Crítica: Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You)

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Direção: Ken Loach

Elenco: Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Rhys Stone, Katie Proctor, Charlie Richmond e Ross Brewster

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Nota 5/5

Alguns meses atrás saiu um artigo na BBC Brasil sobre uma família na capital paulista em que marido e esposa trabalhavam com aplicativos de transportes durantes 12 horas diárias. Cada um! Como consequência, praticamente se viam apenas nas trocas de turno em rápidos cumprimentos ainda na garagem de casa. Isso, obviamente, sem falar nos filhos que sentem a ausência irreparável dos pais em seu desenvolvimento devido a falta de tempo. Tal precarização do trabalho – a chamada uberização – se dá às políticas de um mercado cada vez mais desumano em escalas cada vez maiores, como se voltássemos ao início da revolução industrial. Algo que se tornou, inclusive, a própria política de estado brasileiro quando houve um desmanche sobre os direitos trabalhistas à mando da classe empresarial – e espero que as pessoas que aplaudiram o filme, após seu término, não tenham a hipocrisia de terem batido palmas e contribuído ao mesmo tempo para tal cenário nas eleições passadas.

Assim, nada mais contundente que em Você Não Estava Aqui , o diretor Ken Loach mantenha, depois de décadas de carreira, sua narrativa afiada em criticar tal cenário de exploração capitalista do indivíduo da classe operária – como visto em seu filme anterior Eu, Daniel Blake. Loach traz uma análise particular de um problema universal que atinge todos quando o Britânico Rick Turner (Hitchen), depois de passar anos exercendo as mais diversas funções, é contratado por uma empresa de entrega rápida como uma última tentativa sua de obter estabilidade. Contudo, a pressão diária para atingir as metas ocasionará a destruição do ambiente familiar, onde a figura da esposa Abby (Honeywood) e filhos , se tornam umas das principais vítimas.

Trazendo as velhas armadilhas do sistema, a obra mostra, por exemplo, Rick sendo convencido com todos os tipos de argumentos covardes quando se vê obrigado a comprar um grande veículo (que jamais terminará de pagá-lo); ao mesmo tempo que frases de efeito como “ser seu próprio chefe”, “você deve ser um guerreiro e não um perdedor” e “você faz suas escolhas” lhe são proferidas. Ou seja, qualquer escolha acaba por tornar um engodo para o trabalhador  ao transformá-lo em um escravo das grandes empresas (aqui rapidamente mencionadas na figura de uma Amazon, por exemplo).

Isso sem falar na falta de todas as garantias que a legislação fornece ao trabalhador como seguro desemprego; algo que a precarização destes “empreendedores” acabar por retirar, fundamentada em uma chantagem com o famoso “se não quiser, tem quem queira”. Uma ideologia que força a pessoa de trabalhar horas à fio sem direito a sequer ir ao banheiro tornando trabalhadores reféns da tecnologia que os vigiam a cada passo; onde uma empresa bilionária não cobre o seguro de uma correspondência de 500 libras tornando a logística do motorista uma roleta russa financeira devido aos risco de assaltos e perdas. E mesmo que todo este complexo cenário seja resumido na figura autoritária de Maloney (Brewster), ainda é eficiente por ele, apesar de toda sua falta de humanidade, ser uma peça a mais no tabuleiro que se acha importante.

Mas o roteiro de Paul Laverty é hábil ao construir toda esta escala social como um campo de areia movediça que suga as forças de um indivíduo. Ken Loach tem uma capacidade única em trazer multidimensionalidade para personagens e seus dramas e conflitos familiares dentro de uma abordagem sócio-política, sem perda de identidade de cada um. Pessoas cujos momentos de alegria e planejamentos ficaram para trás, impregnados em fotos antigas de rostos ainda jovens, cujos filhos geram uma cobrança enviesada por falta de atenção sem os pais saberem quais são os seus desejos, medos e visões do mundo – inclusive remetendo sempre à lógica do diretor em que “O Estado cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua”. Ou como disse o filósofo coreano Byung-Chul Han  “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”.

Ademais, não importa qual seja o problema que pessoa passe, o sistema é implacável e desumano, como comprovamos no momento em que Rick precisa se ausentar para atender um chamado da escola devido a problemas comportamentais do filho mais velho Seb (Stone); e se o primogênito demonstra um inconformidade com a situação do pai (como uma injusta falta de esforço e dedicação), e que futuramente ele poderá estar naquela situação, a jovem e doce Liza (uma ótima e madura Katie Proctor) é um último refúgio dentro de um ambiente instável e cada vez mais frio. Assim, é interessante também analisar tal choque de geração por criar uma denúncia de como os pais estão inseridos em um ciclo, cuja sociedade vende a “recompensa” pela valorização de esforço para jovens que estão com dívidas estudantis cada vez maiores tendo como “escolha” para se sustentar a… precarização!

Controlado sua narrativa ao trazer os conflitos de maneira orgânica, o diretor fornece poucos momento de alento (como visto na sequência do jantar em família), e temos no importante arco da própria Abby um belo exemplo dessa toxicidade; a atriz passa da lamentação para raiva (“Ninguém mexe com minha família”) em pouco tempo, ao manter sua voz sempre em um tom baixo, em que vai sendo consumida pela aquela atmosfera em que acaba de maneira comovente e dolorosa pelo fato de dizer um simples palavrão que, para ela, é algo altamente destrutivo (“Eu cuido das pessoas, é o meu trabalho”). Inclusive, sempre em que há uma discussão, como aquela vista entre Rick e Seb na cozinha, há uma eficiente composição de cena em que a mulher sempre termina no centro e solitária (seja a própria mãe ou a filha, o que traz a lógica das mulheres como o ponto de equilíbrio familiar).

Terminando o longa sem grandes soluções para os personagens, Você não Estava Aqui deixa ao mesmo tempo as ferramentas para sentirmos que qualquer mudança passa pelo momento que nos identificamos com aqueles indivíduos! Para algumas pessoas pode parecer um difícil exercício, por sempre ter alguém para romantizar a desgraça alheia.

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Rodrigo Rodrigues

Eu gosto de Cinema e todas suas vertentes! Mas não aceito que tentem rescrever a historia ou acharem que cinema começou nos anos 2000. De resto ainda tentando descobrir o que estou fazendo aqui!

11 thoughts on “Crítica: Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You)

  1. menos, gente, menos… um filme mediano, com um tema interessante, mas nao é pra tanto, é assistivel e pronto, alguns vao curtir e outros nao, so isso, nada de mais… proximo!

  2. A crítica social é bem pesada, tão pesada que o filme em si, o roteiro mesmo, acaba ficando meio em segundo plano, foi o que eu achei

  3. vim achando que era a critica do filme com o nome parecido, estrelado pelo Joaquim Phoenix, muito bom, ele é um assassino profissional, e me deparei com esse drama que parece interessante, vou conferir

  4. bela critica social nesse filme que joga na cara de todos os governos o que eles fazem o povo passar

    1. laridoce
      Bem vinda

      Realmente é um obra bem atual, como todos os filmes de Ken Loach. Se não conhece a obra dele, não vai se arrepender.

      Abraços

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