainda são incomensuravelmente superiores, aos dos cérebros humanos.

 

Assim sendo, desconsiderando o termo “criar” para evitar polêmicas inadequadas aqui, as IAs já chegaram a um altíssimo, e bastante sofisticado, nível de recombinação. Assim, uma IA não teria muita dificuldade em recombinar personagens, adversários, objetivos e até textos para fornecer uma nova aventura de Zombicide ou Arkham Horror. Isso poderia ser feito pelas próprias empresas que forneceriam esse material extra muito mais rápido e agilmente e poderiam cobrar muito menos, por isso. Isso ainda liberaria os artistas e designers que criam material extra para se concentrarem na criação de novos jogos, novas versões e novas edições.

 

O Arkham Horror Card Game é um jogo em que a caixa base trás poucos finais possíveis. Por outro lado, são tantas cartas que a recombinação gera uma infinidade de possibilidades, para se chegar aos finais das aventuras. Com as IAs, somadas a poderosos motores de busca na Internet, as editoras poderiam produzir dezenas de aventuras, tornando a rejogabilidade ainda mais estratosférica. Basta imaginar uma partida com dois jogadores. Uma pessoa jogando com o personagem “A” (cartas “B, C, D”), e outra com o personagem “E” (cartas “F, G, H”). O caminho varia conforme outras cartas saírem, mas o final do cenário é o mesmo.

 

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Imagem BGG: Arkham Horror Card Game Personagens

 

Utilizando uma IA poderosa, além dos caminhos variarem conforme as cartas, cada combinação poderia gerar também um final diferente. A rejogabilidade seria infinita tanto em caminhos possíveis, quanto em finais possíveis. O jogo ainda viria com alguns cenários e finais definidos, para atender os mais puristas, que não gostam de aplicativos. Mas a rejogabilidade ficaria por conta das IAs.

 

Para viabilizar economicamente esse modelo, as aventuras continuariam a ser lançadas em expansões físicas para atender quem prefere jogar assim. E o financiamento das IAs seria feito através de uma assinatura como acontece com o BGA.

 

Dessa maneira, o Arkham Horror Card Game poderia ter conjuntos de aventuras específicos e direcionados para cada um dos personagens. Os fãs não estariam mais presos a tentar usar um caminho diferente para chegar ao mesmo final. Eles poderiam usar caminhos diferentes para chegar a finais diferentes em aventuras diferentes. Com isso, o Arkham Horror Card Game seria realmente “um jogo para a vida toda”, independente do enfoque que se queira dar (caminho ou final). E esse é apenas um exemplo, que também se aplicaria a Zombicide, Gloomhaven, Tainted Grail, Robinson Crusoé, Cthulhu Death May Die, entre tantos outros.

 

E não é só isso. Um dos trabalhos mais pesados na criação de jogos é justamente o processo de balanceamento e definição de regras. Uma IA poderia fazer em minutos, uma quantidade de simulações que playtesters humanos demorariam meses ou talvez anos. Obviamente, ainda seriam necessários “pilotos de teste” humanos para “sentirem o jogo”, e avaliarem as melhores versões. Não se pode esquecer que os jogos se destinam a humanos, e quem vai comprar são eles e não IAs. Mas apesar disso, o trabalho bruto já estará pronto, cabendo aos playtesters humanos, apenas os ajustes finos.

 

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Imagem Google: Equipe Robótica de Playtesters

 

Claro que se pode pensar: porque então não se deixa toda a produção de board games a serviço das máquinas? Ocorre que um jogo de tabuleiro é muito mais do que a arte, os componentes e um amontoado de regras. Os board games também envolvem sensibilidade e diversão, conceitos totalmente fora do alcance das IAs, por mais avançadas que elas sejam. Uma máquina pode até saber o que é uma ofensa, mas ela não se ofende. Ela pode até saber o que é gosto, mas ela não tem a capacidade de, por ela mesma gostar mais de azul do que de verde. Uma máquina não é capaz de sentir, que é uma habilidade própria da humanidade e, por extensão, dos demais seres biológicos, com sistema nervoso central.

 

Apesar de ser um mecanismo mental complexo, o medo é um sentimento que exemplifica muito bem a questão. Normalmente, o medo vem do desconhecimento sobre uma situação, ou da grande possibilidade de sofre dano, físico ou psíquico. O medo surge da ameaça presente em um beco escuro, em que não se sabe quem ou o quê se esconde. Ele é cria do receio de se debruçar em uma janela, cair e se machucar. Ele também nasce do receio de se chamar a pessoa amada para sair e sofrer uma rejeição categórica e ainda mais de uma eventual zombaria.

