Crítica: Una
Una
Direção: Benedict Andrews
Elenco: Rooney Mara, Ben Mendelsohn, Riz Ahmed, Tobias Menzies, Tara Fitzgerald, Natasha Little e Ruby Stokes
Primeiramente devo salientar que nenhum assunto deve ser um tabu, principalmente dentro de uma obra cinematográfica. Um filme deve ser analisado não sobre o aspecto do que ele é, mas sim de como ele é sobre o que é. Entretanto, certos temas voltados ao comportamento humano precisam sim de abordagens delicadas e responsáveis, principalmente devido ao cenário atual em que as vítimas em questão são vistas como culpadas (infelizmente muito comum em nossa sociedade em que costumam usar a expressão “ela pediu” para justificar, por exemplo, um assédio).
Assim, o longa Una do estreante Benedict Andrews aborda de maneira questionável as discussões de um “relacionamento” (leia-se estupro de vulnerável) entre um homem de quase 40 anos com um uma jovem de 13 (Ruby Stokes) e o embate entre eles quando, após reencontrá-lo por acaso, a vítima (interpretada na fase adulta por Rooney Mara) decide ir ao seu encontro na empresa em que ele trabalha e confrontar o agressor (Ben Mendelsohn). O roteiro de David Harrower peca ao transformar o ocorrido numa espécie de “DR” mais do que propriamente a discutir sobre um assunto de extrema relevância e transformando a vítima em culpada, vingativa e com graves distúrbios de personalidade. Ou, no mínimo, vivendo numa eterna Síndrome de Estocolmo (quando as vítimas passam a identificar-se emocionalmente com os criminosos, inicialmente como modo de defesa, por medo ou violência por parte do agressor).
Baseado na peça Blackbird, de própria autoria de Harrower, Una por momentos serve apenas justificar que Ray fique andando pela empresa com Una para manter a dinâmica da conversa (por vezes repetitivas) e denunciando talvez certa incapacidade de desenvolver o assunto de maneira mais ampla sem cansar o público com seus diálogos. Assim como o fato de incluir desnecessariamente uma trama paralela apenas para atender as convenções do roteiro, como a questão sobre a demissão de alguns dos funcionários da empresa em que Ray trabalha, somente para mostrar como a presença repentina de Una o abalou (em ambos os casos denuncia a origem teatral em que se baseia o roteiro).
O que filme parece não entender é o fato de ser moralmente – e psicologicamente – inaceitável um adulto criar códigos e artifícios característicos dos pedófilos para atrair a jovem, como andar na roda gigante de um parque, oferecer doces como iscas para alcançar seus objetivos sexuais e (o pior) prometer uma vida em comunhão que somente faria sentindo numa mente prematura, suscetível e fabulista de uma jovem de 13 anos que se achava apaixonada. Não que o filme não tente trabalhar o conflito dramático, um estudo de personagens e as devidas consequências na vida da vítima de abuso, mas o problema é o tom punitivo de Una ser escancarado enquanto o agressor é “premiado” com uma vida estruturada. Pois, ao contrário de Ray, Una é vista com desconfiança pelos vizinhos, um ser estranho e promíscuo, o que acaba tornando o contexto “aceitável”.
Claro que é compreensível esta abordagem ao mostrar tais consequências moldadas num tom de alerta ou denúncia para um assunto tão grave como dissesse: “Olha o que pode acontecer com a mulher”. Mas, repetindo, o problema é o perigo de romantizar o contexto com a visível tentativa de criar certa “dubiedade” na personalidade de Ray e se que o “relacionamento” com Una realmente foi consensual, um caso de amor. Fora que a direção ao tentar elevar os dois ao mesmo nível se torna errônea, como ambos fossem vítima equiparáveis de acontecimentos imprevistos de um relacionamento dito ”normal” não parecendo levar em conta todo o abuso, subjugação e manipulação num tipo de relacionamento como este (como, por exemplo, a direção intercalar os dois usando o sexo com outras pessoas como expurgo reducionista de seus traumas). Mesmo com tal desenvolvimento do personagem, seus dramas e motivações, acabam se tornando parcial em sua abordagem por criar certo desequilíbrio em vários momentos e até mesmo usar argumentos dos mais cruéis como dizer que uma criança de 13 anos “sabia o que estava fazendo” ou justificativas do tipo “Eu a via como uma vizinha e não como alvo”. Ademais, repetindo, o longa transforma o agressor num homem redimido (nem vou entrar no mérito jurídico), mas o agravante de tornar permissivas suas atitudes em que tudo aquilo foi feito por paixão e permitindo Ray dizer não “ser um deles” e que “voltaria para ficar com ela” – lembrando que ele premeditou a jovem completar certa idade para não sofrer uma pena maior.
(Ratificando, não estou retaliando o contexto do filme, mas devemos lembrar-nos de obras sobre pedofilia e independentes do ponto de vista como A Caça, O Lenhador, Confiar e Lolita de Kubrick se apresentam obras mais complexas em suas discussões).
