“Deixe seu filho ler quadrinhos” ou então “Como fui da Turma da Mônica ao Shakespeare”
Quando eu era criança, meus pais (e a maioria) achavam que histórias em quadrinhos eram ruins para as crianças. Achavam que trazia vícios de leitura, mensagens ruins que pudessem influenciar na formação do indivíduo, essas coisas.
Mais ou menos igual a quem achava que um game violento gera futuros assassinos (escrevi “achava” porque não creio que ainda hoje existam pessoas que acreditam nessa teoria…).
Quando comecei a querer ler os “gibizinhos” da Turma da Mônica, passei pelo ritual de “exorcismo dos quadrinhos” das crianças da época: meus pais viram que eu havia trazido as “revistinhas” emprestadas de um amigo e conversaram comigo. Disseram que revistinhas não eram boas, que eu tinha que ler coisas bem escritas, de qualidade, etc. E me deram um exemplar do livro O Menino do Dedo Verde.
Pra quem não conhece, esse livro era muito popular na ocasião. Não sei se muitas crianças leram a obra (eu não passei da primeira página), mas era o que a maioria dos pais dava aos filhos na época, para que se “iniciassem na literatura”.
Fico aqui imaginando o estrago que O Menino do Dedo Verde causou na minha geração… quantas crianças, como eu, odiaram aquele livro e não desistiram pra sempre do prazer da leitura? Jamais saberemos… se bem que tem gente que parece que gostou do livro, mas, quase todos que têm essa opinião, eram mais velhos quando leram, com 10 anos ou mais de idade.
Eu não lembro que idade eu tinha, mas sei que a tortura de ler aquela primeira página cheia de linhas e sem nenhum desenho podia ter me feito abandonar para sempre o hábito de ler. Sorte que eu tentei novamente os gibizinhos e meus pais, talvez se sentindo frustrados, acabaram desistindo de me encaminhar na literatura do jeito que achavam mais adequado.
E aí eu me enfiei de vez na Turma da Mônica. Pedia para meus pais comprarem, ou emprestava e trocava com os amigos. Passava momentos incríveis lendo as historinhas da dentuça, do Cebolinha, do Cascão… adorava também as histórias do Astronauta (será que meu amor pela ficção científica começou ali?).
Na mesma época, comecei também a ler as histórias da Luluzinha e do Bolinha. Hoje em dia, não sei se são publicadas no Brasil, mas na época, havia quase tantas revistas deles quanto do Maurício de Souza.
Um dia, lembro-me vivamente, tive um típico insight. Foi um daqueles momentos na vida em que percebemos que uma mudança ocorreu. Ainda muito jovem, tendo por volta de 12 anos, tive plena consciência do que aconteceu: ao virar mais uma página de uma história de plano infalível do Cebolinha para delotar a Mônica, pensei comigo mesmo como aquilo tinha se tornado infantil para mim. E no mesmo instante pensei na Disney, pois na minha cabeça, as histórias eram para crianças mais velhas.
A editora do Mickey foi, portanto, minha segunda fase como leitor, apesar de que eu gostava mesmo era dos patos, principalmente o “velho muquirana” (eu ficava encucado com o que seria muquirana, na época). As grandes sagas do Tio Patinhas com os sobrinhos, normalmente em histórias de dezenas de páginas, com aventuras em busca de alguma fortuna perdida pelo mundo, se mostravam muito mais “profundas” que as antigas aventuras da Mônica. E o que falar do Almanaque Disney, com suas mais de 100 páginas? Sensacional! Lia e relia muitas vezes.
Uns anos mais tarde, me lembro que também já soavam infantis as histórias da Disney, por mais elaboradas que as sagas fossem. Foi então que passei à minha terceira fase nas HQs: os super-heróis!
Quando estava com mais ou menos 16 anos, se bem me lembro, decidi que a próxima revista em quadrinhos a ser comprada seria de super-heróis. Na banca de jornais, bati o olho em uma edição do Capitão América que falava sobre um soviético radioativo (!) que era ameaça aos Vingadores (eu nem sabia quem eram os tais Vingadores e o nome me lembrava de Caverna do Dragão) e me lembrei de que anos antes, no apartamento do meu tio Carlos, eu havia folheado uma revista do Capitão América. Mesmo sem entender a história do bandeiroso, eu tinha gostado do personagem. Decidi comprar! 🙂
Um novo mundo se descortinou para mim a partir daquela Capitão América #182, da Editora Abril. Haviam heróis e heróis… equipes e equipes. Editoras e editoras (Marvel, DC, Dark Horse, etc). Drama. Sagas. Cronologias. Era tudo lindo e maravilhoso (menos o fato de que as histórias nem sempre terminavam na edição que você lia, era necessário esperar um mês para ver o fim – ou a próxima parte).
