Alice Guy-Blaché: Seja Natural
Pessoa certa no lugar certo
Historicamente a invenção do cinema é atribuída aos irmãos Lumière em 1895. Ainda é possível argumentar que Thomas Edison, no ano anterior, criou o embrião do cinemascope através de uma imagem reproduzida, simulando movimentos, num “olho mágico”. Contudo, somente os irmãos franceses desenvolveram um equipamento que pudesse filmar e reproduzir movimentos, definindo, por assim dizer, o “conceito” do cinema propriamente dito. Ferramenta essa que foi difundida pelo mundo através de outras ideias para seu uso, que foram surgindo rapidamente assim que percebiam as inúmeras possibilidades da nova forma de arte que acabara de nascer.
Normalmente dentro de uma escala de “importância”, então, teríamos os irmãos Lumière com sua invenção e a famosa exibição Chegada do Trem na Estação (1895); posteriormente temos Georges Méliès com seu Viagem à Lua (1902), onde criou efeitos especiais de ilusionismo mostrando definitivamente que o cinema havia chegado para ficar; após, temos o inovador O Grande Roubo do Trem (1903) de Edwin S. Porter, com suas sequências paralelas e a quebra da quarta parede.
Correto?
Sim.
Contudo, entre Lumière, Méliès e Porter, surgiu um nome que também estava à frente de seu tempo e foi pioneira em inovação: a diretora francesa Alice Guy. Se fizermos uma lista das maiores ou mais importantes personalidades da história do cinema, qualquer que seja a composição da lista, o nome de Alice deve estar presente.
Infelizmente a diretora é pouco mencionada quando se fala dos primórdios do cinema, portanto é fundamental que Alice seja sempre lembrada ao mesmo nível dos outros grandes pioneiros da época do início da “Sétima Arte”. Para ter um ideia, ao fazer um pequena pesquisa nos livros que tenho sobre a história do cinema , dentre cinco, apenas um mencionou a artista; mesmo assim tendo os méritos de suas criações atribuídos mais à benevolência masculina que propriamente a capacidade de Alice.
Além do Cotidiano
A primeira diretora quando ainda era uma jovem assistente do engenheiro Leon Gourmont, esteve presente no evento fechado dos irmãos Lumière em 1895 (alguns meses antes da exibição pública de 28 dezembro do mesmo ano), na qual mostra sua nova invenção pela primeira vez. Lá, ela apaixonou-se pela nova arte e teve a percepção de que não precisaria ficar apenas nos registros diários do cotidiano, como eram os filmes dos irmãos franceses, mas sim anteviu a possibilidade de mostrar, nos filmes, outros enredos. Dividindo o tempo com suas tarefas de secretariado de Gourmont, Alice fazia filmes curtos, com tramas fechadas, criando assim, de fato, o cinema como meio de se contar histórias!
Em 1896, apenas um ano depois da invenção do cinema pelos Lumière, Alice criou o primeiro filme de ficção chamado A Fada do Repolho, um curta de apenas 1 minuto aproximadamente (veja aqui), baseado em uma fábula francesa, mostrando bebês nascidos de repolhos e rosas (inclusive, foram usados bebês de verdade na filmagem). Para termos uma noção da importância da diretora, até o primeiro filme de Georges Méliès, em 1902, Alice já tinha realizado mais de 100 curtas! Nos anos seguintes ela foi aperfeiçoando seus métodos, que se tornariam a base narrativa dramática do cinema, tais como o uso de closes e profundidade de campo, que diferenciava Alice de outros realizadores . Alguém pode atribuir a outros realizadores alguma ou outra novidade devido a velocidade selvagem que o cinema crescia (mais à frente falarei um pouco mais) , mas a questão principal não é somente se ela foi a primeira , mas seu nome nunca ser lembrando.
Pioneirismo e Feminismo
Alice foi pioneira ao realizar uma análise sobre a sociedade patriarcal. Já em 1906, a diretora realizou uma obra sobre as Consequências do Feminismo , uma sátira em que os atores masculinos se vestiam com roupas femininas, realizando tarefas domésticas. Se discute se a diretora reforçou uma imagem até antifeminista através de estereótipos da visão masculina ou realmente elevou tal visão ao nível máximo de ironia; fora que os homens em posição de fragilidade era retratados com gestuais afeminados. Independente do fato de Alice ser uma “militante” , a obra é fundamental para debater sua figura diante daquele universo em que ela estava muito a frente em suas ideias. Mas em entrevista devemos lembrar que Alice dizia “Minha juventude, minha falta de experiência, meu sexo, tudo conspirou contra mim”, não sendo inverdades que seu sucesso na época atraía a antipatia de homens da indústria. E devemos lembrar que estávamos no início do século 20 e direitos das mulheres eram praticamente inexistentes, e alguns temas que a diretora tratava eram (e ainda são) tabus.