 

Uma máquina não sente dor, consequentemente ela não tem como sentir medo de se machucar. E mesmo que boa parte dela seja destruída, sempre existe a possibilidade do haver um back-up do banco de dados. Com isso basta reinstalar o banco de dados em outro computador ou em outro robô, e a máquina estará lá exatamente igual ao exemplar destruído.

 

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Imagem Google: Máquinas só são capazes de “sentir” na ficção

 

O medo é um mecanismo complexo, que existe mesmo diante da impossibilidade do dano. Uma pessoa pode sentir medo, assistindo um filme de terror, mesmo sabendo que é apenas um filme e o monstro não vai sair da tela. Do mesmo modo, pessoas com fobias experimentam um medo real, mesmo que não possam ser feridas por aquilo que temem. As pessoas têm medo de palhaços e de espaços abertos, mesmo que não haja nenhuma ameaça de dano real associada. Mas essas são situações específicas, que não se aplicam em condições gerais. Praticamente todas as pessoas lidam muito bem, tanto com palhaços quanto com espaços abertos.

 

E mesmo que uma máquina ou IA seja avançada o suficiente para emular o medo, da forma mais convincente possível, isso ainda será muito diferente de sentir medo. No mesmo sentido, a máquina pode até ter dados objetivos sobre a opinião da sociedade humana sobre temas polêmicos como pedofilia e genocídio. Mas nenhuma máquina vai compreender na totalidade e na plenitude o quão abjeto e repugnante seria fazer um jogo colocando as pessoas como guardas de campos de concentração nazista ou exploradores de prostituição infantil.

 

Uma máquina é incapaz de sentir empatia pelo outro, ou de se colocar no lugar dele. Não é à toa, que muitas “previsões futurológicas” defendem que no futuro, provavelmente, os médicos serão substituídos muito antes das enfermeiras.

 

Essa total incapacidade de empatia também pode levar a resultados digno de nossos piores pesadelos. Uma IA faz cálculos e simulações em uma velocidade vertiginosa. Ela também tem acesso a uma quantidade de informações, e tem uma capacidade de processar e relacionar tais informais que excede incomensuravelmente a capacidade humana. Mas mesmo essa capacidade formidável, não faz com que a mais avançada IA, seja mais sábia que uma simples calculadora de bolso.

 

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Imagem Google: Jason, Fredy e palhaços assassinos, vilões inexistentes na realidade, mas que ainda assim provocam muito medo

 

Se alguém perguntar a uma IA, como melhorar o mundo para os humanos, ela provavelmente responderia que o mundo seria melhor se houvessem menos humanos. Isso porque os humanos são a espécie que mais mal faz a si mesma, que poluem tudo e consomem os recursos do planeta predatoriamente. Do ponto de vista exclusivamente lógico essa conclusão está certíssima, mas em certas questões há muito mais do que lógica a se considerar.

 

Com isso, a IA poderia conceber um plano de melhora mundial para a raça humana baseado em alguns pontos muito sinistros.

 

O primeiro passo seria exterminar a maioria da população mundial, de modo que cada país ficasse reduzido a 10% de sua população. O passo dois seria permitir a cada família apenas um filho (essa inclusive foi uma política de estado chinesa, real que durou décadas). Já o terceiro passo seria estabelecer a idade média máxima da produtividade profissional de um ser humano, e exterminar qualquer um que ultrapassasse essa idade. Mais ou menos como ocorria no clássico de distopia Sci-Fi Logan’s Run de 1976. Isso resolveria os problemas decorrentes do envelhecimento, como alguns tipos de câncer, e as doenças mentais causadas pela degeneração dos neurônios.

 

O quarto passo, e mais polêmico, seria exterminar qualquer ser humano que nascesse com algum problema físico que limitasse sua capacidade, ou consumisse recursos extras. Esse quarto passo incluiria questões como miopia ou hipermetropia, diabetes congênita, tendência a obesidade, hemofilia, entre outros problemas de saúde. No mesmo sentido, Ele também se aplicaria a pessoas que desenvolvesse algum tipo de alteração em relação à “normalidade”, que por si só é amplamente discutível. Com isso “dançariam”, que desenvolvesse uma personalidade narcisista, quem tivesse tendência à violência extrema, quem tivesse baixa autoestima, e por aí vai.

 

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Imagem Google: Logan’s Run (1976), uma sociedade com menos problemas, mas a um custo sinistro e altíssimo.

