Os jogos Legacy são uma nova categoria de jogos relativamente nova, mas muito influente que causou certo rebuliço no universo dos board games. Nesse sentido, é preciso lembrar que a indústria dos jogos de tabuleiro (clássicos e modernos), já é centenária. Claro que por indústria dos jogos se entende os jogos produzidos em escala industrial, principalmente no final do século XIX e início do século XX. Desse modo, ficam excluídos os jogos ancestrais, tais como Xadrez, Go, Gamão, Damas e assemelhados.

 

Além disso, na indústria dos jogos de tabuleiro a inovação e a criatividade são fundamentais. As pessoas até gostam de jogar um mesmo jogo, mas com um cenário que lhe agrade, mas essa não é uma regra. As versões de super-heróis do Zombicide (Marvel e DC) são um exemplo de mesmo jogo com cenário diferente que agradou. O Carcassonne Star Wars é um exemplo de mesmo jogo com cenário novo, mas que não agradou. Diante disso, apesar de gostarem do Marvel Zombies ou do DCeased, muito provavelmente os fãs de super-heróis talvez preferissem um jogo novo, com esse cenário.

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Assim, sempre que surge uma novidade que seja boa (uma novidade ruim não adianta absolutamente nada), a indústria dos jogos adota a ideia quase imediatamente. Com os jogos Legacy foi exatamente assim. Tudo começou com o Risk Legacy de 2012, mas o jogo que realmente chamou atenção, “colocando essa ideia no mapa” foi o Pandemic Legacy.

 

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Imagem BGG: Risk Legacy.

 

A ideia central por trás dos jogos Legacy é o conceito de campanha, com várias partidas, em que a partida seguinte começa do ponto em que a partida anterior terminou. Assim, aquilo que ocorre em uma partida repercute e influencia todo o desenrolar da campanha.

 

Essa inovação é um reflexo e uma influência clara do RPG, porém existe uma diferença, que faz toda a diferença. O RPG tradicional, conhecido como “RPG de mesa”, é basicamente um conjunto de regras que dá liberdade total para o Mestre criar sua aventura. Nas versões digitais ou board games dos RPGs evidentemente não há essa mesma liberdade. Não há uma mente criativa por trás, que a cada partida produza um cenário inteiramente novo e que reaja diante das ações inesperadas dos jogadores. É possível que com o desenvolvimento das IAs isso até aconteça no futuro, mas atualmente essa ainda é apenas uma possibilidade. Não basta apenas ter uma IA capaz, pois ainda é preciso que ela seja acessível ao grande público, e comercialmente viável, e a tecnologia atual ainda está bem longe disso.

 

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Imagem BGG: Mansions of Madness, um excelente exemplo e board game com aplicativo de apoio.

 

Por outro lado, um board game com campanha tem limitações ainda maiores que um RPG digital. Claro que muitos jogos de tabuleiro já usam aplicativos, mesmo aqueles que não contam com campanhas. Mas esse é um recurso a ser usado com muito cuidado. Caso contrário pode se cair na armadilha de se criar um jogo digital com elementos físicos de apoio, ao invés de um board game com aplicativo como recurso.

 

Para contrabalancear isso existem os jogos de mundo aberto, em que a liberdade de ação mesmo não sendo absoluta ainda assim é bem ampla. São os chamados sandbox que permitem ao jogador diversas estratégias diferentes para acumular pontos e ganhar a partida. Porém, mesmo muito mais amplas que os board games comuns, as possibilidades de ação dos sandbox ainda assim é limitada.

 

Devido a essa limitação de possibilidades, os jogos Legacy optaram por entregar uma aventura pronta do início ao fim, proporcionando ao jogador uma experiência única. Como só se tem essa experiência apenas uma vez ela obviamente se torna rara, e a raridade aumenta, e muito, o seu valor. Essa ideia é absolutamente genial em termos de jogos de tabuleiro.

 

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Imagem Ludopedia: Orla Exterior e Western Legends, excelentes jogos sandbox.

 

Para tornar a experiência ainda mais única, os jogos Legacy também introduziram uma ideia muito controversa que é destruição e modificação de alguns componentes. A justificativa para isso é reforçar ainda mais a ideia de uma experiência única, através da inviabilização real de se jogar novamente a campanha.

 

De um lado há quem defenda que isso é fundamental para se vivenciar um board game Legacy em toda a sua plenitude. Então, a pessoa não está diante de um jogo de tabuleiro, mas sim diante de uma experiência. Do lado diametralmente oposto, estão aqueles que defendem que isso é um absurdo total. E motivos não faltam.

 

Em primeiro lugar é preciso levar em conta que, quanto maior a estrutura e a quantidade de componentes, mais caro será o board game. A razão é simples, porque quanto mais coisa para produzir, mais dinheiro se gasta com a produção, o que aumenta o preço do jogo. Isso é ainda mais relevante para um mercado novo e muito pequeno como o mercado brasileiro de jogos, onde os jogos são muito caros. Nesse sentido os jogos Legacy já são naturalmente caros, se tornando ainda mais caros quando se excluí a possibilidade de venda de uma cópia usada.

 

Uma alternativa interessantíssima, para manter a experiência Legacy sem gastar muito dinheiro, são os jogos no estilo simulação de Escape Room. Esses são jogos com pouco componentes, com uma caixa pequena, e que realmente só se pode jogar uma vez. Isso porque tais jogos têm apenas um caminho possível, e uma única resposta final. Com isso, depois de se chegar ao fim, não tem graça jogar novamente. Definitivamente não são a mesma coisa, mas uma alternativa viável, ao menos economicamente, aos caríssimos jogos Legacy.