Outro grande momento foi A Paixão de Cristo (1906) – veja aqui – , na qual ela transforma a obra numa superprodução para a época, com centenas de figurantes durante seus 30 minutos de duração – algo que o transformava em um “longa” metragem para época. Algo até então inédito. Toda essa prolífera carreira a fez produtora chefe dos Estúdios Gaumont, pertencentes ao seu antigo chefe, tornando-o o primeiro grande estúdio de cinema; seus rendimentos anuais eram inimagináveis para uma mulher no início do século (reza a lenda que seus ganhos chegavam a 25 mil dólares ao ano).
Alice continuou inovando em suas realizações ao trabalhar usando um aparelho inventado pela Gaumont chamado chronophone que sincronizava o som com as imagens (por exemplo, você gravava uma música cantada pelo próprio ator e depois sincronizava a música com as imagens, uma espécie de playback da época).
Os Primeiros dos Grandes Estúdios Americanos
No ano seguinte ao filme da Paixão de Cristo, Alice se casou com Hebert Blaché, que era representante da Gaumont em Londres, e os dois partiram para os Estados Unidos onde fundaram a produtora Solax em 1910, em Nova Iorque, cujo estúdio ficava em New Jersey; precisamente em Fort Lee, onde os grandes estúdios que acabavam de nascer se concentravam nos primórdios do cinema antes de Hollywood (além da Solax, a Universal também teve seus estúdios ali).
Alice Guy Blaché tornou-se a primeira mulher dona de um estúdio e um dos mais importantes filmes da época da Solax foi Dick Whittington and His Cat (1913). Ainda maior em sua duração que o habitual (cerca de 40 minutos), a obra custou aproximadamente 30 mil dólares (uma pequena fortuna para época). O prestígio e o sucesso de Alice Guy – agora Alice Guy Blaché – se mantiveram durante alguns anos; contudo, o cinema estava mudando com uma velocidade jamais vista em outras formas de arte (lembrando também que George Méliès foi esquecido depois de sua contribuição, acabando no final da vida vendendo bugigangas na estação de trem em Paris como visto, por exemplo, em A Invenção de Hugo Cabret de Scorsese).
Durante esse período da década de 1910, o cinema viu nascerem movimentos como o Formalismo Russo e as teorias sobre a montagem dentro do cinema. Na mesma década surgiram os filmes grandiosos que inovaram ainda mais a linguagem como Intolerância e o racista O Nascimento de uma Nação (o primeiro grande clássico do cinema), ambos de D. W. Griffith; fora que outros dos grandes e mais influentes movimentos da historia do cinema estava prestes a nascer (Expressionismo Alemão). E talvez, é bem provável também, que a Solax não conseguiu acompanhar tal ritmo e por já ser considerada obsoleta com seus curtas em detrimento de grandes produções e novidades com o qual o público foi se habituando na época.
Final de Carreira e Esquecimento
Além do mais, a chegada da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) colaborou para o declínio do estúdio de forma geral e depois de várias centenas de filmes, a Solax fechou devido às dívidas em 1919. Outro problema foi a concentração da matéria prima da época, pois a Kodak, junto com Thomas Edison, eram as únicas que forneciam material para os filmes (rolos de filmes e câmeras). Assim, filmar na costa leste significava ficar à mercê dessas duas companhias que praticamente formavam um cartel, o que acabou ocasionando a ida dos estúdios para a costa oeste (Los Angeles) e dando inicio à Hollywood que conhecemos hoje, devido às isenções fiscais fornecidas (sim, meus caros, o maior país capitalista do mundo fornece isenções fiscais).
Alice presenciou o nascimento e influenciou lendas como Charles Chaplin, Hitchcock e viu o cinema se tornar influência em todos os ramos da sociedade. Para termos a noção da importância de Alice Guy, o próprio Eisenstein admite ter sido influenciado pela diretora ao realizar nada mais que O Encouraçado de Potemkin (1925). Mas problemas financeiros e no casamento a fizeram se divorciar de Herbert Blaché, retornando para a França em 1922 com os dois filhos e passando a dedicar-se a lecionar sobre cinema e escrever roteiros; segundos os registros, seu último filme foi em 1920 (a quantidade de obras filmada por ela pode ter chegado a mais de mil filmes).
Agora a pergunta fundamental: Como uma figura tão importante com Alice Guy foi esquecida ou ficou sem o grande reconhecimento merecido?
lembram-se da frase “Minha juventude, minha falta de experiência, meu sexo, tudo conspirou contra mim” ? Então…
Claro que toda carreira de um artista, depois de tantas realizações como da Alice, tem um fim. O cinema e o mundo mudavam rapidamente, mas umas das óbvias constatações sobre o esquecimento é o machismo ! Em 1922, a diretora já estava com quase 50 anos de idade e se hoje essa é algo preconceituosamente limitador para uma mulher na indústria, imagine 100 anos atrás com um mulher na suas condições. Tanto que após seu retorno a Paris e o fechamento do estúdio, o ex-marido continuou a trabalhar na indústria de filmes (ele aprendeu a dirigir com ela).