Nessa época, era comum ligar no 0800 da DINAP (Distribuidora Nacional de Publicações) para comprar edições antigas de sagas que eu queria ler, ou de edições que continham histórias marcantes, como a Morte e o Retorno do Superman, a Liga da Justiça ou as edições de Superaventuras Marvel com as histórias de Thanos pré-Desafio Infinito. O salário ia quase todo nas bancas ou livrarias… ou nos sebos de São Paulo (principalmente em um localizado na Praça da Sé).
Também me recordo do anúncio: “Sorria. Vocês está no meio de uma revolução” ou algo parecido, nas páginas das revistas, e o slogan: “Chegou o primeiro de uma nova casta de heróis”, referindo-se ao lançamento de Spawn no Brasil.
A quarta fase no degrau dos quadrinhos ocorreu mais ou menos nessa época também, quando comecei a ter contato com as revistas chamadas “adultas”, como Vertigo, que depois me levaram a Watchmen, V de Vingança e, bem, depois disso, o mundo mudou para mim e nada mais era tão bonito como lá no começo. Alan Moore e Garth Ennis, dentre outros, me mostraram que os quadrinhos podem ser tão duros quanto a realidade da vida. Mas eu adorei. Depois vieram Moebius, Serpieri, Clive Barker, Manara, Osamu Tezuka, Neil Gaiman, Spiegelman… e não parou mais.
É necessário enfatizar então que os quadrinhos é que me despertaram o gosto pela leitura de forma geral. Não contei ainda, mas desde os tempos das HQs da Disney que comecei a me aventurar com os livros. Primeiro tentei – por indicação de meu pai – um livro de Conan Doyle, do Sherlock Homes, mas achei difícil demais de entender. Fui então ler os livros da Coleção Vagalume, que eram obrigatórios na escola (mas apenas quatro por ano, creio), e eu lia outros por conta própria, e fui gostando cada vez mais. O Mistério do Cinco Estrelas foi meu primeiro marco nos livros.
Em seguida, pedi a meu pai um livro de detetives mais fácil de ler do que o do Sherlock e ele me indicou os do Poirot da Agatha Christie. De fato, eram mais leves e fáceis de entender. Fui começando a apreciar vários gêneros e a conhecer os escritores. Quando estava lendo os super-heróis, os livros eram quase todos de ficção científica, incluindo Asimov. Devorei Júlio Verne também nessa época, pois meu pai tinha uma coleção capa dura incrível, com todas as suas obras.
Nas minhas intermináveis e sempre renovadas listas de autores preferidos estavam (e estão) Asimov, Ray Bradbury, Phillip K. Dick, Sydney Sheldon, H. P. Lovecraft, Júlio Verne, Conan Doyle, Agatha Christie, Tolkien, Luis Fernando Veríssimo, Marcelo Rubens Paiva, Edgar Allan Poe, Machado de Assis (sim, eu gosto), Charles Dickens, Kafka, e outros que no momento não me lembro, fora os quadrinhistas.
Enfim, a mensagem, a moral da história, é que – claro – os quadrinhos não causam nenhum tipo de problema relacionado à leitura de “livros convencionais”. Pelo contrário, na maioria das vezes, na imensa maioria, leva os leitores de HQs à paixão pelos livros também.
Portanto, pais, deixem – e incentivem – seus filhos a lerem quadrinhos. Desperte neles o gosto pela leitura com essa iniciação leve e divertida, sem compromissos, com o atrativo das ilustrações para atraí-los ainda mais.
Quando crescerem, eu garanto que eles tentarão ler alguns livros. E quanto tentarem, vão gostar. E aí, a missão estará cumprida. 🙂
Ah, quanto a Shakespeare… li quando trabalhava em uma biblioteca. Não gostei e nunca mais li nada dele. Confesso. Mas leio Liga da Justiça e Vingadores até hoje, além de cada vez mais livros.
Ralph Luiz Solera
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