Contudo, a direção merece elogios por sua narrativa correta, principalmente no primeiro ato, ao apresentar a temática de maneira delicada e eficaz, cujo cenário vai se montando aos poucos. Como podemos ver logo nos segundos iniciais quando com um plano aberto, a câmera vai lentamente se aproximando da protagonista de maneira silenciosa, valorizando o corpo em formação da jovem para em seguida, e com um corte abrupto, visualizarmos a então figura adulta de Una dentro de uma boate com todo o barulho do local contrastando com o silêncio anterior e simbolizando todo estado psicológico da personagem. Ou como em determinado momento, a câmera se inicia por trás da então pré-adolescente para posteriormente, ao encontrar seu agressor, já adulta, voltar-se para frente da protagonista simbolizando uma nova atitude, mesmo que sua imagem se mostre para espectador turva e desconfigurada ao passar por uma divisória. Salientado metaforicamente também por andar sem rumo (como sua mente) pelos corredores da empresa e sendo subjugada pelos grandes andaimes e o espaço em si. E até mesmo o fato, da conversa com Ray se passar num local, onde se destacam armários dos funcionários, podemos interpretar como um ambiente inexplorado, portas ainda sendo abertas do conflito e traumas esperando a serem revelados ou quando, durante uma dos diálogos, Ray tem sua face toda inserida nas sombras insinuando sua periculosidade.
Entretanto, penalizando a protagonista caminhando de maneira perdida num ciclo de abusos, Una poderia ter as mais nobres das intenções ao expor as consequências de um ato covarde numa discussão sempre necessária. Mas infelizmente acaba mantendo-a no mesmo nível que começou.
Cotação 3/5
Rodrigo Rodrigues
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Não entendi o final se ele já avisou daquela menina que parecia ser filha dele do jeito que ela olhou para ele , as vezes parecia que ele estava sendo sincero mais no final fiquei em dúvida.
Até agora pensando nesse filme me faz pensar tanta coisa
Taiane
Bem vinda
Sim, era filha dele. Não sei se é exatamente isso que deseja saber, mas a menina era quase como um reflexo da Una. E também um elemento para fazermos acreditar que o cara é um “homem de família” e que as acusações não são incabíveis.
Obrigado pelo comentário
Oi, Rodrigo. Primeiramente, parabéns pela sua crítica, gostei. Demos a mesma nota ao filme. Devo te dizer que não vi tantas divergências assim nas nossas visões. Você entendeu que o filme quis nos levar a ter uma outra abordagem sobre o romance dos dois, já que eles estavam apaixonados. Eu também entendi isso. Mas como eu, você não concorda com isso, porque mesmo que o sexo tenha sido consensual, ela só tinha 13 anos e cabia ao adulto evitar. Talvez eu não tenha prestado atenção em algum detalhe, mas pra mim ela sempre tentou encontrá-lo, você diz que foi por acaso. Mas isso não muda nada. Ou talvez mude: o fato dela desejar encontrá-lo para ter esse confronto com ele é porque ela precisava de uma forma de redenção. Porque a vítima nesses casos sempre sente-se culpada, suja. Ele nunca mais a procurou, ele que dizia amá-la e lhe prometeu uma vida juntos. Confirmar isso seria uma maneira de redimi-la por ter aceito o assédio dele. Mas a Una adulta tinha dúvidas se ele a amava mesmo ou a procurou só para satisfazer seus instintos doentios. Não acho que o roteiro transforma a Una em uma pessoa com graves distúrbios de personalidade. O roteiro apenas mostra o que acontece nesses casos, muito difícil não acontecer. A Una TEM graves distúrbios de personalidade sim devido ao que passou. Aí vou repetir um trecho que escrevi: “A experiência mostra que as vítimas de abuso não perdem apenas a inocência, a virgindade, mas a autoestima. Seu corpo passa a não valer nada. Sobrevivem, mas sem motivação nenhuma.”. Elas precisam de um salvador e no caso de Una, ela esperava que fosse o próprio Ray.
Cecilia
Bem vinda e obrigado mesmo pelo comentário. E realmente temos opiniões no fim parecidas. rs
Admito que o filme tem uma linha bem tênue sobre o comportamento da Una. Quanto ao distúrbio ( do filme querer transformar nisso) seria mais pela imagem que ela gera com o mundo ao redor, tanto que os vizinhos a veem com algo desprezível . E acho o inicio do filme , com alguns cortes e o plano inicial fundamental para simbolizar isso.
Mas o pior, para mim , é mais o fato do filme ( contextualmente) alimentar um esteriótipo de que a vitima é culpada ou deva se sentir culpada . E o agressor fica impune e com um vida “normal”.
Obrigado pelo participação
Abraços.
a peça de teatro tb tem essa visao meio equivocada na abordagem?
Julia,
obrigado por comentario.
Bem, sobre a peça eu não poderia dizer pois não vi. Seria leviano da minha parte afirmar, pois no filme o diretor pode ter mudado algum ponto de vista.
Lembrando também , e devemos sempre salientar, teatro e cinema são linguagens bem diferentes uma da outra e por isso naturalmente há mudanças.
Abraço