 

Do ponto de vista da IA essa estratégia seria tanto válida quanto imperativa, por resolver, num curtíssimo prazo, alguns dos principais problemas da sociedade humana. Isso não apenas reduziria a superpopulação, como evitaria eventuais explosões demográficas, porque os avós morreriam mais ou menos na época em que seus netos nascessem. Além do que, com menos humanos o consumo dos recursos do planeta ocorreria em um ritmo muito menor e melhor administrável. Isso também melhoraria, de modo geral, a qualidade genética da espécie humana, porque muitas doenças genéticas seriam erradicadas. Nem é preciso dizer qual o tipo de pessoa que defendia um ponto de vista tão imoral, desumano, antiético, desprezível e doentio.

 

Do ponto de vista dos humanos, isso seria algo monstruoso, e de uma perversão que seria absolutamente inaceitável e inadmissível, por mais eficiente que fosse. Nenhuma pessoa sã e com uma mínima de noção de decência, gostaria, ou até mesmo aceitaria viver em um mundo assim. Mas para uma IA essa recusa não faria nenhum sentido. Isso porque, apesar de toda a deturpação evidente do conceito de “mundo melhor”, um cenário de pesadelo não teria alguns dos principais problemas que os humanos enfrentam hoje.

 

E isso tudo nasce do simples fato da IA e das máquinas, em geral, por mais avançadas e desenvolvidas, serem incompatíveis com sentimentos humanos ou de desenvolver empatia. Claro que mesmo hoje, as IAs conseguem até enganar um humano, a ponto dele achar que está falando com uma pessoa.  As IAs são capazes até mesmo de e emulam muito bem empatia e emoção. Mas isso ainda é acima de tudo uma simulação, que não é real, por mais convincente que ela possa ser.

 

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Imagem Google: ChatGPT e o “dever de casa”

 

Falando especificamente de jogos, máquinas não tem a capacidade de avaliar o que é divertido e o que não é. Uma IA, mesmo avançada, não tem como saber por que é mais divertido para algumas pessoas jogar Splendor e para outras Azul. E sendo impossível entender plenamente o conceito de diversão, de um ponto de vista humano, consequentemente fica difícil uma máquina “criar” algo divertido.

 

Isso sem falar que uma máquina é incapaz de responder alguns tipos de perguntas, apesar de toda a sua absurda capacidade de processamento. Um designer não poderia contar com a máquina para avaliar se a experiência do Village fica melhor com a arte antiga ou com a nova. A máquina não teria como dizer se gostou mais de Agricola ou Caverna, ou do Marco Polo I ou II. Do mesmo modo, um designer não poderia perguntar à máquina se agradaria mais fazer um jogo mais próximo do Terra Mystica ou do Projeto Gaia. A máquina poderia fornecer dados de venda e posições em rankings, e nada mais, e isso, apesar de útil, não resolve a questão. Julgando apenas pelas vendas, Monopoly seria o melhor jogo de todos os tempos, o que não é verdade.

 

Evidentemente uma IA pode criar uma infinidade de jogos e estatisticamente alguns serão agradáveis e outros não. Mas esse esquema de tentativa e erro ainda é muito complicado para máquinas, e os humanos ainda desempenham tarefas como essas muito melhor.

 

Obviamente as IAs de hoje em dia são suficientemente avançadas para emular o comportamento humano e até enganar as pessoas. Não fosse assim, o ChatGPT não seria o pesadelo que é para escolas e universidades. Muitos especialistas inclusive defendem que o Teste de Turing tradicional já nem se aplica às IAs de hoje, sendo necessários testes com parâmetros atualizados.

 

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Imagem Google: Designers Humanos e IAs, uma mistura interessante

 

Mas a chamada singularidade, em que as IAs desenvolverão consciência e livre arbítrio ainda está longe de ocorrer. Existem inclusive estudiosos e teóricos que acreditam que isso talvez nem seja possível. Com isso, IAs permanecerão sendo apenas máquinas, por enquanto, máquinas fantásticas, mas ainda sim máquinas. Elas continuarão restritas a atender comandos e a seguir uma programação.

 

No final, na questão do uso das IAs na indústria de jogos, não se discute se máquinas produziriam jogos melhores que humanos, ou não. Tampouco se discute se seria melhor substituir os grandes designers por máquinas, ou se seria melhor mantê-los. De modo geral já existe um consenso de que máquinas executam algumas tarefas melhores que humanos e outras em que os humanos executam muito melhor.  A questão não é usar um ou outro, mas sim utilizar as IAs para auxiliar os designers humanos, naquilo que as IAs tem de melhor a oferecer.