 

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Imagem BGG: Exit, Unlock e Deckscape, simulacros de Escape Rooms.

 

Em segundo lugar, um jogo que só se joga uma vez, impossibilitando totalmente uma nova experiência, implica em um consumismo inconsequente, que é incompatível com a consciência ambiental dos dias de hoje. As atuais mudanças no meio ambiente, que afetam a todos, exigem além da reciclagem, a reutilização e a redução na produção de lixo. Os jogos Legacy na sua concepção original vão na “contra mão” disso tudo.

 

Em terceiro lugar, a destruição de componentes impossibilita uma nova experiência similar, mas sob outro ponto de vista, com outro personagem ou seguindo outro caminho. O ponto de chegada é o mesmo, mas a viagem é outra.

 

Um jogo que exemplifica muito esse terceiro ponto, levantado acima, mesmo sem ser um jogo Legacy, é o Arkham Horror Card Game. Esse jogo tem uma quantidade limitada de finais possíveis em cada aventura. Nesse aspecto a rejogabilidade é mínima, quando o foco é o objetivo. Porém a quantidade de permutações possíveis entre as cartas é absurdamente grande, abrindo um leque de opões inimaginável. Nesse aspecto a rejogabilidade é altíssima, quando o foco é o processo e não o objetivo.

 

Desse modo, nos jogos Legacy, a destruição de componentes representa o foco no objetivo, ou seja, chegou acabou. Já o uso de alternativas para evitar essa destruição representa o foco no processo, ou seja, acabou, vamos começar novamente, mas por outro caminho.

 

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Imagem BGG: Arkham Horror Card Game.

 

Tanto uma proposta quanto a outra, têm suas razões de ser, bem como pontos positivos e negativos. Porém, há uma diferença fundamental que é preciso levar em consideração.

 

Normalmente, quando uma pessoa ingressa em um hobby, o natural é que ela goste das coisas que esse hobby envolva. E isso se traduz em um real e verdadeiro afeto em relação aos elementos do hobby. Uma pessoa que gosta de board games, não gosta apenas da experiência de se jogar board games, mas dos próprios board games em si.

 

As pessoas não gostam apenas de jogar o Stone Age, o Azul ou o Rising Sun, ou dos seus pontos fortes apenas enquanto melhoramentos da experiência lúdica.  Elas gostam da arte belíssima que o inigualável Michael Menzel produziu no tabuleiro do Stone Age. As pessoas gostam do capricho na produção dos ladrilhos do Azul e a inteligência e elegância por trás do jogo. Elas gostam das miniaturas fenomenais do Rising Sun, que pintadas se tornam pequenas obras de arte.

 

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Imagem BGG: Miniaturas pintadas do Rising Sun.

 

Com isso, rasgar uma carta, ou colar um adesivo no meio de um tabuleiro, inviabilizando jogar novamente, é destruir algo que se gosta muito que é um board game. Isso também impede que outras pessoas possam usufruir da mesma experiência. Uma atitude dessa não faz o menor sentido, ao menos para quem realmente gosta de board games, e não apenas da experiência que eles proporcionam.

 

No caso desse novo Ticket to Ride Legacy, tanto a questão do alto preço, quanto à manutenção do jogo pós-campanha, parece ser uma preocupação. Pelo menos aparentemente, produzir um jogo caro, para se jogar uma única vez e que depois jogar no lixo, talvez não seja mais tão atraente. Basta dizer que mesmo sendo Legacy, o Ticket to Ride Lendas do Oeste prevê que ao final da campanha, o jogo se mantém perfeitamente funcional.

 

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Imagem BGG: Ticket to Ride Lendas do Oeste.

 

Ainda é muito cedo para se afirmar se esse conceito de manter um jogo Legacy jogável, ao final da campanha, será um nova tendência. Ainda será necessário que outros jogos Legacy sigam por esse mesmo caminho. Entretanto, considerando imenso prestígio da franquia Ticket to Ride, e sua enorme influência na indústria dos jogos, esse é um forte indício.

 

Além disso, muito provavelmente por conta do preço, a ideia da destruição de componentes nunca foi muito popular entre os jogadores tupiniquim. E mesmo as pessoas que defendiam destruir componentes do Pandemic Legacy, silenciaram totalmente em relação ao Gloomhaven que também possui um sistema de campanha. Nesse caso aconteceu justamente o contrário. Em virtude do preço altíssimo, e do alto valor de revenda, as pessoas fazem o possível para manter sua cópia de Gloomhaven “resetável”. Com isso elas podem recuperar ao menos em parte a “pequena fortuna” gasta com o jogo, após terminarem a campanha.

 

Assim sendo, mesmo que ainda não haja nenhuma certeza, nesse sentido, tudo indica que esse esquema do Ticket to Ride Lendas do Oeste, será a nova inovação dos jogos Legacy.

 

Quem viver verá.

 

Um forte abraço e boas jogatinas!

 

Iuri Buscácio

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Iuri Buscácio

Leitor voraz de filosofia, teatro, literatura brasileira e estrangeira, suspense, e de romances históricos, de fantasia e ficção científica, além de ser fã de quadrinhos americanos e europeus, desde os tempos da saudosa Ebal, amante do cinema e das séries, e também um grande entusiasta e pesquisador dos jogos de tabuleiro, tanto clássicos quanto modernos, cuja trilha sonora é o bom samba, a MPB de qualidade, black music e música pop dos anos 70 e 80.

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