Documentário “A história não contada da primeira cineasta do mundo”
Um dos maiores crimes que se podem ter feito a um realizador como Alice Guy é o ostracismo, uma vez que a maioria de suas obras filmadas foram perdidas, mas está disponível em streaming (Telecine) um documentário dirigindo por Pamela B. Green em 2018 e narrado por Jodie Foster resgatando a memória de Alice Guy Blaché ; inclusive com entrevistas gravadas com a própria Alice Guy nos idos dos anos 60.
Mesmo que tal documentário jogue excesso de informação de maneira apressada e algumas entrevistas que não agregam em nada (tanto pelo entrevistado quanto pelo tempo de tela), ainda assim é fundamental para entendermos a importância da diretora devido ao excelente trabalho pesquisa e imagens. Um desses exemplo de excesso narrativo é o fato da diretora percorrer os Estados Unidos atrás de parentes da diretora e seus espólios que ficaram guardados em caixas ao redor do país como um arqueólogo em busca de um tesouro. Claro que soa interessante ver a pessoas saberem sua ligação com Alice, mesmo que sequer soubesse de sua importância, mas ali a edição precisava deixar o espectador respirar um pouco para compreender o que esta acontecendo quando o documentário vai de um ponto ao outro apressadamente.
As emocionantes entrevistas com Alice demonstram uma mulher lúcida e consciente de sua importância, uma vez que a própria passou os últimos anos de vida (lembrando ela faleceu em New Jersey em 1968 aos 94 anos!) literalmente corrigindo a história pessoalmente, o que torna as imagens ainda mais espetaculares (“Quem filmou fui eu“, diz Alice com toda autoridade). Para se ter uma ideia da gravidade, os primeiros ensaístas do cinema em suas publicações mudaram a autorias de seus filmes atribuindo, por exemplo, A Paixão de Cristo ao assistente de direção e não a ela. Então chega ser comoventemente triste ver a própria diretora tendo que viajar o mundo de maneira quase incógnita atrás de suas obras perdidas e lutando por um reconhecimento mesmo que tardio.
Jamais em vão devemos ressaltar!
Na entrada de seus estúdios da Solax acima do pedido para não fumar , para todos verem, Alice Guy colocou uma placa com os dizeres Be Natural (seja natural). Um pedido que todos os envolvidos nas suas produções atuassem naturalmente sem qualquer artificialidade (algo incomum para época uma vez os atores viam de teatro); isso denota sua capacidade não só como profissional , mas também humana para entender a linguagem cinematográfica que estava sendo formada.
Então peço que toda vez que lembrarem da historia do cinema, Alice Guy jamais deve ser esquecida!
Rodrigo Rodrigues
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sensacional saber disso… eu simplesmente NUNCA tinha ouvido falar nessa mulher
so de ser mulher ja merecia um premio… no meio de tantos homens e ainda consseguir trabalhar, e no cinema!!! uma batalhadora sem duvida
Gostei do documentário. Mesmo que outras mulheres pioneiras sejam citadas como responsáveis pelos primeiros passos do cinema, como Lois Weber, Germaine Dulac e Dorothy Arzner, o documentário não se perde e está sempre retornando ao seu tema principal, que é a Alice. A narração que nos guia por diversos lugares e tempos é realizada por Jodie Foster, que igualmente assina como uma das produtoras executivas da fita. Palmas pra Foster por isso!
agora tudo foi a mulher primeiro, nao sei pq tanto esforço pra desmerecer os homens que fizeram historia
Julius
Tudo bem?
Por favor, aproveita que expos toda sua misoginia, e apresente a sua logica baseado no texto escrito.
Foi a primeira mulher a fazer filmes, sendo a primeira, a criar filmes com narrativa. Em 24 anos de carreira dirigindo, roteirizando e produzindo filmes, ela teve mais sucesso do que muitos diretores atuais. Fez mais de 1000 filmes, mas so 20 longas e de tudo que ela fez, menos de 300 ainda existem. Uma pena.
LUCIA
Bem vinda
Obrigado pelo comentário. Realmente uma pena, pois muitos diretores não foram tão esquecidos quanto ela.
Abraço
Que belo texto e história bacana, são histórias assim que devem ser resgatadas e não esquecidas pelo tempo. Parabéns pelo texto Rodrigo.
Obrigado Ricardo
Eu concordo, muitas das historia são esquecidas e precisamos resgata-las. Essa da Alice Guy é sensacional, a primeira grande diretora foi renegada pela historia.
Abraço