 

Isso indica que é pouco provável que IAs venham substituir, pelo menos em um futuro próximo gênios como Reiner Knizia, Wolfgang Kramer, Antoine Bauza, Michael Kiesling, Bruno Cathala, Vlaada Chvátil, Corey Konieczka, Vital Lacerda, Alexander Pfister, Jamey Stegmaier, Uwe Rosenberg, Richard Garfield, Stephan Feld, Eric Lang, Matt Leacock, Simone Luciani, Shem Phillips, Martin Wallace, entre tantos outros. Essa rapaziada só tem “pedra 90”, e se você não pescou a referência (coisa de gente “vivida”), pergunte aos seus pais ou, dependendo do caso, aos seus avós.

 

Por outro lado, o fato das IAs não substituírem os mestres, não exclui, evidentemente, o seu uso como ferramentas para auxiliar a criação de jogos, e que ferramentas!!!!!

 

Um forte abraço e boas jogatinas!

 

Iuri Buscácio

 

P.S. Quem tiver interesse em mais textos no mesmo estilo pode acessar o canal iuribuscacio do Ludopedia ou a seção Jogos de Tabuleiro do Maxiverso.com

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Iuri Buscácio

Leitor voraz de filosofia, teatro, literatura brasileira e estrangeira, suspense, e de romances históricos, de fantasia e ficção científica, além de ser fã de quadrinhos americanos e europeus, desde os tempos da saudosa Ebal, amante do cinema e das séries, e também um grande entusiasta e pesquisador dos jogos de tabuleiro, tanto clássicos quanto modernos, cuja trilha sonora é o bom samba, a MPB de qualidade, black music e música pop dos anos 70 e 80.

8 thoughts on “Jogos Narrativos e IAs Avançadas, Uma Mistura Interessante

  1. daqui uns anos vai ter IA analisando as filmagens de gameplays e sugerindo jogadas aguarde so

  2. Vim aqui dizer que esse seu texto é muito grande, muito bom e você perdeu o desafio que fiz na Ludopedia! Também vim aqui dizer que está na hora da gente se comunicar fora da Ludopedia, eu você e o Raphael Guri, pois temos muito a ganhar rir juntos. Socorro Iuri, vamos fazer grupo de 3 no zapzap!

    1. Caro Léuri

      A princípio eu ia te responder, e peço perdão por não fazê-lo, mas é que as resposta ficou meio grande e tomou um rumo tão interessante que acabou dando origem a mais um dos meus textos, que eu publicarei em breve, que eu acho que você vai gostar bastante.

      Um forte abraço e boas jogatinas!

      Iuri Buscácio

  3. entao nao tem mais ameris e euros, agora sao tematicos e estrategicos? o politicamente correto chegou aos BGs

    1. Cara Pietra

      Essa alteração dos termos ameritrash e euro, tem mais a ver com o próprio desenvolvimento do mercado internacional de board games, do que propriamente com o politicamente correto. O fato é que no início da Era dos Jogos Modernos (1995/2005), realmente ameritrash e euro eram duas coisas muito distintas, e claramente diferenciavam jogos feitos nos EUA que tinham um estilo, dos jogos feitos na Europa, que tinham outro tipo de estilo. Ameritrash e Euro representavam realmente duas escolas de designs de board games bastante distintas, e para muitos totalmente antagônicas,

      O problema é que com o passar do tempo, essa questão geográfica foi perdendo o sentido, porque mais americanos foram fazendo jogos no estilo euro, e mais europeus foram fazendo jogos no estilo ameritrash. Por isso, a questão deixou de ser a nacionalidade ou local de origem dos jogos, e cada vez mais os estilos de cada uma. Jamie Stegmaier apesar do nome parecer indicar um designer de board games europeu, na verdade é norte-americano, mas fez diverso jogos mais para o estilo euro do que ameritrash, como é o caso de Scythe, Viticulture e Tapestry. Já o Conan e o Zombicide que são ameritrash foram feitos por designers europeus, como Antoine Bauza, Raphael Guiton, Jean-Baptiste Lullien e Nicolas Raoult.

      Eu particularmente continuo usando euro e ameritrash, porque eu acho que dentro do universo de board games, esses termos mais tradicionais identificam melhor e mais rapidamente o tipo de jogo. Mas até mesmo a distinção entre temático e estratégico está cada vez mais tênue. Desse modo, já existem jogos ameritrash que exploram bem esse lado estratégico, como jogos euro que são bastante temáticos.

      Um forte abraço e boas jogatinas!

      Iuri Buscácio

    1. Caro Bagger
      Muito obrigado, e se você gostou desse m acho que vai gostar ainda mais do próximo que eu estou escrevendo, que é exatamente sobre essa questão das IAs sentirem ou não, discutido de modo mais a aprofundado, justamente para responder outra indagação desse tópico.

      Um forte abraço e boas jogatinas!

      Iuri Buscácio

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